segunda-feira, junho 25, 2007

As buscas como meio de obtenção de prova

(texto de Ana Marta Crespo, para a sessão de 13 de Novembro de 2006)

Uma das ideias mais importantes decorrentes do contrato social de que somos herdeiros é, como é por demais sabido, a renúncia à Justiça privada com os perigos implícitos do talião, passando essa punição para a esfera pública. Ainda assim, este poder dado ao Estado não pode ser discricionário, sobretudo na área penal, em que as sanções ganham um carácter mais drástico que noutros ramos do Direito.[1]

O juiz, a final, terá de decidir fundamentadamente (art. 205.º da Constituição Portuguesa, doravante CRP, e art. 97º, n.º 4, do Código de Processo Penal, doravante CPP), o que implica a análise crítica da prova que incidirá sobre os factos juridicamente relevantes para a existência do crime, punibilidade ou não punibilidade do arguido e determinação da pena ou de medida de segurança, o chamado “thema probandum”– art. 124º do CPP. Ora, a racionalidade e fundamentação da sentença dependem de uma fundamentação pela prova. O CPP pôs, assim, ao serviço da verdade material processualmente válida[2], um acervo de meios de prova e meios de obtenção de prova, cfr. arts. 128º e ss. do CPP, indo até mais longe do que noutros países, ao proclamar a liberdade de escolha dos meios de prova, desde que não proibidos por lei (art. 125º CPP), ideia não tão despicienda como uma análise mais superficial possa indiciar.

A busca é, na própria sistemática do CPP, um meio de obtenção de prova que mais não visa que a recolha da informação relativa a um crime indiciado. [3] Não nos esqueçamos aqui da diferença entre meios de prova e meios de obtenção de prova, já que estes últimos são meios que procuram possibilitar o contacto com a prova propriamente dita, que deva ser carreada para o processo e que nos leve a aceder à verdade material tão cara ao processo penal.

Dispõe-nos o art. 174º, n.º 2, do CPP, que a busca pode ser ordenada para se realizar em local reservado ou não livremente acessível ao público, quando haja indícios (distinguindo-se das meras suspeitas) de que os objectos referidos atrás, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram lá.[4]

Ora, o que se vem de dizer coloca-nos perante um problema óbvio de compatibilização de direitos. Com efeito, sendo a busca realizada em “local reservado ou não livremente acessível ao público”, adensam-se aqui os problemas de concordância prática entre a perseguição estadual dos criminosos e da própria realização da justiça, por um lado, e a reserva de intimidade da vida privada dos cidadãos ( art. 26º, n. º1, da CRP, art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, art. 12º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e Cidadão e 17º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos) e, em alguns casos, o próprio direito que cada cidadão tem à inviolabilidade do seu domicílio. por outro (arts. 34º, n.º 1, da CRP, 82.º a 88.º do Código Civil – CC – e 190.º do Código Penal - CP). É neste contexto de necessidade de limitar ao necessário a violação de direitos fundamentais que temos de entender o recorte legislativo processual do regime das buscas. De resto, é com alicerce nesta ideia que o art. 126º, n.ºs 1 e 3, do CPP consagra a nulidade da prova (e, portanto, a sua inaproveitabilidade) quando obtida com intromissão abusiva na vida privada e domicílio, o que, de resto, é uma concretização na lei processual ordinária do que já se impunha pelo preceituado no art. 32.º, n.º 8, da Lei Fundamental.

É certo que isto nos coloca, desde logo, perante a difícil tarefa de definir o que será a intimidade da vida privada. O Parecer da Procuradoria Geral da República (PGR) n.º 121/80 poderá ajudar-nos nessa mesma interpretação, quando diz que a vida privada “ compreende aqueles actos que, não sendo secretos em si mesmos, devem subtrair-se à curiosidade pública por naturais razões de resguardo e melindre, como os sentimentos e afectos familiares, os costumes da vida e as vulgares práticas quotidianas, a vergonha da pobreza e as renúncias que ela impõe e, até, por vezes, o amor da simplicidade, a parecer desconforme com a grandeza dos cargos e a elevação das posições sociais; em suma tudo: sentimentos, acções e abstenções, que podem ser altamente meritórios do ponto de vista da pessoa a que se referem mas que, vistos do exterior tendem a apoucar a ideia que delas faz o público em geral.”

Assim, a perseguição punitiva do Estado tem limites óbvios, sendo as regras relativas à prova um importante capítulo a atender nesta matéria, sobretudo tendo o nosso sistema optado pelo acusatório.

No que tange aos requisitos de realização das buscas, a regra, nas não domiciliárias, é de que as mesmas terão der ser autorizadas ou ordenadas pela autoridade judiciária, que lhes deve presidir sempre que possível (art. 174º, n.º 3 do CPP). Realce-se, a este propósito, que, de uma leitura atenta dos arts. 268.º, 269.º a contrario sensu e 174.º, n.º 3, do CPP, se extrai a conclusão que, nas buscas não domiciliárias, a competência originária para autorização e validação das mesmas caberá ao Ministério Público (M.P.), já que este tipo de buscas não consta da lista dos actos que competem ao juiz de instrução autorizar ou validar, em sede de inquérito. Claro que, se se já estiver na fase de instrução, o cenário, como se sabe, muda. Não obstante a regra da autorização por entidade judiciária, tais diligências processuais poderão ser ordenadas pelos Órgãos de Polícia Criminal – OPC – nos casos previstos nas alíneas do art 174.º, nº 4, do CPP:

- terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja suspeita fundada da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou integridade física de qualquer pessoa, caso em que a realização da diligência deve ser imediatamente comunicada ao juiz, em ordem à sua validação, e sob pena de nulidade (cfr. n.º 5 do aludido preceito legal). Não olvidemos, no entanto, que esta é uma nulidade sanável quando não arguida, porquanto não se trata de um método absolutamente proibido de prova.[5] Estaremos aqui no âmbito de crimes como os dos arts. 299.º, 300.º e 301.º do CP; art. 51º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, quanto aos crimes dos seus arts. 21.º a 24.º e ainda 28.º; e ainda todos os crimes contra a vida e integridade física de qualquer pessoa.[6] Questão mais delicada nesta sede é a relativa aos termos desta validação e, em particular, se a mesma poderá ser feita de modo implícito. O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) tem vindo a dar resposta positiva a esta inquietação, embora entenda que a validação implícita se deve revelar inequivocamente.[7]

- o consentimento do visado; Mas, como refere ANA LUÍSA PINTO[8], «Uma das questões mais discutidas pela jurisprudência portuguesa relativa às buscas, designadamente as domiciliárias, é a de saber quem é que pode dar o consentimento exigido pelo CPP e pela Constituição. Encontramos algumas decisões do Supremo Tribunal de Justiça (como os Acórdãos de 26 de Novembro de 1992, de 11 de Março de 1993, e de 8 de Fevereiro de 1995) que afirmam que a pessoa que deve dar consentimento à realização da busca é a que for titular do direito à inviolabilidade do domicílio, ou seja, a pessoa que tiver a disponibilidade do lugar onde a diligência se realize. Concretizando este entendimento, a segunda decisão mencionada concluiu que não havia abusiva intromissão no domicílio num caso em que o consentimento foi dado pelo pai do arguido, que era dono da casa onde se realizou a diligência. Por seu turno, o Tribunal Constitucional veio densificar o conceito de visado, em situações mais complexas como as de partilha da mesma habitação por várias pessoas. No Ac. n.º 507/94 (…) Considerou o tribunal que não basta o consentimento de um qualquer co-domiciliado que tenha a disponibilidade da habitação. A reserva da intimidade privada impõe que não se possa prescindir do consentimento do visado pela medida probatória. Repudiou-se assim o entendimento de que “quem pode vender, doar, ou abandonar a habitação deve poder autorizar, com exclusividade, o acesso ou a devassa da mesma e a intromissão de terceiros». No que concerne à forma que este consentimento deve revestir, entendemos que o mesmo tem de ser expresso, uma vez que a lei prescreve a exigência da sua documentação. Quanto ao momento em que deve ser prestado, entendem, alguns AA., que o consentimento poderá ser dado quer antes quer depois da diligência (veja-se o Ac. RL de 13.01.2000 na CJ XXV, T1, pag.137), ficando essa circunstância documentada, ainda que posteriormente, ao invés de outros, que entendem que terá sempre de ser ofertado antes da diligência. Questão que parece trazer maiores perplexidades é a do grau de esclarecimento exigido a quem presta o seu consentimento para que se possa afirmar a sua validade. Parece que, atento o carácter causal das buscas, como mínimo denominador comum, deverão constar as informações do objectivo da diligência, do local visado com a identificação possível (mais extensa num apartamento com nº de polícia, menos completa num caso de tendas, por exemplo) e o direito do visado a não dar consentimento à sua realização e de nomear pessoa da sua confiança para presenciar o acto, sendo que no restante existirão divergências entre os mais e os menos garantísticos, havendo aqui lugar a discussões, como da necessidade ou não de o despacho identificar desde logo quem tem a disponibilidade do lugar, entre outras. A propósito de consentimento, tem-se ainda colocado outra questão: a de saber se é obrigatória ou não a presença do visado. O Supremo Tribunal e o Tribunal Constitucional já se pronunciaram no sentido da não obrigatoriedade da sua presença e consentimento, desde que haja prévia autorização judicial.[9]

-detenção em flagrante delito a que corresponda prisão.[10]

Quanto ao prazo de validade deste despacho que autoriza as buscas, o art. 174.º, n.º 4, a ser aprovada a versão do anteprojecto de revisão do CPP, passa a estatuir que o mesmo terá um prazo de validade máxima de 30 dias, sob pena de nulidade.

Ademais destes formalismos e pressupostos ínsitos no art 174.º do CPP, há ainda que atentar nas formalidades prescritas pelo art 176º CPP para este meio de obtenção de prova.

Assim, deve ser entregue a quem disponha do local cópia do despacho que ordenou ou autorizou a busca, com a menção de que pode assistir à diligência e fazer-se acompanhar de pessoa da sua confiança. Na falta de pessoa que disponha do local, haverá ainda assim que atender ao n.º 2 daquele art. 176º. Obviamente que, nas buscas sem autorização prévia, nada existe pelo que nada há a entregar, e neste caso impõe-se a necessidade de consentimento do visado, excepto nos casos de terrorismo, criminalidade violenta ou organizada, ou de flagrante delito. Sobre os elementos que deverá conter este despacho confrontar o referido a propósito do consentimento.


Preocupações acrescidas nos trazem, compreensivelmente, atentos os valores em causa, as buscas domiciliárias, em escritório de advogado ou consultório médico e estabelecimento oficial de saúde.

Comecemos pelas buscas domiciliárias. Ao contrário das buscas não domiciliárias[11] (automóveis, quintais, oficinas[12],etc), a inviolabilidade do domicílio e a reserva da intimidade da vida privada, com assento inclusivamente constitucional, não poderiam deixar de ter reflexos no desenho de um regime especial para as buscas realizadas naquilo que tenhamos por “domicílio”. É na senda destas preocupações que o art. 177.º do CPP estabelece algumas particularidades de regime.

Mas porque as palavras são polissémicas, surgem aqui algumas dúvidas sobre o alcance das expressões de “casa habitada ou sua dependência fechada”, já que não poderemos reconduzir o que devamos ter por domicílio em sede de buscas ao conceito civilístico plasmado nos arts 82º ss CC. Mas, se na maioria das vezes, não teremos dúvidas em afirmar que é domicílio a casa ou apartamento onde se vive, situações há que não se mostram de tão líquido apuramento do conceito. É, precisamente, nesses casos que a delimitação jurisprudencial nos pode, de alguma forma, ajudar a balizar as fronteiras do mesmo.

Assim, no que diz respeito à concepção de domicílio, duas posições são possíveis: ou se adopta uma noção ampla de domicílio, como “projecção espacial da pessoa”[13], e, nesta medida, ser-se-á mais proteccionista, uma vez que um maior número de situações caberão nas balizas do conceito, beneficiando do regime mais proteccionista do art. 177.º do CPP, ou, ao invés, se adopta uma concepção restrita de domicílio, e, nesse caso, o regime especial do predito preceito apenas se aplicará ao que comummente designamos de habitação ou domicílio voluntário geral.

Da análise jurisprudencial emerge, desde logo, uma constatação mais ou menos óbvia: a de que se vem adoptando um conceito amplo de domicílio, por contraste com o conceito restritivo civilístico. Veja-se a este propósito o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 452/89, que caracteriza o domicílio como “espaço fechado e vedado a estranhos, onde recatada e livremente se desenvolve toda uma série de condutas e procedimentos característicos da vida privada e familiar”.

Face a esta acepção cabe questionar se tendas[14] ou autocaravanas serão domicílio para efeitos de buscas? Parece que sim, desde que estes segmentos tenham “vocação habitacional”, ainda que de forma precária. No que diz respeito às autocaravanas e roulottes, há quem entenda, como é o caso do Juiz Conselheiro Monteiro Diniz[15], que se deve distinguir se estão em trânsito ou estacionadas, uma vez que naquele primeiro caso não se devem considerar domicílio. Pessoalmente, e com o devido respeito por opinião divergente, não vemos razões para tal distinção, já que de acordo com a teleologia de protecção do domicílio não vislumbramos em que possa ser diferente a invasão da privacidade estando aquele segmento habitacional em trânsito ou parado. Realmente, o que importa nestes casos não será avaliar se é um veículo, porque em movimento, ou já um domicílio, porque parado… Parece-nos que o que será decisivo é sempre avaliar a vocação habitacional do mesmo.

E o que dizer das garagens? Dependerá, a nosso ver, das características de cada caso concreto. Mais uma vez, a “vocação habitacional” jogará um papel decisivo. Se todos compreendemos que uma coisa é a violabilidade deste “espaço dependente” num caso em que a mesma esteja fechada, apenas com acesso aos seus proprietários que aí guardam, até, outros objectos pessoais, outrossim será uma garagem a que todos os condóminos têm acesso num prédio constituído em propriedade horizontal. O cerne da questão é saber em que medida a privacidade existente no domicílio se estenderá, em concreto, àquele espaço dependente, ou se de privado ele já tinha muito pouco…

E um quarto de hotel? Ou um anexo de um bar, onde pernoitam prostitutas? Será domicílio? Mais uma vez, o decisivo será, em nosso entendimento, a vocação habitacional, ou não, do espaço em questão.[16]

Complicando um pouco mais: a sede das pessoas colectivas, seu domicílio legal, será domicílio para efeitos das buscas domiciliárias?[17] E em geral, os domicílios profissionais? Há opiniões muito divergentes a este propósito. No entender de alguns deverá excluir-se do conceito de domicílio a sede das pessoas colectivas, bem como os domicílios profissionais. Já no ver de outros autores, deve entender-se que a inviolabilidade do domicílio se estende às pessoas colectivas, ainda que aí o valor a proteger seja, não tanto a intimidade da vida privada, mas, por exemplo, o segredo dos negócios, sendo que o Tribunal Constitucional tem vindo paulatinamente a consagrar esta segunda tese.[18]

Resumindo estas duas teses, ainda que tomando posição pela primeira, diz-nos JOÃO CONDE FERREIRA[19], “Atenta a sua função constitucional de garantia, Canotilho, J. Gomes / Moreira, Vital entendem que abrange o domicílio voluntário geral, o domicílio profissional e a sede das pessoas colectivas. Contrariamente e em sentido que cremos mais consistente, Fonseca, J. Martins entende que a protecção do domicílio vida antecipar a tutela da intimidade, excluindo-se, portanto, o domicílio profissional e a sede das pessoas colectivas.”

Não se estará a subverter o regime ao adoptar tão ampla concepção de domicílio? Não careceria de melhor concretização este conceito? Uma das soluções que se poderia aduzir seria a consagração de um elenco taxativo ou exemplificativo das concretizações de domicílio. Entendemos que tal critério legislativo seria sempre demasiado limitador face à riqueza do caso concreto. Talvez a boa solução passe pelo estabelecimento de critérios gerais que norteiem essa interpretação nos casos concretos, à semelhança do que acontece, entre outras, nas legislações espanhola e francesa. Deixa-se a preocupação à reflexão…

Depois deste afinamento do conceito de domicílio, e chegando-se à conclusão que num caso concreto se está perante uma busca domiciliária, há requisitos adicionais a atender.

Assim, e no que concerne ao regime específico da busca domiciliária, a mesma só pode ser efectuada entre as 7h e as 21h, sob pena de nulidade, em nome do respeito pelo descanso e da vida privada dos cidadãos. No entanto, a prática tem demonstrado que a proibição rígida de buscas durante a noite propicia a prática de crimes nessas horas, pelo que, em 2001, o próprio legislador constitucional introduziu limitações à regra da proibição rígida, no art. 34.º, n.º 3, da CRP, nos casos de flagrante delito e de criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo terrorismo e tráfico de pessoas, armas e estupefacientes[20]. Certo é que se houver consentimento do visado da busca, fica afastada a necessidade de cumprir outros requisitos, nomeadamente, a autorização judicial prévia para a sua realização no período da noite, como tem sido estabelecido correntemente pela Jurisprudência.[21] Actualmente, há alguma incongruência entre a disposição constitucional, que, no art. 34.º, n.º 3, da CRP passou a permitir buscas “durante a noite”, e o art. 177.º do CPP que refere que as mesmas não deverão ser realizadas fora do período que medeia as 7h e as 21h… Daí que se impusesse a revisão da legislação processual penal em conformidade com a Lei Constitucional, pelo que o anteprojecto de Revisão do CPP, vem, de alguma forma, colmatar essa incongruência, passando o n.º 2 do art. 177.º a permitir a busca domiciliária naquele período nos casos de terrorismo ou criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, consentimento documentado, por qualquer forma, do visado, e ainda nos casos de flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos.

Por outro lado, para que a busca seja realizada legal e validamente, terá de haver autorização do juiz, excepto nos casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, em que podem ser ordenadas pelo MP ou efectuadas pelos OPC, sem autorização judicial (art. 177º, n.ºs 1 e 2, do CPP e art. 34.º, n.º 2, CRP). Não se deverá ter esta norma por inconstitucional como de resto já esclareceu o Ac. TC n.º 7/97 já que os direitos à vida e integridade física serão, ainda assim, numa concordância prática de direitos, superiores à inviolabilidade de domicílio. O mesmo sucederá no que concerne à autorização quando há consentimento do lesado. Também aí não entendermos poder falar-se de inconstitucionalidade porquanto, excepto no que no direito à vida concerne, parece que não há, por regra, violação de um direito, quando o próprio titular permite a sua postergação – embora surjam divergências quanto à necessidade ou não de validação posterior, com base no art. 177º, n.º 2. Já relativamente à remissão do n.º 2 do art. 177º para a al. c) do n.º 4 do art. 174.º, declara aquele acórdão a inconstitucionalidade da mesma, por se entender que “não está em jogo qualquer valor que deva prevalecer sobre a garantia constitucional de reserva do juiz”.

Não obstante as considerações precedentes, não poderemos ignorar que também nesta matéria o anteprojecto de revisão do CPP parece ter uma palavra a dizer. Com efeito, no n.º 3 do art. 177.º, passa a estatuir-se que nos casos que hoje constam do n.º 4 do art. 174.º (que passarão a constar do n.º 5), se realizadas entre as 07 e as 21h, podem as buscas domiciliárias ser ordenadas pelo MP ou efectuadas por OPC (neste último caso, desde que sem consentimento do visado e fora de flagrante delito, haverá sempre a necessidade de validação a posteriori, como prescrevem os n.ºs 3 e 4 do art. 177.º do Anteprojecto). Outra situação em que será possível a busca domiciliária ordenada pelo MP ou efectuada pelos OPC será nos casos de terrorismo e criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada e nos casos de consentimento do visado, documentado por qualquer forma, se a mesma busca for efectuada entre as 21 e as 7h, como refere a al. b) do n.º 3 do art. 177.º do Anteprojecto de revisão do CPP.

Quando faltar essa autorização prévia exigida, como já foi supra descrito, estaremos perante uma nulidade que deverá ser arguida sob pena de ficar sanada. Esta é, pelo menos, a Jurisprudência maioritária, embora não se desconheçam acervos jurisprudenciais em sentido contrário.[22]

Este regime mais proteccionista estende-se também às buscas realizadas em escritório de advogado e consultórios médicos ou estabelecimentos oficiais de saúde, em que urge compatibilizar a perseguição criminal e a realização da justiça com o cumprimento de regras deontológicas destes profissionais, sobretudo no que ao segredo profissional diz respeito. Não se deixem ainda de acautelar nos mesmo moldes as buscas em estabelecimentos bancários, como parece resultar do teor dos arts. 181.º e 268.º, nº 1, al. c), do CPP, de molde a, também aqui, se respeitar o sigilo, desta feita, bancário.

No que concerne a este tipo de buscas, há algumas formalidades acrescidas: as mesmas devem ser presididas, como sabemos, pelo juiz (sob pena de nulidade) e, bem assim, deve estar presente o representante da Ordem respectiva ou do dirigente do serviço, que devem ser previamente avisados, como bem atesta o art. 177.º, n.ºs 3 e 4.

Apresentadas que estão os pressupostos e requisitos das buscas, quid iuris quanto à sua preterição?

MAIA GONÇALVES[23] resume as sanções no sentido de haver que distinguir as situações mais graves, em que a omissão das formalidades da busca seja nulidade por violação da integridade física ou moral, intromissão da vida privada e no domicílio, correspondência ou telecomunicações, nos termos do art. 32º, nº6 CRP e 126º CPP, dos restantes casos, mais formalistas, que não passarão de nulidades sanáveis ou, até mesmo, de meras irregularidades.[24]

Questão também ela complexa é a de saber, se face à declaração de nulidade de uma busca, os elementos que a partir dela se puderam obter poderão, como prova, ajudar a fundamentar uma decisão… Cabe aqui em pleno toda a doutrina do efeito à distância das provas consequenciais ou da “árvore dos frutos proibidos”, que não iremos aqui desenvolver.

A parcimónia a que um trabalho deste género nos obriga, faz-nos terminar por aqui estas breves notas, ciente porém que muito mais que o que se disse, foi o que ficou por dizer…
[1] Recordem-se os ensinamentos de BECCARIA : “ A própria atrocidade da pena faz com que tentemos evitá-la com uma ousadia tanto maior quanto maior é o mal em que incorremos” – BECCARIA, Cesare, Dos Delitos e Penas, apud, VALENTE, Manuel Monteiro Guedes, “Revistas e buscas, que viagem queremos fazer”, I Congresso de Processo Penal, 2005, Almedina, pags.285 ss
[2] Com considerações interessantes sobre a evolução do modelo de investigação criminal, diz a certa altura VALENTE, Manuel Monteiro Guedes Valente, Os caminhos tortuosos da investigação criminal, Revista Direito e Justiça XVIII, T1, pag 145-170“(…) defendemos uma investigação criminal que não destrua a essência dos direitos fundamentais – património da humanidade – pela troca da efémera e escassa eficácia, esta sim é inimiga de se investigar de modo que se localize, contacte e apresente o culpado, pois apenas nos remeterá para um culpado.”
[3] Não nos ocuparemos nestas breves notas das buscas realizadas nos termos do art. 251.º do CPP como medida cautelar, nem nos ocuparemos de matérias que têm uma relação estreita com as buscas como as revistas e apreensões por motivos que se prendem com a distribuição dos temas pelos auditores.
[4] A par destas situações gerais, existe ainda legislação especial que prevê buscas. Veja-se a Lei 8/97, de 12 de Abril, que criminaliza as condutas que causem perigo para a vida e integridade física pelo uso e porte de armas e substâncias ou engenhos explosivos ou pirotécnicos no âmbito de realizações cívicas, políticas, religiosas, culturais ou desportivas, e que, no seguimento desta criminalização, permite a existência de buscas, no seu art. 5.º, quando essas manifestações ocorram em estabelecimentos de ensino. Também não se ignora a possibilidade de realização de buscas destinadas à descoberta de objecto ou substância perigosa ocultada nos “locais e dependências individuais ou colectivas” dos Centros Educativos ou nos veículos que saem e entram daqueles Centros – arts. 84º e 86º do DL n.º 323-D/2000 de 20 de Dezembro.
[5] Neste sentido, o Ac. RC de 19.03.03, CJ, T2, pag 39.
[6] No sentido da necessidade de a lei processual penal proceder à definição de criminalidade altamente organizada e violenta em moldes mais precisos, veja-se “Contributos para a reflexão sobre o Sistema Penal Português”, Outubro de 2003, edições do CEJ, pág.65.
[7] Cfr. Ac .STJ de 08.01.98, CJSTJ, T1, pag 158.
[8]
[9] Com interessantes considerações sobre o consentimento nesta sede, ver “Qual o Significado de Abusiva Intromissão na Vida Privada, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações (art.32º, nº 8, 2ª parte da CRP)?”, Revista do Ministério Público, nº 79.
[10] No caso de o arguido ser detido em flagrante delito de estupefacientes, não carecem de validação judicial a revista e a busca levadas a cabo, no acto, pelos agentes da PSP que efectuaram a detenção. – Ac. RP 16.05.01, CJ, T3, pag 235.
[11] Estes espaços não têm que ser da propriedade do suspeito infractor ou seus cúmplices, sendo suficiente que no interior destes espaços haja os indícios que o art 174º, nº2 refere.
[12] No Ac. TC nº 192/01, DR II série, de 17 de Julho de 2002, considerou-se busca não domiciliária a realizada a uma oficina de reparação de veículos e barracões anexos por não ter qualquer função de domicílio.
[13] CANOTILHO, J. Gomes e MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª EDIÇÃO, Coimbra Editora, 1993, pag 212 ss.
[14] Veja-se no sentido afirmativo, e a título exemplificativo, o Ac. RE 04.07.95, CJ ano 20º, T4, 1995, pag 283.
[15] Em declaração de voto ao Ac. aludido.
[16] Ac. STJ 23.04.1992, CJ, ano 17º, T2, 1992, pag 22, no sentido de poderem ser domicílio quando sejam local de residência habitual.
[17] O Ac RP de 15.03.2000, no Proc. Nº 793/99 esclareceu que às buscas em instalações fabris não se aplicam as formalidades especiais das buscas domiciliárias.
[18] Cfr Ac. 198/95, 537/97 neste mesmo sentido, citando a posição de VITAL MOREIRA E GOMES CANOTILHO nesta matéria.
[19] “Qual o Significado de Abusiva Intromissão na Vida Privada, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações (art.32º, nº 8, 2ª parte da CRP)?”, “Revista do Ministério Público”, nº 79, página 50 e 51.
[20] No entender de alguns autores, esta possibilidade hoje aberta pela lei fundamental, já era possível com a devida fundamentação. “ Como já tivemos oportunidade de referir, parece-nos que a alteração do texto constitucional não significou uma mudança de concepção relativamente às buscas e aos seus pressupostos, tratando-se apenas de uma consagração expressa da possibilidade de restringir a garantida inviolabilidade do domicílio, de forma a proteger outros valores fundamentais. Consideramos que já antes da revisão constitucional de 2001 era possível a realização de buscas no domicílio durante a noite, em casos excepcionalmente graves, em que estivesse em causa a vida ou a integridade física das pessoas. Esta solução, não tendo apoio legal expresso, podia sempre ser fundamentada numa ponderação das circunstâncias concretas de cada caso, por parte da autoridade judicial” – PINTO, Ana Luísa, “Aspectos problemáticos do regime das buscas domiciliárias”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 15, nº3, Julho-Setembro de 2005, Coimbra Editora, pags, 415 ss.
[21] Cfr Acs RL 06.10.1993, CJ XVII, T4, pag 163 ss; STJ 05.06.1991, CJ XVI, T3, pag 26 e ss.; STJ 11.03.1993, Proc 43512/3ª, entre outros.
[22] Veja-se o Ac. STJ de 05.06.1991, CJ, ano 17º, T3, 1992, pag. 34.
[23] Código de Processo Penal anotado e comentado, 13ª edição, 2002, Almedina
[24] Diz a este propósito o Ac do STJ de 15. 06.1992, no Proc. 42974/3, no sentido da irregularidade: “(… A violação das realidades enunciadas no art. 176º CPP não dá lugar a qualquer nulidade, pelo que constitui mera irregularidade.