- Considerações a partir da Proposta de Lei n.º 98/X, de Revisão do Código PenalJorge dos Reis Bravo
27 de Abril de 2007
Centro de Estudos Judiciários
Lisboa
I. Introdução. O sistema sancionatório de Entes Colectivos no Código Penal. O tema e o sistema em geral.As considerações que vão fazer-se baseiam-se na versão da Proposta de Lei n.º 98/X
[1]. Assistiremos, a confirmar-se no final do processo legislativo em curso a mencionada versão, à consagração – pela primeira vez – da possibilidade de responsabilização penal de entes colectivos no âmbito do chamado Direito Penal Primário ou de Justiça, para além dos domínios do Direito Penal secundário, em que já não era inédita.
A consagração aberta da responsabilidade penal de entes colectivos corresponde a uma resposta político-criminal que se funda em motivações civilizacionais emergentes da sociedade do risco, da complexificação e globalização das estruturas sócio-económicas e da própria criminalidade contemporâneas. É, também, uma solução destinada a evitar ou minorar situações de virtual impunidade, derivada pela diluição de responsabilidades individuais, decorrente de um tipo especial de agente (socialmente integrado) e de complexas “estruturas de poder e de organização”.
Se houvesse que fazer-se um ponto de situação sobre o estado actual da dogmática da punibilidade de entes colectivos, dir-se-ia que a mesma atravessa momentos de tendências contrastantes: se, por um lado, é um dado adquirido e em desenvolvimento, por outro lado a sua consagração suscita renovado cepticismo, quanto à sua justificação e quanto à sua utilidade. Autores há que admitem efectivamente tal tipo de responsabilidade, mas não defendem o seu estabelecimento em todas as áreas de incriminação, devendo limitar-se a mesma aos sectores do direito penal secundário. Outros há que não reconhecem, de todo, a viabilidade da consagração de um tal tipo de responsabilidade, remetendo o significado das expressões «penas» e «responsabilidade penal» [insertas nos artigos 3.º e 7.º do Dec.-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro] para uma dimensão emocional, derivada de «um inaceitável uso mágico da linguagem», concluindo pela impossibilidade de teorização do problema nos quadros do direito penal
[2].
O regime agora instituído constituirá um avanço com relevante significado dogmático e um passo com transcendentes consequências no plano da prática processual e da atitude dos aplicadores face às sensíveis inovações introduzidas pelo novo sistema.
A sua consagração é condicionada – mas, diríamos, não imposta – pelo conteúdo de alguns instrumentos normativos internacionais e comunitários, designadamente da Decisão-Quadro 2000/383/JAI do Conselho, de 29 de Maio de 2000, sobre o reforço da protecção contra a contrafacção de moeda na perspectiva da introdução do euro, através de sanções penais e outras; da Decisão-Quadro 2001/413/JAI do Conselho, de 28 de Maio de 2001, relativa ao combate à fraude e à contrafacção de meios de pagamento que não em numerário; da Decisão-Quadro 2002/629/JAI do Conselho, de 19 de Julho de 2002, relativa à luta contra o tráfico de seres humanos; da Decisão-Quadro 2003/80/JAI do Conselho, de 27 de Janeiro de 2003, relativa à protecção do ambiente através do direito penal; da Decisão-Quadro 2004/68/JAI do Conselho, de 22 de Dezembro de 2003, relativa à luta contra a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil; da Convenção das Nações Unidas contra a criminalidade organizada transnacional, assinada por Portugal em 12 de Dezembro de 2000; e de acordo com o Segundo Protocolo estabelecido com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia, da Convenção relativa à protecção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias, assinado em Bruxelas a 19 de Junho de 1997, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 86/2000, de 15 de Dezembro e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 82/2000, de 15 de Dezembro.
Preambularmente cumpre dizer que a opção legislativa ensaiada não é a única que resulta plausível como decorrente dos aludidos instrumentos normativos.
Não o é enquanto opção técnico-sistemática, podendo conceber-se outro modelo, contemplando a previsão da punibilidade de entes colectivos num “diploma-quadro” que compendiasse e sistematizasse, de forma tendencialmente coerente, as soluções dogmático-conceptuais de todo o sistema sancionatório de entes colectivos, independentemente de se tratar de direito penal de Justiça ou Secundário.
E não o é, também, enquanto opção material de consagração de responsabilidade entes colectivos de índole especificamente criminal. Na verdade, exemplos diversos, no plano comparatístico revelam que Países como a Espanha
[3], a Itália (membros da U.E.) não admitem abertamente a responsabilidade de entes colectivos, enquanto outros persistem em não a admitir no âmbito do direito penal de Justiça, muito embora a aceitem em diversas áreas de incriminação do direito penal secundário, como no direito penal fiscal e tributário, nos regimes de infracções anti-económicas e noutros. Ocorre que em tais países a exigência de previsão de “sanções penais” contra empresas e outras pessoas colectivas fica satisfeita com a consagração de responsabilidade administrativa e contraordenacional.
Como primeira impressão de carácter geral, anota-se a opção pela não consagração de uma responsabilização autónoma, i. é, não se adopta um critério de autonomia de imputação jurídico-penal ao ente colectivo. A questão reveste, em grande medida, interesse doutrinal e percebe-se, por isso, que o legislador não tenha tomado partido nessa querela, não se alterando o paradigma já existente noutras áreas de incriminação no panorama sancionatório nacional.
Continuará, assim – agora dentro do próprio Direito Penal de Justiça –, a vigorar um sistema de responsabilidade penal derivada e cumulativa.
Derivada (ou reflexa), porque dependente da responsabilidade concreta de um agente individual 1) que ocupe uma posição de liderança e actue em nome e no seu interesse do ente colectivo ou 2) que aja sob a autoridade destas pessoas em virtude da violação do dever de controlo que lhes incumba
[4].
Cumulativa, por não excluir a punibilidade (que não a punição) dos agentes cuja conduta determine a imputação da responsabilidade ao ente colectivo.
Propõe-se, agora, um “enxerto” do regime da responsabilidade penal de «pessoas colectivas e equiparadas» no Código Penal, solução ainda não ensaiada, por contraste com anteriores propostas que, não tendo sido sequer apreciadas
[5], apontavam para a sua consagração em diploma(s) avulso(s). Tal “pudor” radicava em atavismos dogmáticos, agora presuntivamente ultrapassados.
Como é sabido, distintos modelos de imputação objectiva jurídico-penal são conjecturáveis, relativamente a entes colectivos: o modelo de «comparticipação», o do «défice de organização» (K. TIEDEMENN) e o de «analogia» (FIGUEIREDO DIAS).
Não se prescinde, portanto, de uma concreta e actual(izável) responsabilização de indivíduos que actuem no âmbito de um específico centro de imputação jurídico-penal colectivo ou grupal, dotado ou não de personalidade jurídica.
O Projecto propõe um modelo de responsabilidade penal de entes colectivos que combina o modelo convencional com o modelo de «défice de organização», elementos decorrentes das duas alíneas do n.º 2 do art. 11.º, segundo o qual «As pessoas colectivas e entidades equiparadas, com excepção do Estado, de outras pessoas colectivas públicas e de organizações internacionais de direito público, são responsáveis pelos crimes previstos nos artigos […], quando cometidos:
a) Em seu nome e no interesse colectivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou
b) Por quem aja sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem».
Por outro lado, embora a lei não se lhe refira expressamente, sabendo que os tipos de crime susceptíveis de ser imputados a entes colectivos são maioritariamente puníveis a título doloso – com excepção dos crimes de perigo comum, que admitem a forma de negligência –, afigura-se que deva pontificar, na definição da respectiva moldura penal, uma regra geral de adesão à forma subjectiva de imputação da conduta do(s) agente(s) individual(ais).
Contudo, a Proposta não toma – e não tem que tomar – posição no tocante, p. ex., ao modo de imputação subjectiva, quando concorra mais de uma forma de imputação a tal título, a diversos agentes individuais que tenham actuado em sua representação e no seu interesse (maxime, quando um actue a título doloso e outro a título negligente).
Sucede ainda que será porventura discutível se o novo regime estabelecido valerá supletivamente para os regimes especiais instituídos no âmbito das áreas de incriminação que admitem já a responsabilidade penal de entes colectivos (Infracções Anti-económicas, Regime Geral das Infracções Tributárias, Lei da Criminalidade Informática, Lei Anti-Terrorismo, Regime Jurídico das Armas e Munições), sabendo que nele se prevêem critérios de imputação diferenciados e que a natureza dos sujeitos passíveis de ser responsabilizados jurídico-penalmente podem não coincidir.
No tocante à extensão do âmbito de punibilidade e comunicabilidade da ilicitude, o Projecto não toma posição, estando vocacionado para a “ocorrência padrão” da relação imediata que se estabelece entre a pessoa colectiva ou equiparada e o agente individual, mas não já quando se estabeleça uma relação mediata. Ficam por definir as circunstâncias e formas de imputação da responsabilidade quando se esteja, por exemplo, perante situações de subcontratação ou sub-subcontratação.
As disposições normativas distribuem-se por um artigo 11.º profundamente reformulado e por doze novos artigos (artigos 90.º-A a 90.º-M), respeitantes ao sistema sancionatório stricto sensu. Há, também, que anotar uma nova disposição no art. 5.º, n.º 1 al. g), que se refere à aplicabilidade do direito português quanto a factos cometidos fora do território nacional «por pessoa colectiva ou contra pessoa colectiva que tenha sede em território português».
Trata-se de disposições normativas, umas com inspiração em soluções já conhecidas, e outras relativamente inovadoras.
Uma primeira nota crítica prende-se com um aspecto de coerência sistemática atinente à simultânea consagração no mesmo preceito (art. 11.º) dos princípios da responsabilidade penal de indivíduos – agora não tanto uma regra com excepções consagradas em diplomas extravagantes, mas mais uma regra concorrente com outra, a da responsabilidade penal de entes colectivos. Compreender-se-ia, por isso, que se devesse fazer uma diferenciação do que é a matriz da responsabilidade penal de indivíduos daqueloutra que acolhe a responsabilidade – agora bem generalizada –, da punibilidade de entes colectivos no âmbito do Direito Penal de Justiça, em dois preceitos distintos.
Afigura-se, assim, que a previsão e regulação na mesma norma legal dos dois princípios é dogmaticamente inconveniente, dada a teleologia e tradição do preceito. Pareceria muito mais defensável estabelecer a excepção noutro artigo (poderia ser num “art. 11.º-A”) do que no «número seguinte» (n.º 2), uma vez que o regime de punibilidade de entes colectivos não se acha apenas previsto sequer no «número seguinte», mas nos diversos (e não são poucos: 10) «números seguintes».
Quanto às excepções de punibilidade, não pode deixar de se concordar com a expressa menção do Estado, devendo, no entanto, prever-se igualmente de forma explícita a excepção das Regiões Autónomas
[6].
A referência a «outras pessoas colectivas públicas» suscita maior perplexidade.
Na verdade, parece ser equívoca a formulação proposta para prever as excepções à punibilidade relativamente a entes colectivos de natureza pública.
O que parece resultar de uma hermenêutica sistémica que se nos afigura correcta é que o conteúdo das outras excepções à punibilidade surge na norma do n.º 3:
a) Pessoas colectivas de direito público, nas quais se incluem as entidades públicas empresariais;
b) Entidades concessionários de serviços públicos, independentemente da sua titularidade;
c) Demais pessoas colectivas que exerçam prerrogativas de poder público.
Como é sabido, o conceito «pessoas colectivas públicas» é um conceito operativo, apenas «para efeitos da lei penal», não sendo um conceito técnico-jurídico (nomeadamente emergente do direito administrativo). E essa formulação permite, desde logo, alguma exploração interpretativa sobre o alcance da expressão, no tocante à aplicabilidade às diversas áreas do direito penal secundário onde é admitida a punibilidade de alguns dos entes colectivos que no âmbito do Código Penal poderão não o ser.
Contudo, ao figurar no n.º 2 a seguir à excepção do «Estado» a expressão «de outras pessoas colectivas públicas» presta-se à interpretação de que a referência a «outras» é feita por contraste ao Estado e não às que vêm elencadas no n.º 3, permitindo, assim, a conclusão de que o seu conteúdo é todo o consagrado no n.º 3, e não (apenas) as entidades públicas ali não previstas.
Seria, pois, de todo em todo conveniente – pela sua extraordinária relevância – clarificar o conteúdo desse conceito (a ser correcta a nossa apreciação), precisando-se o conteúdo da norma no sentido seguinte, «as pessoas colectivas e entidades equiparadas, as pessoas colectivas públicas, com excepção do Estado [das Regiões Autónomas, de pessoas colectivas de direito público que exerçam poder público sancionatório] e de organizações internacionais de direito público….». O n.º 3 seria, assim, a concretização daquele conceito. Desse modo, qualquer «pessoa colectiva pública» que não se incluísse no n.º 3 estaria excepcionada da responsabilidade penal.
De todo o modo, segundo as regras de hermenêutica jurídica, cremos que a interpretação daquele preceito é pouco inequívoca.
A nossa conclusão interpretativa vai no sentido de serem excepcionadas da punibilidade todas as entidades referidas no n.º 3.
Não se alcança, com efeito, a legitimidade da inclusão no conceito, de entidades tão distintas como Municípios, Institutos Públicos, Empresas Públicas, entidades concessionárias de serviços públicos (mesmo de titularidade exclusivamente privada) e que são habitualmente sociedades comerciais.
Não se compreende que tais entidades tenham o mesmo tratamento de excepção que o Estado – e outros entes colectivos de direito público, relativamente aos quais, na nossa perspectiva, tal se justifica –, quando a eventual prática de actividades ilícitas, por parte dos seus representantes, terá como ofendidos o próprio Estado ou os cidadãos. A isto se liga uma certa omissão na panóplia de penas acessórias, onde parece ignorar-se, estranhamente, a hipótese de «proibição de participar em arrematações ou concursos públicos de fornecimentos». Mas a isso nos voltaremos a referir adiante.
Quanto à excepção da al. b) do n.º 3 do art. 11.º, relativa às «entidades concessionárias de serviços públicos», crê-se ser totalmente ilegítima, já que permite, p. ex., a exclusão da responsabilidade das empresas (sociedades anónimas) concessionárias de exploração de serviços públicos os mais diversos, como a exploração de abastecimento de água, de transportes e auto-estradas, etc. E, para que dúvidas não restassem, a al. c) acrescenta que são também excepcionadas as «demais pessoas colectivas que exerçam prerrogativas de poder público». Ora, como é sabido, algumas daquelas empresas têm discutíveis – mas legais – prerrogativas de proceder à autuação de infracções contra-ordenacionais
[7], pelo que parece que estarão excluídas da responsabilidade. Julga-se, com o inerente risco de tal juízo, que, a vigorar tal excepção, se tratará de uma flagrante inconstitucionalidade.
Afigura-se, portanto, s. m. o., injustificada a exclusão das empresas públicas e de empresas concessionárias de serviços públicos.
Impor-se-ia, por outro lado, definir com maior precisão o significado da expressão da al. c) do n.º 3 «prerrogativas de poder público», sob pena de assumir um carácter tão vago que poderá incorrer em violação do princípio da taxatividade. Duvida-se que tal signifique poder sancionatório, pois se admite que sejam «demais pessoas colectivas…», sem restringir o conceito a entidades de direito público. Parece fora de dúvida que estarão contempladas na excepção as Ordens Profissionais, na medida em que, tendo poderes públicos delegados, exercem poderes disciplinares, designadamente de natureza sancionatória.
Quanto ao conceito de «organizações internacionais de direito público», pensa-se que se se pretende prever organismos por oposição às ONG´s (organizações não governamentais) se deveria empregar um termo mais técnico, como «organizações intergovernamentais de direito internacional público», compreendendo-se que assim seja, pela possibilidade de exercício de direito sancionatório sobre os próprios Estados que as integram. É evidente que a personalidade jurídica lhes é generalizadamente reconhecida, manifestando-se em face dos Estados-membros em geral, e em face do Estado hospedeiro, em particular.
A verdade é que a excepção não abrange as pessoas colectivas de direito internacional privado, como a Igreja Católica e outras organizações confessionais, bem como as ONG´s.
Um outro aspecto que importará clarificar e que será, possivelmente, objecto de controvérsia jurisprudencial, contende com o círculo de coincidência entre as entidades colectivas susceptíveis de responsabilidade penal no âmbito do Código Penal e no âmbito de outros regimes sancionatórios do direito penal secundário. Se é certo que, por exemplo, no âmbito do direito penal tributário são passíveis de responsabilidade entidades fiscalmente relevantes, no âmbito do Código Penal não o serão.
Por isso, a equiparação das “sociedades civis” e das “associações de facto”, na referência feita no n.º 5 aos «…efeitos de responsabilidade criminal…» só poderá, obviamente, ter alcance no elenco de crimes estabelecido no Código Penal, sendo ilegítima qualquer extrapolação de tal equiparação a outros domínios incriminatórios.
As pessoas colectivas e equiparadas são responsáveis pelos crimes previstos nos artigos seguintes:
152.º-A – Maus tratos (a menor ou pessoa particularmente indefesa),
152.º-B – Violação de regras de segurança (relativamente a trabalhador dependente),
159.º – Escravidão,
160.º – Tráfico de pessoas,
163.º a 166.º:
- Coacção sexual (163.º),
- Violação (164.º),
- Abuso sexual de pessoa incapaz de resistência (165.º), e
- Abuso sexual de pessoa internada (166.º),
sendo a vítima menor,
169.º – Lenocínio,
171.º a 176.º:
- Abuso sexual de crianças (171.º),
- Abuso sexual de menores dependentes (172.º),
- Actos sexuais com adolescentes (173.º),
- Recurso à prostituição de menores (174.º),
- Lenocínio de menores (175.º), e
- Pornografia de menores (176.º),
221.º – Burla informática e nas comunicações,
222.º – Burla relativa a trabalho ou emprego,
240.º – Discriminação racial, religiosa ou sexual,
256.º – Falsificação ou contrafacção de documento,
258.º – Falsificação de notação técnica,
262.º a 283.º:
- Contrafacção de moeda (262.º),
- Depreciação do valor de moeda metálica (263.º),
- Passagem de moeda falsa de concerto com o falsificador (264.º),
- Passagem de moeda falsa (265.º),
- Aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação (266.º),
- Títulos equiparados a moeda (267.º? – não se trata de verdadeira norma incriminatória),
- Contrafacção de valores selados (268.º),
- Contrafacção de selos, cunhos marcas ou chancelas (269.º),
- Pesos e medidas falsos (270.º),
- Actos preparatórios (271.º? também não é disposição incriminatória), - Incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas (272.º), - Incêndio florestal (273.º),
- Energia nuclear (274.º),
- [Punição de] actos preparatórios dos crimes dos artigos 272.º a 274.º (275.º),
- Instrumentos de escuta telefónica (275.º),
- Infracção de regras de construção, dano em instalações e perturbação de serviços (277.º),
- Danos contra a natureza (278.º),
- Poluição (279.º),
- Poluição com perigo comum (280.º),
- Perigo relativo a animais ou vegetais (281.º),
- Corrupção de substâncias alimentares (282.º), e
- Propagação de doença, alteração de análise ou de receituário (283.º),
285.º – trata-se de circunstância qualificativa agravante dos crimes previstos nos artigos 272.º a 274.º, 277.º, 280.º, ou 282.º a 284.º,
299.º – associação criminosa,
335.º – tráfico de influência,
348.º – desobediência,
353.º – violações de imposições, proibições ou interdições,
363.º – suborno,
367.º – favorecimento pessoal,
368.º-A – branqueamento, e
372.º a 374.º:
- Corrupção passiva para acto ilícito (372.º),
- Corrupção passiva para acto lícito (373.º), e
- Corrupção activa (374.º).
Este elenco de tipos penais, aparentemente exaustivo, gera alguma perplexidade, dado que não se entende como a ele permanecem subtraídos importantes tipos de crime contra o património, como o furto, o abuso de confiança, o dano, a burla, a usura e receptação, entre outros
[8].
Aparentemente, pode justificar-se o interesse de incluir neste elenco os crimes dos artigos 372.º e 373.º, pois que, tratando-se de um crime específico (sendo o seu agente funcionário), pode actuar em comparticipação ou em benefício de terceiros que o não sejam (a eles se comunicando a ilicitude) e, como tal, apesar de o ente colectivo público em nome de quem o mesmo actue estar excluído de responsabilidade – face ao estatuído na I parte do n.º 2 do art.11.º –, pode haver entidades exteriores representadas pelos referidos “terceiros”.
No n.º 4 do art. 11.º tenta definir-se o conceito de «posição de liderança», assimilando gerência de facto a representação e gerência de direito.
O critério de imputação estabelecido na al. b) do n.º 2 do art. 11.º pode suscitar dificuldades. Ali se consagra a regra de imputação da responsabilidade ao ente colectivo pela prática de crimes por pessoas que actuem sob autoridade de quem detenha «posição de liderança», em virtude da violação do dever de vigilância e controlo por parte destas. Em princípio, esse critério justificar-se-ia por se abrangerem condutas praticadas por quem não actue enquanto órgão ou representante do ente colectivo. Porém, ao prescindir aparentemente da exigência de que tal actuação seja no “interesse colectivo” coloca-se um problema de desnivelamento relativamente à exigência contida na alínea a), no sentido de a actuação do agente individual dever ser sempre no «interesse colectivo», ainda que presumido, indirecto ou mediato. Poderá a conduta ser assacada ao ente colectivo mesmo não sendo praticada pelo agente individual no seu interesse (nem em seu nome)?
Julgo que seria porventura conveniente esclarecer a exigência de que a actuação de qualquer quadro, empregado ou subordinado da pessoa colectiva ou entidade equiparada revista um interesse colectivo.
No n.º 5 procede-se à explicitação da equiparação – para efeitos da lei penal (leia-se, do Código Penal) – de outras entidades: sociedades civis e associações de facto. Na verdade, apesar de subsistir a discussão sobre a personalidade jurídica das sociedades civis, é inequívoco que elas serão criminalmente responsáveis (a par de situações já conhecidas no direito penal secundário).
Os n.ºs 6 e 7 consagram soluções pacíficas, no tocante à exclusão da responsabilidade do ente colectivo quando o agente actue contra ordens expressas de quem de direito e previsão da responsabilidade cumulativa.
O n.º 8 pretende regular a questão da subsistência da responsabilidade de entes colectivos caso se verifique a sua modificação formal
[9]. E tem integral pertinência no tocante às sociedades comerciais, quando ocorra a sua cisão ou fusão
[10]. Contudo, na previsão do preceito escapa a hipótese de «transformação». No caso de fusão, responderá a entidade em que a tal modificação se tiver efectuado. No caso de cisão, as entidades que dela resultarem, previsão que colocará entraves diversos, já que não se vislumbra uma responsabilidade plural, solidária ou voluntária, afigurando-se-nos aqui existir alguma artificialidade na solução. A solução prefigura-se, no entanto, de duvidosa aplicação no tocante a entidades equiparadas, dado que mesmo as sociedades civis não conhecem tais formas de modificação.
O n.º 9 oferece maiores dificuldades de análise. Parece consignar uma regra de responsabilidade civil subsidiária das pessoas que ocupem uma posição de liderança pelo pagamento das multas e indemnizações a que o ente colectivo for condenado. Tal responsabilização pressupõe a inexistência ou insuficiência de património do ente colectivo para garantir o pagamento das [penas de] multas e de indemnizações.
Pensamos que a expressão «indemnizações» só se poderá referir a «indemnização civil», cujo exercício terá de ser efectivado nos termos dos artigos 77.º a 82.º do Cód. Proc. Penal ou quando for arbitrada nos termos do art. 82.º-A do mesmo diploma.
De salientar que tal responsabilidade pelo pagamento das multas e indemnizações impende sobre pessoas com posição de liderança, ainda que não sejam responsabilizadas relativamente a crimes concretamente verificados e praticados:
- no período de exercício do cargo, sem a sua oposição expressa (n.º 8 al. a));
- praticados anteriormente (ao período de exercício do cargo) quando 1) tiver sido por culpa sua que o património do ente colectivo se tornou insuficiente para o pagamento (n.º 8 al. b)) ou 2) a decisão definitiva de as aplicar tiver sido notificada durante o período de exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento(n.º 8 al. c)).
O n.º 10 plasma a regra da solidariedade pela responsabilidade civil subsidiária
[11].
No n.º 11 prevê-se a hipótese de a pena de multa (e indemnização?) ser aplicada a entidade sem personalidade jurídica – que, como vimos, serão as sociedades civis e as associações de facto (n.º 5) e certas organizações internacionais de direito privado desprovidas de personalidade – e o seu património ser insuficiente ou inexistente, respondendo, nesse caso, solidariamente, o património de cada um dos associados
[12] [13].
II. O sistema sancionatório. “Reacções penais” pareceria ser a designação mais apropriada para nomear as sanções criminais aplicáveis a Entes Colectivos pela prática dos factos ilícitos típicos previstos no artigo 11.º, n.º 2. Aquela designação teria a vantagem de evitar a vexata quaestio sobre a (im)possibilidade de sensibilização de um Ente Colectivo para os valores do Direito ou sobre a necessidade de “ressocialização” – pressupostos teleológicos de aplicabilidade de penas, cuja verificação se exige quando se trata de pessoas humanas –, o que uma designação mais equívoca, como seja a de “penas”, não conseguirá fazer.
De qualquer modo, atendendo a que tal designação consta dos diversos regimes sancionatórios penais dos sistemas já instituídos no âmbito do direito penal secundário, não se afigura especialmente problemática tal opção.
O elenco de penas aplicáveis a pessoas colectivas e equiparadas acha-se estratificado em três categorias
[14] nos artigos 90.º-A e 90.º-C a 90.º-E, a saber:
1 - penas principais: 1-a) multa e 1-b) dissolução;
2 - penas substitutivas: 2-a) admoestação, 2-b) caução de boa conduta e 2-c) vigilância judiciária;
3 - penas acessórias: 3-a) injunção judiciária, 3-b) interdição do exercício de actividade, 3-c) proibição de celebrar certos contratos ou contratos com determinadas entidades, 3-d) privação do direito a subsídios, subvenções ou incentivos, 3-e) encerramento de estabelecimento, e 3-f) publicidade da decisão condenatória.
No que toca à opção por duas – apenas duas – penas principais, parece-nos desajustado prever apenas a multa e a dissolução, pela assimetria dos respectivos pressupostos e efeitos. Ficará a sensação do tudo e do nada, sem outra(s) pena(s) intermédia(s). Para além de haver algumas das penas acessórias que seriam conjecturáveis como principais – interdição do exercício de actividade, encerramento de estabelecimento – poderiam considerar-se outras, porventura bem mais adequadas, p. ex., poderiam prever-se a «exclusão de qualquer benefício fiscal concedido ou em fase de apreciação», a «proibição de celebrar contratos de natureza pública» e outras.
Em bom rigor, as penas substitutivas aparecem apenas como alternativas à pena de multa, que é a reacção penal por excelência mais adequada às pessoas colectivas e equiparadas.
Por outro lado, as penas acessórias são cumuláveis com a pena de multa, não fazendo sentido serem aplicadas em concurso com a pena de dissolução, exceptuando talvez a pena de publicidade da decisão condenatória.
Deve salientar-se que a violação de tais penas implica a susceptibilidade de responsabilização do ente colectivo pelo crime de «Violação de imposições, proibições ou interdições» (art. 353.º), aplicável nos termos do art. 11.º, n.º 2.
Em lado algum do Projecto está previsto que possa ocorrer a suspensão da execução de qualquer das penas previstas para entes colectivos, parecendo-nos ser ilegítima – por totalmente incongruente com os respectivos pressupostos e finalidades – a possibilidade de analogia com o regime de suspensão da pena de prisão.
No art. 3.º das disposições que presuntivamente integrarão o diploma preambular que vai prever as alterações, prevê-se que o Capítulo VI do Título III do Livro I do Código Penal – composto pelos artigos 90.º-A a 90.º-M – se passe a denominar «Pessoas Colectivas».
Surpreendem-se aqui duas incoerências: em primeiro lugar, não estarão apenas em causa “pessoas colectivas”, podendo estar em questão a responsabilização de “entidades equiparadas”, desprovidas de personalidade jurídica
[15]; em segundo lugar, esse Capítulo integrará a panóplia das reacções penais propriamente ditas e não o regime geral de imputação jurídico-penal dos entes colectivos, que vem plasmado no art. 11.º nºs 2 a 11.
Há que apontar, ainda, uma incongruência de sistemática expositiva, uma vez que a enumeração dos diversos regimes das penas acessórias não corresponde à sequência da lista do art. 90.º-A, devendo a pena de interdição do exercício de actividade ser elencada a seguir à de injunção judiciária.
No art. 90.º-B regula-se a pena de multa.
Estabelece-se uma regra geral de conversão da pena de prisão aplicável às pessoas físicas, correspondendo um mês de prisão a um período de 10 dias de multa.
Assim, a cada ano de prisão corresponderá a pena de 120 dias de multa aplicável a entes colectivos, devendo considerar-se o período de 10 dias (de multa) como o limite mínimo da mesma (art. 41.º, n.º 1 do Código Penal).
O n.º 5 rege, simultaneamente, os limites mínimo e máximo das quantias de dias/multa e a aplicabilidade dos regimes de pagamento em prestações, de alteração (prorrogação) e de vencimento imediato das prestações por falta de pagamento de uma delas, por remissão para o disposto nos n.ºs 3 a 5 do art. 47.º.
Julga-se, a este propósito, que seria preferível estabelecer os limites dos quantitativos da pena de multa num número e a remissão para a correspondência do regime dos n.ºs 3 a 5 do art. 47.º num número diverso.
O n.º 5 consagra os limites diários mínimo e máximo da pena de multa: são de € 100,00 e de € 10.000,00, respectivamente. Mas suscita também uma observação que contende com o critério de fixação da multa pelo tribunal em função dos encargos com os trabalhadores, devendo prever-se encargos de outra natureza.
No n.º 6 consagra-se o regime da execução coerciva da pena de multa, ali se prevendo o não pagamento de “alguma das suas prestações”, o que só pode significar tratar-se da “última” das prestações, pois que, nos termos do número anterior (n.º5), ao remeter-se para o n.º 5 do art. 47.º, tem de concluir-se que, se for uma prestação intermédia, se opera o vencimento imediato das restantes.
O art. 90.º-C contempla a hipótese de aplicação da pena (substitutiva) de admoestação, que é condicionada às exigências de 1) dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 240 dias, 2) estar reparado o dano e 3) de o ente colectivo ser «primário», o que resulta da remissão para o art. 60.º, n.ºs 2 e 3. O n.º 2, por seu turno, prevê o modo como se executa a admoestação: através de uma censura oral feita em audiência ao representante legal da pessoa colectiva ou entidade equiparada ou, na falta dela, a outra pessoa que nela ocupe uma posição de liderança. É precisamente este último segmento da norma que se crê poder implicar maiores óbices. Parece que quando a norma se refere a «representante legal» prevê a hipótese, mais plausível, de se tratar de agente individualmente também acusado. A segunda hipótese acautela situações em que tal não ocorre e julga-se discutível que alguém – que “ocupe uma posição de liderança” mas que não tenha tido qualquer intervenção processual – deva ser convocado para ouvir a censura solene. Não sendo anunciado o critério de selecção da pessoa a seleccionar, qual a opção que o tribunal deve fazer?
Teria sido preferível condicionar a aplicação da admoestação, igualmente, à presença no processo, como “co-arguido”, de representante do ente colectivo.
Ocorre, no entanto, dizer que, neste conspectu, já oportunamente nos pronunciámos quanto à inadequação da pena de admoestação a entes colectivos
[16].
A caução de boa conduta é uma outra pena substitutiva, prevista no art. 90.º-D, à semelhança da consagrada no art. 10.º do Dec.-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, contemplando-se a hipótese de «quebra» – caso seja praticado novo crime no decurso do prazo (n.º 2) – as modalidades e as condições de revogação (n.º 3), na hipótese de não prestação tempestiva (n.º 4), nada de especial se oferecendo dizer sobre tal inovação normativa. É sempre condicionada à aplicação de uma pena de multa em medida não superior a 600 dias (correspondente a cinco anos de prisão, de acordo com a regra do art. 90.º-B, n.º2).
No art. 90.º-E prevê-se uma solução efectivamente inovadora, ao contemplar a pena substitutiva de vigilância judiciária. É igualmente condicionada à aplicação em concreto de uma pena de multa em medida não superior a 600 dias.
O acompanhamento de fiscalização da actividade do ente colectivo por representante judicial sem poderes de gestão é uma inequívoca inovação conceptual. Será, no entanto, necessário definir se tal figura exigirá regulamentação específica ou se poderá haver recurso, p. ex., às listas de liquidatários judiciais de insolvência.
Parece-nos também que a redacção do n.º 3 não trará dificuldades de maior no que toca a pessoas colectivas, o que já não sucederá no tocante a entidades desprovidas de personalidade jurídica ou sem substrato material.
O representante judicial funcionará, assim, como uma espécie de oficial de probation, cuja concreta delimitação de atribuições não se antevê isenta de dificuldades.
A hipótese de revogação é regulada no n.º 4.
O art. 90.º-F consagra a pena de dissolução, condicionada à eventualidade de “…a pessoa colectiva ou entidade equiparada tiver sido criada com a intenção exclusiva ou predominante de praticar os crimes indicados no n.º 2 do artigo 11.º ou quando a prática reiterada de tais crimes mostre que a pessoa colectiva ou entidade equiparada está a ser utilizada, exclusiva ou predominantemente, para esse efeito, por quem nela ocupe uma posição de liderança”.
No que respeita à pena de dissolução confrontamo-nos com a sua admissibilidade no positivo
[17], sufragando MÁRIO PEDRO MEIRELES
[18] a posição de que a sua previsão deve ser desdramatizada, não afrontando qualquer limite ou norma constitucional, mormente no que toca à plausível analogia com a metáfora da «pena de morte» da pessoa colectiva, ao passo que GONÇALO MELO BANDEIRA defende, abertamente, a sua eliminação, por considerá-la «uma espécie de pena de morte das pessoas colectivas»
[19].
Sem nos querermos eximir a tomar partido nessa discussão – mas não o fazendo por exceder o alcance do presente trabalho –, haverá a notar que nos parece inviável conceber, per rerum natura, a pena de dissolução para entes colectivos desprovidos de personalidade
[20].
Por isso, a sua previsão não devia ser extensiva a [todas as] «entidades equiparadas».
No art. 90.º-G prevê-se a aplicabilidade – como pena acessória – da injunção judiciária, sendo certo que não se assinala um prazo máximo de execução da mesma, o que nos parece inconveniente. Não se nos oferece fazer, no mais, substanciais objecções quanto a tal pena.
O art. 90.º-H, que contempla a hipótese de aplicação de pena acessória de proibição de celebrar certos contratos ou contratos com determinadas entidades, deveria circunscrever as condições e pressupostos de aplicabilidade desta pena acessória, delimitando-se o tipo de contratos e o universo de entidades – presuntivamente de natureza pública, maxime o Estado – com quem fosse proibido contratar, sendo difícil conceber que tal proibição seja aplicável a «entidades equiparadas».
No art. 90.º-I é admitida a aplicabilidade da pena de privação do direito a subsídios, subvenções ou incentivos. Para este efeito, deveria definir-se os conceitos de «subsídio», «subvenção» e «incentivo», à semelhança do que ocorre, de resto, no art. 21.º do Dec.-Lei n.º 28/84, podendo ser extensivo a «benefícios fiscais».
A pena de interdição do exercício de actividade está consagrada no art. 90.º-J.
Ao prever-se a interdição definitiva (n.º 2), tal pode significar, na prática, uma pena de dissolução mascarada O n.º 3 pretende mitigar o efeito irreversível de tal sanção, parecendo sugerir que, afinal, a interdição não é assim tão definitiva, pois que aí se admite a reabilitação.
Idênticas críticas são extensivas à pena prevista no artigo seguinte, 90.º-L – encerramento de estabelecimento. Aliás, como se referiu em nota anterior, GONÇALO MELO BANDEIRA concebe, igualmente, que as penas acessórias de encerramento – definitivo ou temporário – de estabelecimento ou depósito, previstas no artigos 8.º, als. i) e j) do Dec.-Lei n.º 28/84 e 16.º al. e) do RGIT, podem configurar verdadeiras penas de dissolução de facto das pessoas colectivas, o que recomendaria a sua classificação como penas principais.
A objecção pode não ser inteiramente procedente, uma vez que tais penas serão igualmente aplicáveis a indivíduos, mas não deixa de ser relevante. Na verdade, no artigo 90.º-M – quando ali se fala na publicidade da decisão condenatória –, parece que a mesma é restringida às penas de interdição do exercício de actividade e de encerramento de estabelecimento pertencente apenas a «pessoa colectiva ou entidade equiparada» já que se alude no n.º 2 a «… expensas da condenada,», indiciando que os indivíduos a elas estarão subtraídos.
No tocante à pena acessória de publicidade da decisão condenatória – a expensas da condenada (art. 90.º-M) –, deverá salientar-se que acolhe uma muito discutível opção, ao impor-se obrigatoriamente a sua cumulação com duas penas acessórias – interdição do exercício de actividade e de encerramento de estabelecimento (artigos 90.º-J e 90.º-L) – e apenas facultativamente quanto às penas principais (n.º1).
Deve, ainda, realçar-se a omissão de previsão no caso de incumprimento ou de cumprimento defeituoso por parte da «condenada»
[21], hipótese que deveria ser expressamente acautelada.
III. Considerações finais Obviamente que um Projecto legislativo como o apreciado não pode resolver todas as questões que contendem com a problemática da responsabilidade penal de entes colectivos. Contudo, apesar de se prever expressamente que as modificações formais de pessoas colectivas – cisão e fusão – não extinguem a responsabilidade criminal, na verdade, a sua alusão parece só poder referir-se a sociedades.
Todo o feixe de questões que se prende com os termos da definição do «início» e do «fim da vida» do ente colectivo fica por regular.
Pensa-se ter havido algum arrojo na consagração da teoria do défice de organização (art. 11.º n.º 3 al. b)), o que pode suscitar objecções de tomo, sendo, no entanto, uma clara evolução face ao regime punitivo de entes colectivos que continuará a vigorar em diversas áreas de incriminação do direito penal avulso
[22].
Subsistirão, também, as dificuldades de determinação da imputação subjectiva, por referência ao tipo subjectivo de actuação dos agentes individuais: será feita por referência à ordem dada pelo titular do órgão, pelo representante, pelo técnico que preparou uma decisão, pelo trabalhador que a executou, por qualquer deles, pela mais grave?
No tocante à extensão do âmbito de punibilidade e comunicabilidade da ilicitude, o Projecto não toma posição, estando vocacionado para a ocorrência padrão da relação imediata que se estabelece entre a pessoa colectiva ou equiparada e o agente individual, mas não já quando se estabeleça uma relação mediata. Ficam por definir as circunstâncias e formas de imputação da responsabilidade quando se esteja, por exemplo, perante situações de subcontratação ou sub-subcontratação.
Por outro lado, seria também curial consagrar no diploma respectivo as normas atinentes ao registo criminal de entes colectivos, elemento essencial para aferir da (im)possibilidade de aplicar a pena substitutiva de admoestação (cfr. art. 90.º-C, n.º 1).
Pareceria avisado ponderar a hipótese – porque a solução proposta se nos afigura incongruente com os princípios e a própria teleologia do regime – de ampliar a punibilidade de entes colectivos a outros ilícitos patrimoniais.
Acresce que bem poderiam ser aditadas as penas de «proibição de prestação de serviços» e «de fornecimento de bens ou serviços, adjudicação de obras públicas e empreitadas», bem conhecidos do Dec-Lei n.º 28/84 de 20 de Janeiro (artigos 8.º, alíneas e) e f), 13.º e 14.º) e do RGIT (art. 16.º, al. d), respectivamente).
Seria desejável e oportuno que, após a consagração de um sistema sancionatório de Entes Colectivos no âmbito do Direito Penal de Justiça se não ignorasse, no decurso dos trabalhos de revisão do Código de Processo Penal, a consideração específica de normas adjectivas atinentes, p. ex., à representação processual, a medidas de coacção e ao modo de execução das penas aplicáveis, aspectos que são totalmente omissos na última versão da Proposta de Lei n.º 109/X (pub. in D.A.R. II Série A, de 23 de Dezembro de 2006).
Tomando como exemplo acontecimentos recentes (p. ex., «Caso Afinsa»), seria de todo em todo conveniente que fosse ponderada a hipótese de aplicação de medidas de coacção, que atendendo às especificidades do ente colectivo objecto de procedimento criminal, permitissem a nomeação de «representante provisório», a fim de prosseguir o giro normal e possível, acautelando interesses de terceiros e do próprio ente colectivo.
Enfim, o passo qualitativo que o (nosso) sistema penal vai ensaiar parece ser de aplaudir, sem embargo de se vislumbrarem pontuais dificuldades operativas que sempre surgem nos primeiros momentos de aplicação de um tão relevante e inovador regime como o que se acaba de percorrer com a incipiência que caracteriza o nosso excurso, para cujas debilidades requeremos indulgência.
Braga, Abril de 2007
NOTAS:
[1] Publicada no 2.º Suplemento do Diário da Assembleia da República, de 18/10/2006 – II Série A n.º 10, pp. 2-129. As apreciações que serão feitas no presente texto caracterizam-se por alguma superficialidade imputável à falta de tempo sobretudo para efectuar uma análise comparatística minimamente aprofundada, antecipadamente pedindo a compreensão e benevolência dos leitores. De resto, trata-se de considerações muito próprias de um prático, e que veiculam um olhar crítico e pragmático.
[2] Neste sentido, para além das posições historicamente mais datadas dos Professores Cavaleiro de Ferreira e Cortes Rosa, cfr. a opinião exarada em votos de vencido nos acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 212/95 e 213/95, pela Senhora Conselheira Assunção Esteves.
[3] Em Espanha admite-se a imposição de consecuencias acessorias contra a empresa, enumeradas no art. 129.º do Código Penal, decorrente da condenação de um titular ou representante por tipo de autoria consumado, segundo parte maioritária da doutrina, e por tipos de tentativa, desde que puníveis nos termos gerais, segundo parte menos expressiva de autores. Cfr. sobre a questão MARTÍNEZ-BUJAN, Derecho Penal Económico y de la Empresa, Tirant Lo Blanch, Barcelona, 2007, pp. 549-565.
[4] De todo o modo, abandona-se uma estrita construção de responsabilidade derivada da responsabilidade dos órgãos ou representantes (pessoas com posição de liderança) para a alargar às condutas de agentes que, não o sendo, actuem sob a autoridade daqueles, em consequência de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo. É, parece-nos, a consagração do critério de imputação construído sobre a teoria da culpa por défice de organização, preconizada por KLAUS TIEDEMANN.
[5] Referimo-nos à Proposta de Lei n.º 151/IX, que previa a consagração do regime de punibilidade de entes colectivos num diploma avulso, tendencialmente aplicável apenas a tipo de crime previstos no Código Penal, a qual, por conhecidas vicissitudes político-governativas, não teve qualquer (con)sequência.
[6] As quais, de todo o modo, são incluídas na fórmula «Pessoas colectivas de direito público», previstas na excepção da al. a) do n.º 3.
[7] Muito embora a sua tramitação e eventual aplicação da sanção caiba a organismos de direito público.
[8] Constata-se que, ao invés, foram suprimidos de um projecto inicial crimes como o de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos e de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários (artigos 150.º, n.º 2 e 156.º), opção que se crê discutível, no sentido de manifestarmos dúvidas pessoais sobre a legitimidade da opção afirmativa.
[9] Esta disposição constitui um aditamento relativamente à Proposta da U.M.R.P. originariamente divulgada.
[10] Aceitando, genericamente, a doutrina do Ac. de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. n.º 5/2004, circunscrito a matéria com relevância contra-ordenacional, e que decidiu que «a extinção, por fusão, de uma sociedade comercial, com os efeitos do art. 112.º, alíneas a) e b), do Código das Sociedades Comerciais, não extingue o procedimento por contra-ordenação praticada anteriormente à fusão, nem a coima que lhe tenha sido aplicada».
[11] Artigos 512.º e 513.º do C. Civil: a obrigação é solidária quando, cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera.
[12] A solução é já conhecida no âmbito do direito penal secundário (art. 7.º, n.º 5 do Dec.-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro e 7.º, n.º 5 do RGIT).
[13] Crê-se que, sem prejuízo de melhor reflexão, a responsabilização (mesmo solidária) de associados também condenados também no processo pode suscitar dúvidas sobre a possibilidade de violação do princípio non bis in idem.
[14] É o seguinte o teor da norma:
Artigo 90.º-A
Penas aplicáveis às pessoas colectivas
1 - Pelos crimes previstos no n.º 2 do artigo 11.º, são aplicáveis às pessoas colectivas e entidades equiparadas as penas principais de multa ou de dissolução.
2 - Pelos mesmos crimes podem ser aplicadas às pessoas colectivas e entidades equiparadas as seguintes penas acessórias:
a) Injunção judiciária;
b) Interdição do exercício de actividade;
c) Proibição de celebrar certos contratos ou contratos com determinadas entidades;
d) Privação do direito a subsídios, subvenções ou incentivos;
e) Encerramento de estabelecimento;
f) Publicidade da decisão condenatória.
[15] A designação deveria ser, portanto, «Penas aplicáveis a pessoas colectivas e equiparadas».
[16] Cfr. JORGE REIS BRAVO, «Incidências processuais da Punibilidade de Entes Colectivos», in RMP, 105, p. 95: “A admoestação e a execução da pena de multa não colocam problemas específicos, para além, claro está, da natural inadequação daquela, quando aplicada a entes colectivos”.
[17] Enquanto o Dec.-Lei n.º 28/84 a concebe como pena principal (art. 7.º, n.º 1, al. c)), o RGIT classifica-a como pena acessória (art. 8.º, al. h)).
[18] Cfr., «Sanções das (e para as) pessoas colectivas», in RPCC, Ano 10 – Fasc. 4, Out.º-Dez.º, 2000.
[19] “Responsabilidade” Penal Económica e Fiscal dos Entes Colectivos…, Almedina, 2004, p. 191 (nota 474). Aliás, este Autor concebe, igualmente, que as penas acessórias de encerramento – definitivo ou temporário – de estabelecimento ou depósito, previstas no artigos 8.º, als. i) e j) do Dec.-Lei n.º 28/84 e 16.º al. e) do RGIT, podem configurar verdadeiras penas de dissolução de facto das pessoas colectivas, o que recomendaria a sua classificação como penas principais. Porém, deve lembrar-se que tais penas podem ser, também, aplicadas a indivíduos.
[20] Sobre a operacionalidade parcial da pena de dissolução, considerando-a inaplicável a entes colectivos sem personalidade jurídica, cfr. MÁRIO PEDRO MEIRELES, loc. cit., p. 524. Parece ser esse o inequívoco fundamento da disciplina do art. 16.º, al h) do RGIT, ao prever a susceptibilidade de aplicar a pena (acessória) de “dissolução” apenas a pessoas colectivas, e não já a “sociedades irregularmente constituídas e outras entidades fiscalmente equiparadas”, às quais é aplicável a pena (principal) de multa (art. 12.º, n.º 2 do RGIT).
[21] Tem-se entendido que a execução coerciva passaria pela publicação a expensas do CGT, procedendo-se, posteriormente, à cobrança do respectivo montante em sede de execução por custas, mas teria sido preferível uma expressa previsão nesse sentido.
[22] É certo que o art. 95.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (Regime Jurídico das Armas e Munições) já consagra essa mesma teoria:
«1 - As entidades colectivas, qualquer que seja a sua forma jurídica, são responsáveis pelos crimes previstos nos artigos 86.º e 87.º, quando cometidos em seu nome ou no interesse da entidade pelos titulares dos seus órgãos no exercício de funções ou seus representantes, bem como por uma pessoa sob a autoridade destes, em seu nome e no interesse colectivo, ou quando o crime se tenha tornado possível em virtude da violação de deveres de cuidado e vigilância que lhes incumbem.
2 – (…)».
No entanto, o art. 6.º, n.º 1 da Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto (Lei Anti-Terrorismo) exige um nexo de imputação subjectiva de natureza dolosa, ao referir «As pessoas colectivas,….são responsáveis pelos crimes…quando cometidos pelos seus órgãos ou representantes, ou por uma pessoa sob a autoridade destes quando o cometimento do crime se tenha tornado possível em virtude de uma violação dolosa dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem».