segunda-feira, outubro 27, 2008

Detenção - novo processo; novos problemas

- Claro que está preso, mas isso não o deve impedir de ir trabalhar nem de continuar a viver como até aqui.
- Então não me parece que a participação da detenção tenha sido assim tão necessária – prosseguiu K.
- Era a minha obrigação – disse o inspector.
- Uma estúpida obrigação – retorquiu K., intransigente.
- É possível – respondeu o inspector – mas não quero perder tempo com conversas destas.

Franz Kafka, O Processo


DETENÇÃO
NOVO PROCESSO NOVOS PROBLEMAS
([1])



A abordagem do tema que me foi atribuído – o regime da detenção no quadro das alterações ao Código de Processo Penal introduzidas pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto ([2]), evoca outras matérias objecto de revisão legal, como a constituição de arguido, o primeiro interrogatório judicial de arguido, as medidas de coacção e o processo sumário, entre outras. As quais, considerado o tempo disponível e a concreta afectação desses temas a outros participantes, serão aqui abordados na medida do estritamente necessário à análise das inovações introduzidas ao regime da detenção.

1. OBSERVAÇÕES DE ORDEM GERAL

As observações de ordem geral respeitam ao propósito e ao âmbito das alterações, tal como visados pela Unidade de Missão e / ou vertidos em letra de lei.
Na exposição de motivos do anteprojecto apresentado pela Unidade de Missão para a Reforma Penal e retomado na Proposta de Lei nº 109/X, que altera o Código de Processo Penal, consigna-se como referente matricial o equilíbrio entre direitos da vítima, eficácia da investigação e garantias da defesa, nos seguintes termos:
“Tendo presente que o Processo Penal é Direito Constitucional aplicado, as alterações pretendem conciliar a protecção da vítima (…) e o desígnio de eficácia com as garantias de defesa, procurando dar cumprimento ao n.º 2 do artigo 32.º da Constituição, que associa a presunção de inocência à celeridade do julgamento.”
Em concreto, relativamente à detenção, afirma-se:
“Tendo presente que a detenção só deve ser efectuada em casos de estrita necessidade, estabelece-se que ela só tem lugar, fora de flagrante delito, quando houver razões para considerar que o visado se não apresentaria espontaneamente para a realização de acto processual (artigo 257.º). Este princípio vale também para a detenção em flagrante delito (artigo 385.º), hipótese em que o arguido que não for imediatamente apresentado ao juiz só continuará detido se houver razões para crer que não comparecerá espontaneamente perante autoridade judiciária – sem prejuízo de ser libertado, de qualquer forma, no prazo máximo de 48 horas, por força do n.º 1 do artigo 28.º da Constituição.”
Sendo certo que o articulado do Anteprojecto e da Proposta de Lei, relativo aos artigos 257º nº1 e 385º, do Código de Processo Penal, foi mantido na Lei, não subsistem dúvidas quanto à aplicabilidade do novo regime, de cariz restritivo, aos casos de detenção fora de flagrante delito ordenada pelo juiz ou pelo Ministério Público, nem aos casos de manutenção da detenção em flagrante delito em processo sumário. Porém, o mesmo grau de certeza não se verifica nos restantes casos.
Coloca-se, desde logo, a questão de saber se a nova exigência quanto aos pressupostos da detenção fora de flagrante “vale também para a detenção em flagrante delito”, nos termos amplos preconizados pela exposição de motivos, ou se, pelo contrário, considerada a inserção sistemática do artigo 385º, apenas valerá para as situações de processo sumário. Ou a questão de saber se, fora de flagrante delito, também as autoridades de polícia criminal, em especial, da Polícia Judiciária, estarão vinculadas ao novo quadro legal.
Mas a principal questão e será aquela a que, fundamentalmente, procuraremos dar resposta, é a de saber se o novo regime legal cumpre a pretendida conciliação de valores, aliás, em cumprimento da matriz constitucional de ponderação entre os direitos, liberdades e garantias da liberdade e da segurança – punctum crucis do processo penal democrático.

2. QUESTÃO PRÉVIA: A ALTERAÇÃO NÃO APROVADA

Uma alteração pretendida pela Unidade de Missão para a Reforma Penal, embora não consignada expressamente na exposição de motivos, visava o disposto na alínea b), do artigo 254º nº1, do Código de Processo Penal ([3]). Foi sufragada pelo Governo na Proposta de Lei nº 109/X que apresentou à Assembleia da República, mas sucumbiu na votação parlamentar, em sede de especialidade ([4]).
A pretendida alteração visava alargar o âmbito das entidades admissíveis para apresentação da pessoa detida, como meio de assegurar a sua presença em acto processual, nos termos do artigo 254º nº1, alínea b), do Código de Processo Penal. No âmbito, até aqui, limitado às autoridades judiciárias, ou seja, o juiz, juiz de instrução e Ministério Público ([5]), passaria a incluir-se a possibilidade de apresentação às autoridades policiais ([6]). Por esta via, a norma passaria a atribuir a estas um poder exclusivo de controlo das circunstâncias da detenção, nos casos em que, simultaneamente, dirigissem a detenção e recebessem o detido.
Sucede que esse alargamento do âmbito subjectivo para apresentação dos detidos, a autoridades não judiciárias, ultrapassa a permissão constitucional prevista, nesta matéria, no artigo 27º, nº3, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual, se admite a detenção “por decisão judicial (…) para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente” (sublinhado nosso).
Esta redacção foi introduzida na 4ª revisão Constitucional, pela Lei Constitucional nº1/97, já que a anterior alínea e), por esta substituída, era ainda literalmente mais restritiva, exigindo a comparência perante “autoridade judicial” ([7]).
O próprio Tribunal Constitucional, no acórdão nº 161/2005, em que decidiu uma questão de constitucionalidade relativa à detenção para comparência a exame pericial, teve o ensejo de se pronunciar sobre a questão, decidindo não ser conforme ao comando constitucional aí previsto, “uma norma que permita que se faça a detenção do arguido” com a finalidade de “o apresentar a uma autoridade não judiciária, como o médico a quem cabe realizar o exame pericial psiquiátrico”. Em conformidade, julgou inconstitucional, por violação do artigo 27º, nº3, alínea f), da Constituição da República, a norma prevista no artigo 172º nº1, quando interpretada naquele sentido ([8]).
Não restam dúvidas que a pretendida alteração da lei penal adjectiva, traduzida no alargamento às autoridades policiais da competência para apresentação dos detidos por ordem judicial, padeceria de flagrante inconstitucionalidade material, e bem se compreende, assim, a sua remoção em sede de processo legislativo.

3. AS ALTERAÇÕES APROVADAS: NOVO PRESSUPOSTO DA DETENÇÃO

Com o intuito de limitar as situações de admissibilidade legal da detenção, fora de flagrante, ou da sua manutenção, em flagrante delito, a revisão do Código de Processo Penal introduz como novo requisito, um juízo de prognose quanto à não apresentação voluntária do indivíduo a deter, no primeiro caso, ou do detido, no segundo.
Esse juízo de prognose é formulado, relativamente aos casos de fora de flagrante delito, no artigo 257º nº1 do Código de Processo Penal, nos seguintes termos: “Fora de flagrante delito, a detenção só pode ser efectuada, por mandado do juiz ou, nos casos em que for admissível prisão preventiva, do Ministério Público, quando houver fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria espontaneamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado”.
Relativamente aos casos de flagrante delito, a prognose exigida é expressa no artigo 385º nº1, do seguinte modo: Se a apresentação ao juiz não tiver lugar em acto seguido à detenção em flagrante delito, o arguido só continua detido se houver razões para crer que não se apresentará espontaneamente perante a autoridade judiciária no prazo que lhe for fixado.
A única diferença que encontramos, é ao nível das razões exigidas para fundamentar o juízo de prognose, pois o estado concreto de perigo pressuposto é o mesmo.
No caso da detenção fora de flagrante delito, as razões devem ser fundadas razões, enquanto no caso de flagrante delito não se formula similar exigência. Por imperativo legal e democrático, qualquer acto decisório deve ser sempre fundamentado de facto e de direito ([9]). Aliás, nem concebemos a existência de razões destituídas de fundamento racional – ou não seriam razões. Pelo que o critério normativo de distinção, não sendo redundante, há-de supor uma mera diferença de grau, ou seja, quantitativa e não qualitativa, quanto ao juízo de prognose.
Os indícios fortes do crime e demais requisitos legais da detenção fora de flagrante delito, pressupõem um trabalho prévio de investigação, que permite uma exigência reforçada na fundamentação do juízo de prognose, quanto ao risco de não comparência. Nesta fase, as razões para crer na não comparência devem ser, então, fundadas na investigação prévia realizada.

4. BREVES NOTAS DE DIREITO COMPARADO

Em sentido divergente com o novo regime da detenção, constatamos que na generalidade dos ordenamentos jurídicos europeus continentais e de Common Law admitem a detenção, enquanto instrumento necessário à aplicação de medidas de coacção, verificados os pressupostos da prisão preventiva ([10]).
O Código de Processo Penal Alemão (StPO), no § 127º, 1º parágrafo, prevê expressamente como pressuposto da detenção em flagrante, a suspeita de que o surpreendido em flagrante possa fugir ”flucht verdächtig”, ou que a sua identidade não possa ser determinada. Mas não esgota aqui os pressupostos para a detenção, pois logo no § 127º, 2º parágrafo, atribui ao Ministério Público, aos órgãos de polícia e aos serviços de segurança a competência para a detenção, desde que se verifiquem os fundamentos para aplicação judicial da prisão preventiva e exista perigo na demora.
Em Espanha, a polícia judicial procede, por iniciativa própria, à detenção em flagrante delito (artigos 490º e 492º parágrafo 1º da Ley de de Enjuiciamiento Criminal espanhola), e por ordem do juiz detém os suspeitos formalmente indiciados, desde que se trate de crime punível com pena superior a pena correccional (artigos 492º, parágrafo 2º, 494º), pois caso seja punível com pena inferior apenas será detido em caso de perigo de não comparência (artigo 492º, parágrafo 3º). Também procedem à detenção por ordem do Ministério Público, quando o presumível autor dos factos não compareça à notificação feita pelo Ministério Público, ou quando existam motivos racionalmente bastantes para crer que um sujeito cometeu um crime e existe “periculum libertatis” que poderia prejudicar o processo, se não se procedesse de imediato à sua detenção (artigo 785º bis) ([11]).
O novo perigo de não comparência voluntária é, conceptualmente, muito semelhante ao previsto no artigo 492º, parágrafo 3º, da Ley de de Enjuiciamiento Criminal espanhola, com a diferença não despicienda de se tratar de requisito da detenção limitado aos casos de criminalidade menos grave – puníveis com pena correccional. Neste âmbito, apenas se permite a detenção do “procesado por delito a que esté aseñalada pena inferior, si sus antecedentes o las circunstancias del hecho hicieren presumir que no comparecerá cuando le llame el Juez o Tribunal competente” ([12]).
Em França, a detenção, denominada garde a vue pode ser realizada por qualquer oficial de polícia judiciária, que tenha razões para supor que o suspeito cometeu ou tentou cometer um crime (art. 63º do Código de Processo Penal Francês).
Em Itália, existem duas formas de detenção em flagrante delito, pela polícia judicial, a obrigatória e a facultativa (artigos 380º e 381º do Código de Processo Penal Italiano). Será obrigatória para os crimes mais graves e facultativa para os restantes, em que terá em causa a perigosidade do suspeito e as circunstâncias do facto. Quer a polícia judicial quer o Ministério Público, podem proceder à detenção fora de flagrante de pessoas fortemente suspeitas de crimes com pena de prisão não inferior a dois anos e seis anos de limite máximo (artigo 384º). O detido é presente ao juiz de instrução em 48 horas, que decide nas 48 horas seguintes.
Na Grécia, prevê-se a detenção em flagrante durante as 24 horas seguintes ao cometimento do crime. Nas 24 horas seguintes o Ministério Público tem de apresentar o caso perante o tribunal competente ou o juiz de instrução, que pode emitir uma ordem de prisão. A detenção fora de flagrante delito pode ser ordenada em caso de perigo de fuga ou de suspeita que possa cometer novos ilícitos.
Na Holanda, o Ministério Público pode ordenar a detenção de suspeitos, se o interesse da investigação o exigir, nos mesmos casos em que se permite a prisão preventiva, como a fundada suspeita, o perigo de fuga, o perigo de reincidência ou o perigo para a aquisição da prova. A duração máxima é de 3 dias, renovável uma vez por outros 3 dias, findo o qual terá de ser levado ao juiz dentro das 15 horas seguintes.
Na Suiça, a detenção é lícita no caso de ser fundada numa suspeita de crime, verificada proporcionalidade e perigo de fuga ou de perturbação para a aquisição da prova. Alguns Cantões incluem o perigo de continuação e o perigo de execução, quando o suspeito ameaçou cometer um crime e se teme que o faça.
Em Inglaterra, a polícia pode deter os suspeitos nos casos em que tenha razões para crer que cometeram um crime. Em alguns casos precisará de um mandado de detenção de um magistrado. O detido será presente no mais curto espaço de tempo.
Nos Estados Unidos da América qualquer funcionário policial pode proceder à detenção com ou sem ordem de detenção, desde que tenha causa provável – probable cause – para crer que a pessoa cometeu ou vai cometer um crime.

5. ENQUADRAMENTO CONSTITUCIONAL PRELIMINAR

A Constituição da R epública Portuguesa consagra e tutela, no seu artigo 27º, a liberdade como direito e garantia fundamental. Como é sufragado pelo citado acórdão do Tribunal Constitucional nº161/2005: “O art.º 27º, n.º 1, da Constituição reconhece como garantia fundamental o direito à liberdade e segurança. O direito à liberdade é, de resto, uma exigência intrínseca do princípio da dignidade da pessoa humana sobre o qual a Lei Fundamental baseia a República Portuguesa e o Estado de direito democrático que esta é (arts. 1º e 2º da CRP).”.
No n.º 3 do artigo 27º da Constituição da República, enunciam-se os casos em que, em excepção a esse princípio, a Constituição admite “a privação de liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar”. A lei ordinária só pode restringir o direito à liberdade nos casos previstos no seu número 3. Consagrou-se, assim, o princípio da tipicidade constitucional das medidas privativas ou restritivas da liberdade ([13]).
Entre esses casos contam-se a “detenção em flagrante delito” e a “detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos” ([14]).
Tratam-se de excepções compreensíveis “à luz dos princípios da necessidade e da proporcionalidade (cf. n.º 2 do art.º 18º da CRP) a fim de fazer valer outros direitos ou princípios constitucionais cuja defesa a Lei Fundamental incumbe os tribunais (cf. art.º 202º, n.º 2)” ([15]).
Aliás, a adesão a estas normas é condição sine qua non de uma sociedade democrática regida pelo princípio do Estado de Direito e, a nível individual, o seu respeito é condição indispensável ao cumprimento dos direitos e liberdades do ser humano individualmente considerado, incluindo da sua integridade física e mental. Garantindo, efectivamente e em todos os momentos, o direito de todas as pessoas à liberdade e segurança pessoal, os Estados promoverão também a sua própria segurança interna, sem a qual os direitos humanos não podem ser gozados em pleno.

6. DETENÇÃO EM FLAGRANTE DELITO

De acordo com o novo regime legal, a detenção em flagrante delito será mantida apenas nos casos em que se verifique um concreto risco de não comparência voluntária, do detido perante as autoridades judiciárias.
Neste caso, nos termos do nº3 do artigo 385º do Código de Processo Penal, o órgão de polícia criminal, notifica o arguido “para comparecer perante o Ministério Público, no dia e hora que forem designados, para ser submetido: a) A audiência de julgamento em processo sumário, com a advertência de que esta se realizará, mesmo que não compareça, sendo representado por defensor; ou b) A primeiro interrogatório judicial e eventual aplicação de medida de coacção ou de garantia patrimonial.“
Esta formulação alternativa das finalidades da comparência, conjugada com a abrangência da citada exposição de motivos, segundo a qual “a detenção só deve ser efectuada em casos de estrita necessidade”, permitiriam a defesa de uma interpretação maximalista, na aplicação deste regime a todas as situações de flagrante delito, sejam as susceptíveis de julgamento em processo sumário sejam as que o não são.
No primeiro caso, o arguido seria notificado para audiência de julgamento em processo sumário (alínea a)), no segundo, para primeiro interrogatório judicial (alínea b)).
Acresce que esta interpretação normativa não deixa de ser consentânea com o regime previsto para a detenção fora de flagrante delito, em que, para crimes de pequena, média ou grande gravidade, incluindo a criminalidade violenta, especialmente violenta e mesmo terrorismo, em todos os casos a detenção apenas será admissível em caso de risco concreto de não apresentação do suspeito a deter.
Terá sido este o ponto de equilíbrio encontrado para assegurar que “a detenção só deve ser efectuada em casos de estrita necessidade”? Na ausência das actas dos trabalhos da Unidade de Missão, a dúvida instala-se. Fazendo uso da máxima constitucional in dubio pro libertatis, deveremos adoptar uma interpretação mais garantista dos direitos do arguido?
Também aqui a dúvida é legítima, mas entendemos que na ponderação dos mandamentos constitucionais em conflito, a interpretação mais restritiva, que aplica o regime da libertação apenas aos crimes sujeitos ao julgamento em processo sumário é a mais equilibrada.
Pese embora a assimetria com a situação de fora de flagrante delito, substancialmente idêntica mas em que a solução é diametralmente oposta. Ou seja, inexistindo perigo de não apresentação voluntária, um suspeito pela prática de crimes com máximo superior a 5 anos de prisão pode ser detido e ficar detido, quando em flagrante, mas não poderá ser detido fora dele.
Contudo, mesmo fazendo uso de uma interpretação mais restritiva, limitando a inovação aos casos de detenção em flagrante por crimes com máximo até cinco anos de prisão, a actual solução legal não tutela, com eficácia, várias situações de criminalidade violenta, dirigida dolosamente contra a vida, a integridade física e a liberdade, em que se verifique um concreto perigo de continuação da actividade delituosa.
Entre outros, os crimes de violência doméstica, maus tratos ou coacção agravada, nos termos do artigo 202º nº1 alínea b), admitem prisão preventiva, por se tratarem de criminalidade violenta, não obstante serem susceptíveis de julgamento em processo sumário. Crimes relativamente aos quais, qualquer que seja a interpretação perfilhada, uma detenção em flagrante delito só será mantida em caso de perigo de não comparência, no dia útil seguinte perante a autoridade judiciária.
Casos em que o perigo de continuação da actividade criminosa ou o perigo de perturbação do inquérito e para a aquisição da prova, pela pressão exercida sobre as testemunhas, poderão ser graves ao ponto de fundamentar a aplicação de medidas de coacção como a proibição de permanência no local do crime ou proibição de contactos, a obrigação de permanência na habitação e mesmo a prisão preventiva. Aplicadas no dia útil seguinte, caso o detido entretanto não falte. Mas, enquanto único meio de acautelar esses perigos, no imediato e em tempo útil, não constituem, à luz do novo paradigma, fundamento legal bastante para a manutenção da detenção.

7. DETENÇÃO FORA DE FLAGRANTE DELITO

Relativamente aos casos de detenção fora de flagrante delito, somos confrontados com as mesmas descontinuidades e falta de harmonia do sistema. Sendo a prisão preventiva admissível, em face dos indícios fortes, da moldura penal e de um ou mais perigos de continuação da actividade criminosa, perturbação do inquérito ou grave perturbação da ordem pública, a sua aplicação pelo juiz de instrução deve ser sempre precedida da audição do arguido, ressalvados os casos de impossibilidade ([16]). Porém, nenhum meio instrumental é previsto para o apresentar de imediato ao juiz, nos casos em que a notificação e a demora podem conduzir à concretização de algum daqueles perigos que se querem evitar ([17]).
Em resposta à questão inicialmente colocada de saber se o novo pressuposto se aplica também às autoridades de polícia criminal, constatamos que, para estas, os requisitos legais da detenção fora de flagrante permaneceram inalterados ([18]). São eles: Tratar-se de um caso em que seja admissível a prisão preventiva; existir um fundado receio de fuga e não ser possível, pela urgência e perigo na demora, aguardar pela intervenção da autoridade judiciária.
Resulta evidente que os requisitos previstos no nº1 do artigo 257º, do Código de Processo Penal, onde se inclui o novo pressuposto do perigo de falta, não são cumulativos com estes três. Por isso se repete a exigência da admissibilidade da prisão preventiva.
Considerada a obrigatoriedade de verificação de um fundado receio de fuga, podemos inferir que o risco de não comparência perante autoridade judiciária competente, por ser inerente àquele, tem que se ter por exigido às autoridades de polícia criminal em geral, pelo que careceria de menção expressa.
Todavia, a dificuldade de harmonização de regimes reside na norma especial prevista no artigo 11º-A da Lei Orgânica da Polícia Judiciária, que amplia às autoridades de polícia criminal da Polícia Judiciária a competência para a detenção fora de flagrante delito, nos casos em que seja admissível a prisão preventiva e que, em alternativa:
- Se verifique o fundado receio de fuga;
- Não for possível, dada a situação de urgência e de perigo de demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária;
- No decurso de revistas ou buscas sejam apreendidos ao suspeito objectos conexos com a prática ou o resultado do crime.
Nestes dois últimos casos, constata-se que as autoridades de Polícia Judiciária mantém a competência para a detenção, mesmo que, em concreto, não se verifique qualquer fundado receio de fuga ou risco de não comparência voluntária, nos termos preconizados pelo novo paradigma adjectivo.
Dir-se-á que se trata de um quadro legal e interpretativo ultrapassado, construído à imagem e semelhança das competências do Ministério Público e, subsidiariamente, apenas na sua indisponibilidade. Logo, sistematicamente incongruente com a perda de competência do Ministério Público para a detenção nesse caso de ausência de perigo de não comparência. Como tal, dir-se-á que não faz sentido, numa interpretação sistemática e evolutiva, continuar a permitir à Polícia Judiciária a detenção, em situações que o legislador processual penal quis restringir ao juiz e ao Ministério Público, pelo que se impõe uma interpretação restritiva de acordo com o novo paradigma.
Mas se assim fosse, porque razão a Proposta de Lei nº 143/X – a nova Lei Orgânica da Polícia Judiciária – tal como aprovada na generalidade, continua a prever de modo incondicional, no renovado artigo 12º nº1 alínea d), essas mesmas competências?
Em suma, no confronto da Lei Orgânica da Polícia Judiciária com o novo regime penal adjectivo, encontramos uma incongruência sistemática inultrapassável, mesmo se aceitarmos que há razões para atribuir à Polícia Judiciária uma competência alargada, para a detenção fora de flagrante delito. Razões que, diga-se, não encontramos no actual paradigma legal e mesmo constitucional ([19]), relativos ao exercício da acção penal e à direcção do inquérito pelo Ministério Público e às competências de coadjuvação da Polícia Judiciária.
É que, de acordo com o disposto no citado artigo 11º-A, ainda em vigor, as autoridades de polícia criminal da Polícia Judiciária podem ordenar a detenção, sem que se verifique qualquer risco de fuga, desde que o Ministério Público não esteja disponível – subsidiariamente. No pressuposto de que se este estivesse disponível o poderia fazer. Mas não pode, salvo o risco de não comparecimento voluntário. Assim, durante o horário de expediente e ressalvadas as situações de revista e busca, a detenção não será possível para a Polícia Judiciária ou para o Ministério Público. Para a Polícia Judiciária porque só o poderia fazer se “não fosse possível, dada a situação de urgência e de perigo de demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária”, para o Ministério Público porque só o poderia fazer em caso de risco de não comparência voluntária.
Cumpre, assim, perguntar: Que razões específicas, para a detenção realizada pela Polícia Judiciária são essas, que só podem ocorrer depois dos serviços do Ministério Público fecharem?
Esta questão fica sem resposta.

8. ÍNDICES DO PERIGO DE NÃO COMPARÊNCIA VOLUNTÁRIA

Em seguida, procuraremos concretizar alguns índices do perigo de não comparência voluntária, colhendo as lições da doutrina e da praxis nos ordenamentos jurídico-penais em que o risco de não comparência releva como pressuposto da detenção ([20]).
Existem “determinados factores ou circunstâncias que, globalmente considerados e atendendo ao caso concreto, podem fazer crer racionalmente” ([21]), que se a detenção não tem lugar ou não é mantida o imputado vai tentar subtrair-se à acção da justiça.
Mas o perigo de não comparência deve ser aferido em concreto, não podendo ser imputado, em abstracto, a determinado factor por mais impressivo que ele se revele ([22]). Por exemplo, não bastará o facto de se tratar de um suspeito estrangeiro, ou a extrema gravidade do crime, traduzida na medida da pena aplicável, por exemplo num caso de homicídio. Perante uma situação em que o suspeito de homicídio se entrega, após os factos, na esquadra policial, não bastará a susceptibilidade abstracta de aplicação de uma pena de prisão muito elevada, para deduzir um perigo de não comparência voluntária posterior, visto que a sua conduta presente o atenua.
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no acórdão Yagci e Sargin contra a Turquia, de 8 de Junho de 1995 ([23]), em lugar paralelo relativo ao perigo de fuga do arguido, salientou que este perigo “não pode ser determinado unicamente com base na severidade da pena aplicável”, mas que “deverá ser avaliado por referência a uma série de outros factores pertinentes que podem, quer confirmar a existência de um perigo de fuga, quer fazê-lo parecer tão remoto que não possa justificar uma prisão preventiva” ([24]).
Para que este motivo possa ser invocado, os tribunais nacionais deverão explicar a razão pela qual existe um perigo de fuga e não limitar-se a confirmar a detenção “numa linguagem idêntica, para não dizer estereotipada, sem explicar de alguma forma por que razão existe um perigo de fuga” ([25])
A par da gravidade do crime, traduzida na sua moldura penal elevada, outros índices de perigo de não apresentação voluntária, a concretizar, serão: A tentativa concreta de fuga após os factos; declarações de rebeldia à ordem de detenção; ausência de residência conhecida; desinserção social; ausência de emprego; ausência de ligações familiares estáveis; antecedentes criminais que denotem insensibilidade recorrente aos valores sociais; antecedentes de não comparência ou mandados de detenção ([26]).
Na lição de Claus Roxin, deverá ter-se ainda em consideração a importância, na valoração do risco de não comparecimento voluntário, do conhecimento, pelo suspeito, da existência de um processo e de provas incriminatórias contra si.
Uma última questão: o risco de não comparência deve distinguir-se, em absoluto, de uma outra realidade com que por vezes somos deparados, de dificuldade na notificação, seja por o suspeito nunca ser encontrado no seu domicílio pessoal ou profissional seja por este ser desconhecido. A dificuldade de notificação não imputável ao suspeito, não deve constituir um ónus que este tenha que cumprir com a privação da sua liberdade. Aliás, exceptuadas certas situações de subtracção à notificação por ocultação em local não acessível livremente como o próprio domicílio, mal se compreende que um indivíduo que nunca é encontrado para efeitos de notificação, seja detido pouco tempo após a emissão dos mandados, como não é raro suceder. A superação dessas dificuldades passará pela agilização dos serviços de notificação, estendendo-se a local e hora que não sejam o domicílio do suspeito em horário de expediente.

9. CONSEQUÊNCIAS DO NOVO REGIME: OS PERIGOS DO NOVO PERIGO

O factor de insustentabilidade da revisão advém de um desprezo, não negligenciável, pela salvaguarda dos valores jurídico-constitucionais da liberdade individual e da segurança de terceiros, maxime vítimas, muito especialmente em situações de perigo de continuação da actividade criminosa, que apenas a aplicação de uma medida de coacção adequada, mediante prévia detenção, urgente e sem demora, poderia acautelar.
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem é o único tratado internacional que enumera especificamente os fundamentos que podem justificar, legalmente, a privação de liberdade nos Estados Contratantes.
Esta lista é exaustiva e deve ser interpretada restritivamente ([27]). A Convenção esclarece no artigo 5.º nº1 que: “Toda a pessoa tem direito à liberdade e segurança. Ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo nos casos seguintes e de acordo com o procedimento legal”. Para proclamar, em seguida, o relevo do perigo de continuação da actividade criminosa, já que a privação da liberdade será admissível “a fim de comparecer perante a autoridade judicial competente, quando houver suspeita razoável de ter cometido uma infracção, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infracção ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido” ([28]) (sublinhado nosso).
Em comentário ao novo regime da detenção ([29]), Fernanda Palma, defende que o novo pressuposto – perigo de não apresentação voluntária – se pode inferir do perigo de continuação da actividade criminosa, fazendo-os, assim, coincidir.
Nessa linha, afirma: “Se, por exemplo, houver fundado receio de continuação da actividade criminosa, poderá inferir-se que há perigo de não apresentação voluntária. Assim, justificar-se-á a detenção até ao julgamento (ou aplicação de medida de coacção, se a audiência não se iniciar dentro de 48 horas).”. Segundo a interpretação que perfilha, “este regime responde às necessidades imperiosas de protecção da vítima”, vivenciadas nos crimes de maus tratos e violência doméstica, porquanto “a detenção deve manter-se quando se teme que o agente venha a praticar novas agressões. Também aí o perigo de continuação da actividade criminosa fundamenta logicamente o receio de que ele não compareça perante a Justiça.”.
O argumento aduzido não pode proceder. Para além de obliterar uma distinção conceptual e dogmaticamente consolidada na doutrina nacional e estrangeira ([30]), é fácil constatar que o perigo de não comparência voluntária nem sempre coincidirá com o perigo de continuação da actividade criminosa, ou com o seu upgrade – o perigo de fuga.
Aliás, só assim não será quanto aos crimes em que a prossecução da conduta penalmente típica corresponda, necessária ou frequentemente, a um estado de ausência ou de paradeiro incerto perante as autoridades, como sucede, designadamente, com o sequestro, o rapto ou a evasão.
Relativamente à generalidade dos restantes crimes, é curial relembrar que o perigo de não comparência voluntária assenta em índices concretos, absolutamente diversos da continuação da actividade criminosa, da perturbação do inquérito ou da perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas ([31]).
Desde as situações de violência doméstica, maus tratos, abusos sexuais a crianças, até aos crimes de corrupção, peculato e demais crimes cometidos em contexto de ofensa não assumida ou não interiorizada e de difícil prova, o mais comum é, aliás, não coincidir. Nestes casos, o agressor apresenta-se, usualmente, às autoridades quando notificado, na prossecução de uma linha de defesa de negação dos factos ou da sua implicação neles.
Ora, num caso de flagrante delito, após a detenção do arguido e quando novamente em liberdade, sem a aplicação de uma medida de coacção e, principalmente, ainda sob o efeito da exaltação decorrente da intervenção policial – identificado, detido, constituído arguido, notificado e libertado – não serão raros os casos em que o perigo de continuação, ou mesmo exacerbamento, da actividade criminosa será bem real, concreto e concretizado.
O mesmo se diga quanto à detenção fora de flagrante, refém das sobreditas descontinuidades ([32]). Neste caso, com maior relevo no perigo de dissipação de prova, mediante a pressão sobre testemunhas ou o desvio de documentos, entre outros.
Desde situações tipificadas como crime de violência doméstica, até às que o sejam como crime de corrupção, a falta de resposta cautelar será, nestes casos, evidente.
Na ânsia de reduzir a detenção aos casos de estrita necessidade, a manta de retalhos que constitui o novo regime da detenção, vem destapar as vítimas e os interesses sociais na perseguição do crime, ficando assim bem aquém da proclamada estrita necessidade.

10. O FUNDAMENTO E RATIO DA INOVAÇÃO

É patente na exposição de motivos da Proposta de Lei respectiva que a inovação teve o intuito de limitar as situações de admissibilidade legal da detenção, fora de flagrante, ou da sua manutenção, em flagrante delito. Mas porquê e para quê?
Em busca da ratio da revisão e para melhor compreender o seu alcance ([33]), com base na redacção final, conjugada com posições conhecidas por parte da doutrina ([34]), no contexto mediatizado de algumas denominadas detenções-espectáculo que antecedeu a revisão ([35]), é curial concluir que a inovação visou obstar à prática judiciária ancorada na interpretação jurisprudencial maioritária ([36]), que entendia necessária a detenção do arguido para o submeter a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, com vista à aplicação de medida de coacção, por aplicação dos artigos 141º, 194º nº2, 254º nº1 al. a), 257º e 268º nº1 als. a) e b), do Código de Processo Penal.
Com efeito, Germano Marques da Silva, apelando aos princípios constitucionais relevantes, denominava de “errónea” esta interpretação, “relativa à necessidade de prévia detenção para apresentação ao juiz em ordem à eventual aplicação da prisão preventiva ou outra medida de coacção que está a fazer curso na prática judiciária”, uma “prática de que os órgãos de comu­nicação social nos dão notícia frequente”, sustentando: “Nada impede que o Ministério Público promova a aplicação da prisão pre­ventiva sem prévia detenção do arguido. Perante a promoção, o juiz ou ordena a detenção, se a julgar necessária, ou notifica o arguido para interrogatório judicial em ordem à decisão sobre a promoção e fá-lo-á naturalmente depois de analisar o processo e concluir que se verificam os pressupostos para aplicação da medida.”. Esta interpretação permite, assim, afirmar a regra da liberdade sobre a excepção que é a sua privação. “Dir-se-á que não é isso que resulta imediatamente do confronto dos n.os l e 2 do art. 257.°, mas é isso que impõe o respeito do princípio geral da liber­dade como elemento constitutivo do Estado de direito democrático.”. Conclui afirmando: A detenção é também privação da liberdade e como tal deve ser a excepção. A competência para aplicação da medida de coacção compete ao juiz e a antecipação da privação da liberdade mediante a detenção só se justifica em situação de urgência e de perigo na demora.” (sublinhado nosso) ([37]).
Concorda-se, em absoluto, com esta interpretação ([38]), ancorada numa leitura, conforme à Constituição, do arco normativo aplicável. Todavia, essa doutrina da ponderação e do equilíbrio, que temos por correcta, não viria a ser acolhida pela etiologia do processo legislativo. Com efeito, para o novo regime, as sobreditas situações de urgência ou perigo na demora, são materialmente irrelevantes para autorizar a privação da liberdade, num caso em que inexista um perigo de não comparência voluntária ([39]).

11. INSTRUMENTALIDADE CONSTITUCIONAL DA DETENÇÃO

Num Estado de Direito democrático, fundado na igual dignidade e liberdade de todos, “a liberdade juridicamente reconhecida a cada um é, no momento originário da sua consagração constitucional, uma liberdade já intrinsecamente limitada ou comprimida pela necessidade da sua compatibilização ou convivência com outros valores” ([40]).
O direito à liberdade, tal como previsto no artigo 27º, nº 1, da Constituição da República, deve ser entendido como referido “à liberdade física, à liberdade de movimentos, ou seja, direito de não ser detido, aprisionado ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço, ou impedido de se movimentar”. Não constitui assim um direito amplo à liberdade, aliás nem positivado na Constituição, o que é claramente demonstrado pelo elenco de restrições admitidas no seu nº 3.
Diferentemente do que sucede com a maioria das constituições estrangeiras e no seguimento da tradição constitucional portuguesa, desde a sua versão original que a nossa Constituição estabeleceu, nesta matéria, o princípio da tipicidade constitucional das medidas privativas da liberdade física, para além das reservas de lei e de decisão judicial. Deste princípio resulta, designadamente, que não é permitida a criação por via legislativa de restrições à liberdade não previstas nos precisos termos estatuídos pelo artigo 27º, da Constituição da República.
Todas as leis respeitantes à liberdade física dos cidadãos têm que caber numa das normas restritivas expressamente assentes no nº 2 e nº 3 daquele preceito. No entanto, esta tipicidade constitucional não inutiliza a força normativa do artigo 18º, nº 2 e nº 3, da Constituição da República, na medida em que este irá fazer somar àquela, o princípio da proporcionalidade das medidas legais restritivas da liberdade admitidas pelo artigo 27º, da Constituição da República. Ou seja, não basta que a norma infraconstitucional passe pelo crivo desse artigo 27º, é ainda necessário que a restrição à liberdade vise salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, que seja apta para prosseguir esse objectivo e se limite à medida necessária para o alcançar. ([41])
O princípio da proporcionalidade de meios, ou proibição de excesso, com consagração constitucional no artigo 18º nº2 da Constituição da República, refere-se ao conceito de Estado de direito material e desdobra-se, justamente, nesses três subprincípios: princípio da adequação; princípio da exigibilidade; princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito ([42])
Da ideia de adequação, necessidade e proporcionalidade da detenção, emerge o relevo que há-de assumir a demonstração, em concreto, da sua finalidade instrumental.
Assim, a “natureza da detenção como medida cautelar, policial, precária e que se esgota no tempo da respectiva e imediata finalidade directamente prevista, determina e impõe que não possa ter lugar quando não seja necessária, adequada ou proporcionada em relação às finalidades a que se destina, avaliada esta relação, naturalmente, em função da situação concreta e das exigências cautelares que o caso requer” ([43]).
Finalmente, nos termos do artigo 18º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, qualquer privação da liberdade deve corresponder aos fins para que foi prevista, protegendo-se a pessoa contra o arbítrio e deve ainda ser proporcional à gravidade dos factos.
Entende Fernanda Palma que “se houver razões para crer que o suspeito se apresentará voluntariamente a detenção não se justifica, visto que a sua finalidade exclusiva é, precisamente, apresentar o suspeito à autoridade judiciária” ([44]).
Todavia, nesta redutora acepção que, aparentemente terá (des)norteado a revisão, desvalorizam-se, em absoluto, as finalidades da detenção, enquanto meio de aplicação de medidas de coacção. Rectius, aplicação eficaz de medidas de coacção, por imperativo, também, do respeito pela dignidade da pessoa humana, proclamada pelo art. 1º da Constituição da República. A dignidade da pessoa humana, enquanto “fonte ética” dos direitos, liberdades e garantias pessoais, fundamento dos direitos à vida, à integridade física e moral, à liberdade e à segurança, como princípio estruturante do Estado de Direito democrático, ou seja, “na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado” ([45]).
“O «direito à liberdade», tal como resulta do contexto do artigo 27º, é um direito específico, relacionado com a liberdade física e não surge como uma proclamação genérica (…) Pelo contrário, aquilo que o artigo 27º nº seu nº 1 apelida de «direito à segurança» é bem mais vasto, porque consubstancia, no fundo, a garantia do exercício de todos os outros direitos (…)” ([46]).
Em consonância, na ordem axiológica constitucional, a ponderação valorativa subjacente não deve excluir o recurso à detenção, sempre que esta se apresente como meio necessário, adequado e proporcionado de impedir o cometimento de futuros crimes e assegurar a incolumidade de bens jurídicos fundamentais – princípio da proibição do excesso, previsto no artigo 18º nº2, da Constituição da República.
Três exemplos:
- Se há razões para crer que o homicida da sua ex-mulher, que acabou de se apresentar na esquadra para entregar a arma do crime, tem ainda a intenção de matar o actual companheiro desta, ser notificado para comparecer pode assegurar, cabalmente, a sua comparência voluntária. Contudo, a mera comparência não é a finalidade principal da sua detenção, numa interpretação conforme aos imperativos constitucionais subjacentes, pois é o perigo de continuação criminosa que se visa combater, de imediato, e a vida de terceiros, que se pretende garantir, com urgência e sem demora.
- Se há fortes indícios que o suspeito abusa sexualmente da sua enteada, uma notificação para comparecer pode assegurar a sua comparência. Porém, não é esta a finalidade da detenção, quando se pretende pôr cobro, com urgência e sem demora, aos perigos concretos de continuação criminosa e de intimidação da vítima e testemunhas.
- Finalmente, se após a detenção em flagrante delito de um suspeito de violência doméstica, este for solto e notificado para comparecer no dia útil seguinte, não se duvida que o venha a fazer. Todavia, não é esta a finalidade da detenção, quando se pretende pôr termo, com urgência e sem demora, à agressão em curso, com risco para a própria vida da vítima.
Evidentemente, o logro a que conduziu a revisão legislativa neste particular, resultou de uma valoração conceptualmente neutra e, por isso, redutora, das finalidades instrumentais-cautelares da detenção, não consentida pela ordem axiológica da Lei Fundamental.

12. INSTRUMENTALIDADE CAUTELAR DA DETENÇÃO

A detenção, enquanto privação da liberdade instrumental e precária, não visa a mera apresentação a um juiz ([47]), como parece depreender-se deste novo pressuposto de admissibilidade da detenção – a previsibilidade de que o suspeito ou arguido não se apresentará voluntariamente. Pelo contrário, a detenção visa a apresentação a um juiz, com vista à aplicação de uma medida de coacção, que tenha de ser aplicada com urgência e sem demora.
A detenção imediata, ou prévia ao conhecimento dessa possibilidade pelo indiciado, é assumida como o único garante efectivo da sua eficácia, cautelar e instrumental à medida de coacção.
A instrumentalidade da detenção, mesmo no momento prévio de identificação, foi, desde logo, adoptada pelo Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade do Código de Processo Penal, como argumento para admitir a conformidade do artigo 250º, nº 3, do Código de Processo Penal, com o artigo 27º, Constituição da República ([48]).
Todavia, a concretização da natureza instrumental-cautelar da detenção, para além de resultar – pela natureza das coisas – da força expansiva dos princípios constitucionais que vimos referindo, é claramente assumida pela actual redacção do artigo 28º nº1, da Constituição da República, que, aliás, dispensaria maiores aprofundamentos na análise. Aqui prevê-se, claramente, a finalidade da detenção, traduzida na apresentação judicial, em 48 horas, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada. É este o programa constitucional subjacente: apresentar o detido a um juiz com vista à decisão sobre a eventual aplicação de medida de coacção. Se julgar a aplicação da medida de coacção, adequada, necessária e proporcional, terá que a aplicar, caso contrário liberta o detido sem o fazer.
A finalidade constitucional da detenção é, neste caso, substancial, mimética das exigências cautelares impostas pela necessidade de aplicar uma medida de coacção, e não meramente formal, v.g., no interesse da realização expedita da justiça ou do bom andamento da marcha do processo, como resulta, redutor, do novo regime da detenção.
Aliás, também por esta razão – visar o juízo sobre a aplicação de medida de coacção e não necessariamente de prisão preventiva, entende-se que não se exige qualquer relação directa de instrumentalidade entre a detenção fora de flagrante delito e a aplicação da medida de coacção prisão preventiva. Ressalvada, naturalmente, a exigência constitucional de que o crime esteja fortemente indiciado, seja doloso e lhe corresponda pena de prisão de máximo superior a 3 anos – art. 27º nº3, alínea b), da Constituição da República.
Face à tipicidade constitucional das medidas privativas da liberdade, a primeira condição que uma norma restritiva do direito à liberdade tem de respeitar é preencher um dos tipos do artigo 27º, nº 3, da Constituição da República. No mais, o Ministério Público não fica vinculado a requerer a prisão preventiva ou a permanência na habitação, na sequência de uma detenção ([49]). Aliás, mal se compreenderia essa vinculação nos casos em que seja a autoridade policial a ordenar a detenção. Nem esta se pronuncia quanto à medida de coacção, nem o Ministério Público pode ser coarctado na sua autonomia de decisão.
O que sucede, apenas, é que por via da aplicação das regras gerais de intervenção mínima na restrição de direitos fundamentais, a que se vincula o aplicador, seja o juiz, o Ministério Público ou as autoridades de polícia criminal, serão estatisticamente mais os casos de prisão preventiva a reclamar uma prévia detenção do arguido, para a sua eficaz aplicação, do que aqueles em que esteja em causa a aplicação de medidas de coacção não privativas da liberdade.
Seria, no mínimo, pouco curial pretender-se que a autoridade de polícia criminal ou mesmo o Ministério Público, ao mandar deter, já pudesse saber com absoluta certeza que iria ser requerida, muito menos aplicada, a prisão preventiva. No primeiro caso, porque não cabe à polícia pronunciar-se ou decidir sobre esse requerimento e, no segundo, porque o Ministério Público terá, pelo menos de, garantido o contraditório, ter em conta o depoimento do arguido caso não se remeta ao silêncio. Antecipar, em definitivo, uma posição sobre a medida de coacção a aplicar, seria desconsiderar completamente a posição processual da defesa e os direito do arguido a todas as garantias de defesa. Por último, porque é ao juiz de instrução que cabe aplicar a medida de coacção, podendo sempre decidir de modo diverso do antecipado pelo Ministério Público.
Regressando à questão da natureza instrumental-cautelar da detenção, firmada pelo nº1 do artigo 28º, da Constituição da República, sempre se dirá ainda que os referentes sistemático-legais, estão plenamente em consonância com este ditame constitucional.
Primo, a detenção como correlata da aplicação de medida de coacção ou mimética dos seus perigos: o artigo 261º nº1, do Código de Processo Penal, prevê a libertação imediata do detido “quando a medida se tornou desnecessária”, o mesmo sucedendo com a libertação prevista no artigo 143º, do Código de Processo Penal, findo o interrogatório não judicial, o Ministério Público liberta o arguido, caso entenda não ser necessária a aplicação de medida de coacção. Esta caracterização não é extensiva ao novo regime da detenção, porquanto a necessidade não é equacionada em termos cautelares mas, fundamentalmente, reduzida à boa marcha do processo.
Secundo, a urgência e o perigo na demora: o artigo 257º nº2 al. c), do Código de Processo Penal, fazendo repercutir na “situação de urgência e de perigo na demora” o pressuposto da antecipação policial da detenção, demonstra uma teleologia autónoma da mera realização da celeridade da justiça. Outrossim, denota uma vontade em acautelar, em tempo e eficazmente, uma situação concreta de estado-de-perigo, que há-de reportar-se a uma das previstas no artigo 204º do Código de Processo Penal. Esse elemento teleológico é recusado pelo regime revisto, na medida em que os casos em que não se verifique o perigo de falta, serão insusceptíveis de tutela endoprocessual.
Tertio, a detenção nos casos em que apenas se tutela a celeridade da justiça: o artigo 116º nº2, do Código de Processo Penal, com reserva de juiz, prevê a emissão de mandados de detenção, em caso de falta injustificada, contra qualquer sujeito processual. A previsão tem cobertura constitucional no artigo 27º nº3, alínea f), sendo a detenção “para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente”. Todavia, a competência é exclusiva do juiz das garantias, já que, tratando-se apenas do interesse na realização célere da justiça penal, as razões de urgência ou perigo na demora, estendendo a competência para ordenar a detenção ao Ministério Público ou às autoridades de polícia criminal, são significativamente menores. Ora, a revisão legal, de modo sistematicamente incongruente, migra para o âmbito da detenção em flagrante e fora de flagrante delito para aplicação de medida de coacção, considerações exclusivamente atinentes à boa marcha do processo – o comparecimento voluntário do arguido, preterindo, assim, a regra da reserva de juiz nesta matéria.
Em suma, considerados os ditames constitucionais e os referentes sistemático-legais, a afirmação da instrumentalidade da detenção, em nada impõe a restrição operada pelo novo pressuposto legal; pelo contrário, por se tratar de uma privação da liberdade finalisticamente orientada à apresentação judicial para aplicação de uma medida de coacção, esta legitima-se na relação instrumental-cautelar estabelecida, enquanto meio adequado, necessário e proporcional para aplicação da medida de coacção conducente à sustação os perigos concretos indiciados.

13. O CAMINHO A PERCORRER

No caso de restrição, real ou aparente, de um direito fundamental, podem ser considerados os limites imanentes, que identificam o próprio âmbito de protecção constitucional, excluindo o seu exercício em termos absolutos, e os limites que resultam das colisões ou conflitos de direitos, que constituem limitações recíprocas de acordo com os respectivos bens e valores jurídico-constitucionais em concurso ([50]).
Entendemos que naqueles casos em que a aplicação, em concreto, de uma norma infraconstitucional, no âmbito deste regime, impeça a detenção ou sua manutenção, com desprezo absoluto pelo direito à segurança, à integridade, à liberdade e mesmo à vida das vítimas ou de terceiros, o recorte da interpretação normativa subjacente será incompatível com o núcleo essencial desses direitos fundamentais, pelo que será de duvidosa constitucionalidade.
Nesta linha, afirma Figueiredo Dias que “quando em qualquer ponto do sistema ou da regulamentação processual penal, esteja em causa a garantia da dignidade da pessoa – em regra do arguido, mas também de outra pessoa, inclusive da vítima –, nenhuma transacção é possível. A uma tal garantia deve ser conferida predominância absoluta em qualquer conflito com o interesse – se bem que, também ele legítimo e relevante do ponto de vista do Estado de direito – no eficaz funcionamento do sistema de justiça penal” (sublinhado nosso) ([51]).
Todavia, a raiz do problema reside no contexto normativo de fronteira, entre o direito da liberdade e a sua privação, em que as normas devem ser claras e precisas, sendo uma interpretação praeter legem, mesmo que conforme à Constituição, de difícil fundamentação para o aplicador. Diria mesmo, insustentável, quando se tratar de uma autoridade de polícia criminal, perante um caso de flagrante delito.
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no acórdão Steel e Outros contra Reino Unido, de 23 de Setembro de 1998 ([52]), teve o ensejo de se pronunciar sobre esta questão nos seguintes termos: “dada a importância da liberdade pessoal, é indispensável que a lei nacional aplicável cumpra os requisitos de legalidade estabelecidos pela Convenção, o que exige que todas as normas, escritas ou não escritas, sejam suficientemente precisas para permitir que o cidadão – se necessário, com aconselhamento adequado – preveja, na medida do razoável dadas as circunstâncias, as eventuais consequências de uma determinada acção” (sublinhado nosso).
Por outro lado, o direito à segurança é afirmado no artigo 27º, da Constituição da República, cuja prossecução deverá competir, nas hipóteses normais, à polícia ([53]), através da aplicação de medidas de polícia ([54]). A inserção sistemática desta matéria no título relativo à Administração Pública corresponde ao entendimento da doutrina de que a função policial é um modo de actividade administrativa. Do que resulta uma tipicidade legal das medidas de polícia: “O princípio da tipicidade legal significa que os actos de polícia, além de terem um fundamento necessário na lei, devem ser medidas ou procedimentos individualizados e com conteúdo suficientemente definido na lei”. Mais ainda: “A função de prevenção criminal traduzida na adopção de medidas adequadas para certas infracções de natureza criminal, não pode recorrer a procedimentos limitativos da liberdade e da segurança fora dos casos expressamente admitidos pela Constituição” ([55]).
As medidas de prevenção de crimes são apenas medidas de protecção de pessoas e bens, vigilância de indivíduos e locais suspeitos, mas não podem ser medidas de limitação dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos – artigo 272º nº2, da Constituição da República ([56]).
Ireneu Cabral Barreto é peremptório ao afirmar, em comentário à alínea c) do nº1, do artigo 5º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que “eliminadas estão ainda todas as privações de liberdade a título preventivo fora do âmbito do processo penal” ([57]).
É forçoso concluir, então, que compete ao processo penal, nomeadamente através da aplicação atempada e eficaz de medidas de coacção, acautelar, de modo endoprocessual, os perigos que em concreto se verifiquem, resultantes da conduta do arguido, caso necessário, pela urgência e perigo na demora, por via da sua detenção.
Por tudo isto ([58]), mostra-se premente uma rectificação legislativa ao novo regime da detenção, para melhor adaptação das alterações introduzidas ao cumprimento do programa constitucional emergente.
A manter-se o novo pressuposto – perigo de não comparência voluntária – e no respeito pela sua ratio original, este deve ser circunscrito aos casos em que não seja anulado pela premência da natureza instrumental-cautelar da detenção, constitucionalmente consagrada. Nesses outros casos, em que a instrumentalidade, afinada pelas três regras da proibição do excesso – adequação, necessidade e proporcionalidade, reclame a privação precária da liberdade, com vista à aplicação urgente e sem demora de medida de coacção, a detenção deve poder ser decretada e mantida, pela duração máxima de 48 horas, independentemente da verificação ou não desse pressuposto.

CONCLUSÃO

Em matéria de detenção, pode dizer-se, sem margem para qualquer dúvida, que a revisão legal não foi feliz: começou mal e acabou pior. Desde a desatenção a um imperativo constitucional, emendada no limite do processo legislativo, até ao desequilíbrio e falta de concordância prática entre os princípios constitucionais do processo penal, cravado em letra de lei.
Na ponderação entre a constelação de direitos, liberdades e garantias, atinentes à liberdade e à segurança, constata-se que os primeiros prevaleceram de modo excessivo. Prevaleceram sobre as dimensões axiológico-normativas do direito à vida, à integridade pessoal e à liberdade de vítimas e terceiros. Uma projecção ultra-garantística da liberdade individual dos suspeitos de crimes, amarra a revisão muito aquém da pretendida conciliação de valores, com o pêndulo a cair para a banda dos suspeitos, mesmo estando fortemente indiciados.
Dizemos com Roxin que o direito processual penal é o sismógrafo da Constituição do Estado ou que é o direito dos inocentes ([59]). Mas convém não esquecer que a par do arguido, presumível inocente, também a vítima, as testemunhas e a restante comunidade não serão menos inocentes nesta narrativa processual.
Desde a entrada em vigor da revisão, assistimos a forte actividade no sismógrafo das garantias. Sentimos um primeiro sismo quando foi público que indivíduos fortemente indiciados pela prática de crimes de homicídio não foram detidos, por se entregaram voluntariamente às autoridades, mas as réplicas sucedem-se, em novos casos da vida. Ora, apenas numa matriz de equilíbrio entre as garantias de defesa, os direitos da vítima e a eficácia da investigação, pela supremacia da norma jurídica violada, se poderá aspirar a realizar o Direito e a justiça penal ([60]).
O Tribunal Constitucional Federal alemão já teve o ensejo de salientar que “na medida em que o princípio do Estado de Direito contém uma ideia de justiça como componente essencial [...], ele exige também a manutenção de uma administração de justiça capaz de funcionar, sem o que não se pode ajudar a justiça a vingar [...], [devendo reconhecer-se] as necessidades irrenunciáveis de uma acção penal eficaz [...], acentuado o interesse público numa investigação da verdade, o mais completa possível, no processo penal, indicando o esclarecimento dos crimes graves como tarefa essencial de uma comunidade orientada pelo princípio do Estado de Direito” ([61]).
Toda a edificação normativa, cimentada mais na voragem dos tempos e casos mediáticos do que na abstracção reflexiva estará, inelutavelmente, votada ao insucesso. Ou não fossem a abstracção e a generalidade, ainda, marcas genéticas indissociáveis de toda a norma jurídica.
A percepção colectiva de ineficácia da justiça penal que urge combater, conjugada com um crescente sentimento de impotência e perda de autoridade face à criminalidade mais violenta, amplificada pela divulgação mediática, em contra-ciclo ([62]), nas situações da vida em que o novo regime da detenção revela um olímpico desprezo pelos direitos, também constitucionalmente tutelados, das vítimas de crimes; constituem um cocktail explosivo num quadro socialmente fragilizado e multicultural, pouco consentâneo com certos afloramentos de justiça light.
É sabido que na justiça penal, qualquer deriva, seja securitária seja garantista, convive mal com a democracia, mais depressa ficando a própria justiça à deriva. Mas a história repete-se e os movimentos pendulares sucedem-se.
Desconhece-se se o será, mais uma vez, por razões mediaticamente propagadas, numa matéria tão sensível à formação da opinião pública; desconhece-se se o será, também, por razões de política criminal, criteriosamente sustentadas no direito comparado, na experiência pretérita e na dogmática juspenalista; mas, seja como for, temos por certo que este regime será revisto em breve. Um regime mais consciente e equilibrado nascerá, assim, do compromisso entre a prática anterior e a que agora teremos.

/ Plácido Conde Fernandes /
Procurador-Adjunto e Docente no Centro de Estudos Judiciários
NOTAS
[1] O presente texto corresponde à comunicação apresentada nas Jornadas sobre a Revisão do Código de Processo Penal, organizadas pelo Centro de Estudos Judiciários e realizadas em Lisboa, nos dias 15 e 16 de Novembro de 2007. Alguns aspectos haviam já sido introduzidos, sob forma simplificada, na comunicação apresentada nas Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, organizadas pelo Centro de Estudos Judiciários e realizadas em Lisboa, nos dias 27 e 28 de Setembro de 2007, com o tema “Violência Doméstica – Novo Quadro Penal e Processual Penal”, publicado na anterior edição da Revista do Centro de Estudos Judiciários, nomeadamente no respectivo capítulo 6.6 e conclusão.
[2] A revisão do Código de Processo Penal foi introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, rectificada através da Declaração de Rectificação n.º 100-A/2007, de 26 de Outubro, por sua vez também rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 105/2007, de 9 de Novembro.
[3] Recuperando o texto do Anteprojecto, mantido Proposta de Lei, relativamente ao artigo 254.º nº1: ”A detenção a que se referem os artigos seguintes é efectuada: a) […]; b) Para assegurar a presença imediata ou, não sendo possível, no mais curto prazo, mas sem nunca exceder 24 horas, do detido perante a autoridade judiciária ou de polícia criminal em acto processual.” (sublinhado nosso).
[4] De acordo com a Acta nº 75/X/2ª da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República, relativa à discussão e votação, no dia 18 de Julho de 2007, das iniciativas legislativas de alteração ao Código de Processo Penal, a alteração foi suprimida por iniciativa do Partido Socialista que, no dia da votação, propôs oralmente a eliminação do texto, contando com os votos a favor do PSD, PCP e CDS e a abstenção do BE.
[5] Artigo 1º, alínea b), do Código de Processo Penal.
[6] Artigo 1º, alínea d), do Código de Processo Penal. Estranhamente, não foi alterada a redacção desta alínea, sendo ainda atribuída a qualidade de “autoridade de polícia criminal” ao inspector da Polícia Judiciária, quando, já há vários anos que a não tem, por força de uma reestruturação da carreira de investigação criminal, em que os agentes na categoria de acesso passaram a denominar-se inspectores, tendo o artigo 11º da Lei Orgânica da Polícia Judiciária - Dec.-Lei nº275-A/2000, de 9 de Novembro - implicado uma revogação tácita parcial deste preceito do Código de Processo Penal. Sendo a carreira mantida na Proposta de Lei nº 143/X, de alteração da Lei Orgânica da Polícia Judiciária, impunha-se a actualização deste preceito legal.
[7] Na esteira de Alexandre Sousa Brito e Mário João de Brito Fernandes (Comentário à IV Revisão Constitucional, Lisboa, 1999, p.118): “A alínea f) foi modificada, no sentido de clarificar qual a autoridade competente. A locução autoridade judiciária tem por base o artigo 1º, alínea b) do Código de Processo Penal, que considera como tais: o juiz, o juiz de instrução e o Ministério Público.”. Nesta parte, o objectivo da apresentação é “zelar pelo cumprimento das decisões do poder judicial”.
[8] Nesse aresto, o Tribunal Constitucional decidiu “julgar inconstitucional, por violação do disposto no art.º 27º, n.º 3, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 172º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de que pode ser ordenada a detenção judicial de arguido, pelo tempo indispensável à realização de exame médico na sua pessoa e em caso de falta injustificada a diligência anteriormente designada para tal efeito, para garantir a sua comparência em tal diligência a efectuar sob a presidência e direcção de quem pratica o respectivo acto de exame médico.”. Pelo prisma inverso, aquando da fundamentação sustentou a conformidade constitucional de uma norma infraconstitucional, que permita “a detenção de arguido pelo tempo indispensável à realização da diligência de exame pericial psiquiátrico a levar a cabo na sua pessoa”, desde que o mesmo se realize “sob a presidência de agente do Ministério Público ou de juiz”. Assim interpretados, os artigos 116º nº2 e 172º nº1 do Código de Processo Penal “não violam a Constituição”.
[9] Artigo 97º nº5, do Código de Processo Penal.
[10] Vide Mireille Delams-Marty, Procedures Pénales D´Europe, 1995, Paris,; Ramón Macia Gómez, Sistemas de Proceso Penal en Europa, Barcelona, 1998.
[11] Montserrat de Hoyos Sancho, La Detención por Delito, 1998, Pamplona.
[12] Para Carlos Salido Valle, La Detención Policial, 1997, Barcelona, p. 55, a redacção do regime espanhol da detenção está longe de ser clara e unívoca, qualificando-a como “tortuosa, confusa, antiquada, deficiente e desordenada”.
[13] Neste sentido, Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1993, p. 956-957, p. 199
[14] Alíneas a) e b), do nº3 do artigo 27º da Constituição da República.
[15] Citado acórdão nº 161/2005, do Tribunal Constitucional.
[16] Artigos 194º nº3 e 204º, do Código de Processo Penal.
[17] Cfr. alguns exemplos, infra, 11.
[18] Não foi alterado o artigo 257º nº2, do Código de Processo Penal, onde se encontram genericamente previstos.
[19] Ainda que considerada enquanto corpo superior de polícia e com reserva, face a outros órgãos de polícia criminal, para a investigação da criminalidade mais grave e complexa.
[20] Dizemos releva porque não encontrámos nenhum ordenamento jurídico próximo em que este perigo fosse decisivo, como sucede no Código de Processo Penal revisto.
[21] Sancho, Montserrat de Hoyos, op. cit., p.168.
[22] Sancho, Montserrat de Hoyos, op.cit., p.169, citando no mesmo sentido, a doutrina alemã, italiana e espanhola: Jost Benfer, Kleinknecht / Janischowsky, Wendisch, Giulio Illuminati, Gómez Colomer, Ortells Ramos.
[23] TEDH, acórdão Yagci e Sargin contra Turquia, de 8 de Junho de 1995, Série A, N.º 319-A, p. 19, em que o Tribunal concluiu pela violação do artigo 5.º, n.º 3, da Convenção (parágrafo 55).
[24] Parágrafo 52.
[25] Parágrafo 55.
[26] Sancho, Montserrat de Hoyos, op.cit., p.170-172.
[27] Cfr. acórdãos Varbanov, Engel e outros, Winterwerp, Quinn, Loukanov, Giulia MAnzoni e Kurt, citados por Irineu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 2005, 3ª ed., Coimbra, p. 88.
[28] Alínea c).
[29] Edição do jornal Correio da Manhã de 7 de Outubro de 2007, em artigo de opinião semanal “Sentir o Direito”, com o tema “Flagrante Delito”, que aqui se convoca por se tratar do primeiro afloramento doutrinal desta questão, após a revisão legal.
[30] Distinção legalmente plasmada, entre nós, no artigo 204º, do Código de Processo Penal: Fuga ou perigo de fuga; Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; Perigo de que o arguido continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
[31] Cfr. supra 8.
[32] Cfr. supra 7.
[33] Na ausência das actas dos trabalhos da Unidade de Missão, aprofundar arqueologia da revisão é, assumidamente, um exercício sem sucesso garantido.
[34] Germano Marques da Silva, Sobre a Liberdade em Processo Penal ou do Culto da Liberdade como Componente Essencial da Prática Democrática, em “Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias”, pp. 1365-1385.
[35] Não podem ser esquecidas determinadas circunstâncias ambientais, ou casos concretos que terão igualmente contribuído para a revisão legal, podendo integrar o elemento histórico de interpretação. São enfatizados por Germano Marques da Silva, na edição do Jornal de Notícias de 20 de Julho de 2006, relativamente à detenção fora de flagrante delito: “Só poderá haver este tipo de detenção se houver fundadas razões para acreditar que a apresentação à autoridade não seria voluntária. Só por este aspecto já valia a pena esta revisão! Acaba-se com as detenções em directo nos telejornais". A "detenção de Pinto da Costa a 10 metros do tribunal" e o caso Fátima Felgueiras "detida na Câmara para ser interrogada no edifício ao lado", são exemplos de "aberração" na interpretação da lei processual penal, ora alterada. A notícia esclarece que as novidades foram adiantadas “em primeira mão” numa conferência em Gondomar, encontrando-se “munido do texto que está a ser preparado pelo grupo de juristas coordenado por Rui Pereira”. Também Carlos Pinto de Abreu, Direitos do Homem – Dignidade e Justiça, Cascais, 2005, dá nota desses casos / causas: “assistimos recentemente, designadamente no âmbito da denominada operação «Apito Dourado», a um desempenho, por parte do dispositivo judicial, que se oferece lamentável”. Para passar a explicar: “efectivamente, parece desadequada, desproporcionada e injustificada a detenção de suspeitos para interrogatório judicial, por vários dias seguidos, ainda para mais sujeitando-os a longas horas de espera, nos corredores do tribunal e nos calabouços, antes de serem interrogados. Parece que o objectivo epicentral desta actuação reside em provocar vexame aos próprios sujeitos pela sua repetida exposição pública ou o seu exaurimento na angústia e no sofrimento que significa aguardar o início da diligência privado de liberdade.”.
[36] Jurisprudencial e porventura doutrinal. De qualquer modo, desconhece-se a existência de uma corrente doutrinal contrária ou divergente, para além da referida na nota 34.
[37] Germano Marques da Silva, op. cit., pp. 1375-1376.
[38] Embora, em muitos casos, seja difícil retirar de normas legais incoerentes, incompletas ou mesmo inexistentes, uma unívoca interpretação conforme à Constituição, que assegure, com certeza e segurança, todas as garantias de defesa sem perverter as finalidades e a estrutura do processo.
O próprio autor, Germano Marques da Silva, concede que “não é isso que resulta imediatamente do confronto dos n.os l e 2 do art. 257.°” e, na verdade, no seu Curso de Processo Penal, II, Lisboa, 1993, pp. 179-199, nem questionava essa leitura mais legalista. Até o Tribunal Constitucional, no acórdão nº 135/2005, a propósito de um alegado atraso na validação da detenção e na conclusão do interrogatório judicial, avança como boa prática a instituir, com vista à melhor salvaguarda do princípio da liberdade, a “libertação e eventual nova detenção do arguido” detido, assumindo, aparentemente, a necessidade de detenção prévia do arguido (mesmo após libertado) para a realização do interrogatório.
Quanto ao estado da legística aplicada, convém não esquecer que, mesmo agora, quando se pretende inaugurar um novo paradigma, em que o interrogatório para aplicação da medida de coacção se fará com o arguido em liberdade, não houve o cuidado de se colocar entre os actos a realizar pelo Juiz de Instrução em inquérito – artigo 269º do Código de Processo Penal – justamente… o interrogatório judicial de arguido em liberdade, em fase de inquérito. Nem tão pouco se cuidou de fixar um regime para esse interrogatório, pois o artigo 141º não é aplicável directamente não se tratando de arguido detido e o artigo 144º apenas se refere aos interrogatórios feitos, em inquérito, pelo Ministério Público ou pelos órgãos de polícia criminal. Afinal, quando este interrogatório que, face aos redobrados pressupostos da detenção, passará, previsivelmente, a ser o interrogatório-regra, com vista à aplicação de uma medida de coacção, não mereceria ver-lhe atribuído um regime legalmente expresso? Parece que seria conveniente, pelo menos, o esclarecimento legal da obrigatoriedade (ou não?) da presença de Ministério Público e defensor, neste interrogatório.
[39] Não obstante a aparente adesão do seu autor ao texto final da revisão, prescindindo da válvula de segurança ou de equilíbrio que inicialmente propôs, quando afirmou posteriormente: “Só poderá haver este tipo de detenção se houver fundadas razões para acreditar que a apresentação à autoridade não seria voluntária. Só por este aspecto já valia a pena esta revisão!” (cfr. nota 34).
[40] Reis Novais, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Previstas na Constituição, 2003, Coimbra, p. 439.
[41] Gomes Canotilho / Vital Moreira, op. cit., p. 149, 184 e 185.
[42] Idem, p. 144: “Princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); Princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); Princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos)”.
[43] Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 13 de Julho de 2000, de que foi relator o actual Conselheiro Henrique Gaspar.
[44] Idem.
[45] Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Coimbra, 2000, p.80, que reforça ainda a sua função conformadora de “uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais”.
[46] Souto de Moura, A Protecção dos Direitos Fundamentais no Processo Penal, no “I Congresso de Processo Penal”, Coimbra, 2005, p. 44.
[47] Com nenhuma ou com qualquer finalidade processual.
[48] Encontramos uma referência à instrumentalidade, na relação entre a detenção para identificação, prevista no art. 250º do Código de Processo Penal, e a detenção proprio sensu ou a prisão, tal como decidido pelo Tribunal Constitucional, no acórdão nº 7/1987, de 9 de Janeiro de 1987. Decidiu pela não inconstitucionalidade da norma contida no artigo 250º, nº 3, que fixa um tempo de permanência até seis horas no posto policial para os fins aí previstos: “É certo que a hipótese não cabe na letra do artigo 27º. Mas havendo pessoas com penas de prisão ou medidas de segurança privativas da liberdade a cumprir - nº 2 do artigo 27º - ou sujeitas a privação de liberdade por prisão ou detenção - nº 3 do mesmo artigo, necessariamente que tem a lei de admitir os actos instrumentais necessários e adequados a conseguir a sua prisão ou detenção. Ora, o processo aqui estabelecido pode considerar-se meio necessário para atingir tal objectivo.”
[49] Contra, o acórdão da Relação de Lisboa de 25 de Maio de 2005, proferido no processo 1988/05 -3ª Secção (consultado em www.pgdlisboa.pt, no dia 15.09.2007), que decidiu rejeitar o recurso por extemporâneo. Em síntese, sustenta que a detenção para aplicação de medida de coacção diversa da prisão preventiva é uma prática “inteiramente errónea” e mesmo “injustificada e violadora dos direitos daqueles que a sofrem em todas as situações em que não haja fundamento para decretar a prisão preventiva”, criando “uma espécie de prisão preventiva de curta duração (no máximo 48 horas)”. Na verdade, para usar essa designação crítica, teríamos de a estender ao conjunto das espécies de prisão preventiva de curta duração, previstas no catálogo do nº3 do artigo 27º nº3, da Constituição da República, para realizar legitimamente outros valores constitucionais preponderantes.
[50] Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2001, Coimbra, pp. 275 sgs.
[51] Figueiredo Dias, Para uma reforma global do processo penal português - Da sua necessidade e de algumas orientações fundamentais, em “Para uma Nova Justiça Penal”, Coimbra, 1983, p. 207.
[52] Relatórios de 1998 - VII, p. 2735, parágrafo 54.
[53] Artigo 272º, nº 1, da Constituição da República.
[54] Artigo 272º, nº 2, da Constituição da República.
[55] Cfr. artigos 27º e 28º da Constituição da República.
[56] Gomes Canotilho / Vital Moreira, idem, p. 956-957.
[57] Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, Coimbra, 2005, p.94.
[58] Poderiam ser ainda consideradas exigências inerentes à acção da União Europeia na consolidação de um espaço de liberdade, segurança e justiça, tendo como fundamento e finalidade a protecção dos seus cidadãos. Em especial, mediante o reconhecimento mútuo de decisões em todas as fases do processo, é de destacar a proposta de decisão-quadro do Conselho relativa à decisão europeia de controlo judicial no âmbito dos procedimentos cautelares aplicados entre os Estados-membros da União Europeia. A denominada Decisão Europeia de Controlo Judicial (DECJ), poderá ter implicações internas em matéria de detenção, para assegurar o padrão consensualizado pelos Estados-membros.

[59] Vide Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1967-1968, I, citado no acórdão do Tribunal Constitucional, nº 7/87: “propõe-se uma estrutura processual que permita, eficazmente, tanto averiguar e condenar os culpados criminalmente, como defender e salvaguardar os inocentes de perseguições injustas”, considerando ainda a “válida conciliação de dois princípios ético-jurídicos fundamentais: o princípio da reafirmação, defesa e reintegração da comunidade ético-jurídica – i. é, do sistema de valores ético-jurídicos que informam a ordem jurídica, e que encontra a sua tutela normativa no direito material criminal –, e o princípio do respeito e garantia da liberdade e dignidade dos cidadãos, i. é, os direitos irredutíveis da pessoa humana”.
[60] Tivemos oportunidade para o afirmar no Conselho Superior do Ministério Público, durante o debate agendado sobre a revisão do Código de Processo Penal, sessão de 4 de Outubro de 2007, na qualidade de vogal desse Conselho Superior, mediante a proposta que apresentámos nos seguintes termos: “Relativamente aos novos pressupostos da detenção em flagrante delito (artigos 255º e 385º nº1 do CPP) […] ou da detenção fora de flagrante delito (artigo 257º nº1 do CPP) […], constata-se uma grave omissão normativa no que respeita à tutela das situações de perigo de continuação da actividade criminosa, perturbação do decurso do inquérito e grave perturbação da ordem e tranquilidade públicas, que reclamem a aplicação urgente de uma medida de coacção privativa da liberdade, legalmente consentida pelo disposto no artigo 204º do CPP. Destes, avulta a desprotecção das vítimas de violência, por contrariar valores fundamentais correlatos à dignidade da pessoa humana e inúmeros instrumentos normativos internacionais a que o Estado Português se encontra obrigado. Na ponderação dos bens jurídico-constitucionais em conflito, ressalta evidente um claro desequilíbrio em favor dos direitos e interesses do arguido, com prejuízo para o direito à vida, integridade física e dignidade humana das pessoas vítimas ou potenciais vítimas de violência e para o interesse social na realização da justiça criminal. Em nosso entender, o sentido máximo das palavras, naqueles preceitos, não consente a adopção de um critério de interpretação normativa, mesmo pela via da emissão de uma Directiva, que permita restabelecer cabalmente esse equilíbrio, cabendo a este Conselho, nos termos da alínea e), do artigo 27º, do Estatuto do Ministério Público, e considerado o seu comprometimento legal com o constante aperfeiçoamento das instituições judiciárias, alertar e propor as necessárias providências legislativas para situações de incongruência com os referentes axiológico-constitucionais, que o legislador ordinário certamente não terá previsto e querido.”. Foi decidido retomar a questão em sessão posterior, para propiciar a sua melhor análise, valorativa e normativa. Cfr. o Boletim Informativo nº 109, do Conselho Superior do Ministério Público, em http://www.pgr.pt/portugues/grupo_soltas/pub/csmp/indice.htm.
[61] Bundesverfassungsgericht – BVerfGE; v. Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts – BVerfGE –, 33, p. 383, citado no acórdão do Tribunal Constitucional, nº 607/2003.
[62] Convém esclarecer que a lógica mediática de construção da notícia, acondicionada pelas reiteradas exigências profissionais e económicas de novos conteúdos, não deixará de criticar a realidade (criticar, no seu sentido etimológico de passar pelo crivo), mesmo quando esta tenha sido impulsionada pelos mesmos meios de comunicação social ou por alguma opinião pública por eles veiculada. Trata-se de um efeito resultante da natureza valorativamente neutra, própria do campo dos media, em que o valor prosseguido é meramente formal – a transparência ou publicidade (cfr. Adriano Duarte Rodrigues, Estratégias da Comunicação, Lisboa, 2001).