quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Escutas telefónicas e reconhecimento de pessoas

Escutas telefónicas e reconhecimento de pessoas

(texto elaborado para a intervenção na sessão sobre Questões de Prova, no Forum sobre a Reforma do Código de Processo Penal, do CEJ, a 16 de Janeiro de 2009)

NATÁLIA LIMA

(PROCURADORA-GERAL ADJUNTA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA)




A presente comunicação teve por base um conjunto de questões formuladas pelos colegas junto dos tribunais de 1ª instância, por iniciativa do CEJ, e que abrangem a temática das escutas telefónicas face ao figurino introduzido pela reforma do CPP.
O meu contributo prende-se, essencialmente, com a experiência profissional no âmbito dos recursos que têm surgido no TRL.

A 1ª questão que gostaria de salientar prende-se com os pressupostos legais de Admissibilidade das escutas telefónicas para a descoberta da verdade, relativamente aos quais acrescidas exigências de fundamentação se impõem, quer por parte do MºPº, que tem que formular o requerimento, quer por parte do JIC, relativamente ao despacho que autoriza a intercepção e gravação das escutas telefónicas.
Do pressuposto de admissibilidade, vigente no CPP/98, de que a diligência – de intercepção e gravação de escutas – “se revelasse de grande interesse para a descoberta da verdade”, exige-se agora, perante a reforma, que “ a diligência seja indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter”.

Haverá, pois, que evidenciar no despacho que admite a intercepção da escuta, a fundamentação cuidada dos princípios de subsidiariedade e proporcionalidade que regem a necessidade da escuta telefónica.
Ou seja, só será admissível o recurso às escutas nos casos em que a descoberta dos factos ou o lugar onde o arguido se encontra seria, de outra forma, impossível ou de muito difícil concretização. Princípio de que deriva uma dupla exigência: - não será legítimo o recurso às escutas nos casos em que os resultados probatórios desejados sejam, sem dificuldade, alcançados por meio menos invasivo dos direitos fundamentais; - é ainda necessário que a escuta telefónica se apresente como um meio adequado a conseguir aquele resultado.

Pretendeu, pois, a actual reforma instituir, melhor dizendo, disciplinar, que, como regra, a escuta telefónica não seja determinada como primeiro meio de obtenção de prova, logo na abertura do inquérito, nem com base em mera denúncia anónima, mesmo que desta se possam retirar ” indícios da prática de crime”.
[ A determinação da escuta telefónica, tanto num caso como no outro, só não constituirá , assim, uma interferência desproporcional e desnecessária em casos excepcionais de investigação , ou seja, nas situações em que a escuta constitua o único meio de prova, ou de obtenção de prova, de um crime que já se indicia nos autos.]

2ª Questão suscitada:
Delimitação do campo subjectivo do universo dos “escutados”
Com a reforma de 2007, estabelece-se que “As escutas só podem ser efectuadas contra:
- suspeito ou arguidos
- pessoas que sirvam de intermediário
- vítimas
A questão foi suscitada do seguinte modo : “Quais as pessoas alvo das intercepções telefónicas, no segmento “pessoa que sirva de intermediário”- ter-se-á aqui em conta apenas os indícios? Podem escutar-se todos? Mesmo aqueles que , por força da lei – art. 134º do CPP , se podem recusar a depor?

Duas questões:
- noção/conceito de” pessoa que sirva de intermediário”
- faculdade legal de familiares do arguido se recusarem a depor como testemunhas.
Relativamente à última questão – saber se podem escutar (interceptar e gravar conversações) daqueles que se podem recusar a depor como testemunhas, eu diria que sim. Que se podem escutar tais conversações .

A recusa em depor como testemunha é uma faculdade legal, uma possibilidade, a qual pode, ou não, vir a ser utilizada pelos visados (familiares do arguido).
A lei não impõe um dever, mas apenas concede um direito - uma faculdade_ que cede diante do interesse público da investigação criminal (nesse sentido, Prof Costa Andrade).
No mesmo sentido se pronunciou o Sr. Dr. Rui Pereira, coordenador da “Unidade de Missão”- actas- que entendeu que a lógica da recusa e da escusa de depoimento se não estende automaticamente às intercepções telefónicas.

Relativamente ao conceito de “pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido”.
Tenho conhecimento do
Acórdão do TRL de 06.12.2007 -9ª secção, no qual se contempla uma noção ampla de “ intermediário”
Deverá considerar-se que, intermediário , será todo aquele que, pela sua proximidade com o arguido ou suspeito, seja-o por razões de ordem familiar, de amizade, ou por quaisquer outras que levem ao contacto entre ambos, ainda que ocasional ou forçado, se prefigure como potencial interlocutor ,e sobre o qual recaiam suspeitas fundadas de, nos referidos contactos, serem discutidos assuntos que, directa ou indirectamente, se prendam com o crime em investigação,( sendo sempre certo que aquilo que não vier a ser utilizado como meio de prova será posteriormente destruído).
2. A mediação aqui prevista não pressupõe que o referido interlocutor, que não poderá ser, igualmente, um agente do crime, tenha um papel activo na recepção ou transmissão da mensagem. A sua acção pode ser puramente passiva, pois que não é o seu comportamento que aqui se visa, mas, tão só, o de alguém que, sendo suspeito ou arguido da prática de um crime, com aquele se possa relacionar, e com fortes probabilidades de, nos respectivos contactos, falarem do mesmo crime. (Relator : ALMEIDA CABRAL)

Questão distinta se coloca, porém, quanto ao regime dos apelidados “ conhecimentos fortuitos”
O que está em causa é a regulamentação do aproveitamento extraprocessual dos conhecimentos Fortuitos obtidos através das escutas telefónicas
A questão do valor destes conhecimentos fortuitos apenas se coloca quando eles constituem meio de prova de um outro crime diverso daquele que se investiga – regime previsto nos nsº 7 e 8 do art. 187º do CPP.
A regra orientadora será a de que só poderá ser aproveitado para outro processo, já instaurado ou a instaurar, o conhecimento fortuito obtido através de uma escuta telefónica que se destine a fazer prova de um crime catálogo legal e em relação a pessoa que possa ser incluída no catálogo legal de alvo.

Já na vigência do CPP/98 a jurisprudência se pronunciava em tal sentido – acórdãos do STJ de 23.10.2002, de 4.05.2006; do TRL acórdãos 6.05.2003, 7.07.2004, tal como a doutrina - Costa Andrade, que considerava exigível um estado de necessidade investigatório e Germano Marques da Silva que considerava que a escuta telefónica tinha de mostrar-se indispensável à prova do crime noutro processo.

Haverá que ter particular cuidado, por exemplo, nos casos de crimes de associação criminosa, em que a reforma não admite a valoração dos conhecimentos fortuitos relativos a todos os crimes que integrem a finalidade da associação criminosa.- só poderá ser aproveitada para outro processo o conhecimento fortuito, através da escuta, que se destine a fazer prova de crime catálogo e em relação ao catálago fechado dos alvos das escutas.(art. 187º nº1 e nº2 e nº4)

Abordaremos, agora, a temática das “Formalidades das Operações” prevista no art. 188º do CPP
O regime do CPP/98 prescrevia que o OPC levava “imediatamente” ao conhecimento do JIC o auto de intercepção e gravação das conversações, com indicação das passagens consideradas relevantes para a prova, juntamente com as fitas gravadas.
Se o JIC considerasse os elementos recolhidos relevantes para a prova ordenava a sua transcrição e junção aos autos.

No actual modelo, o OPC lavra auto de intercepção e de gravação e elabora relatório indicando as passagens relevantes para a prova, descreve sucintamente o seu conteúdo e explica o seu alcance para a descoberta da verdade.
O OPC leva ao conhecimento do MºPº - de 15 em 15 dias- a partir do início da 1ª intercepção, os respectivos autos e relatórios, bem como os suportes técnicos.
O MºPº leva ao conhecimento do JIC tais elementos no prazo máximo de 48 horas.

Duas questões suscitadas:
- a natureza deste prazo processual;
- a nomeação de intérprete, quando necessário, também por parte do MºPº.

Relativamente à questão da natureza deste prazo “máximo” de 48 horas, tenho conhecimento de duas decisões no TRL, em sentido não coincidente:

-Acórdão de 30.01.2008- da 3ª Secção, no qual se decidiu “que tal prazo se conta a partir do momento em que os elementos trazidos pelo OPC são apresentados nos serviços do MºPº.
“A apresentação dos elementos em causa ao JIC, face à sua específica natureza com tutela constitucional, é um acto urgente, independentemente de o processo no âmbito do qual essa escuta é realizada poder não ter natureza urgente.
“ Resulta do regime legal sobre a contagem e prática dos actos processuais que mesmo os actos urgentes podem ser praticados no dia útil seguinte quando o respectivo prazo termine ao domingo - artºs 104º do CPP e 144º, nº 2 do CPC.
IV - Não tendo sido cumprido o referido prazo uma vez que a secretaria do MºPº só 2 dias depois da entrega daqueles elementos por parte do OPC os apresentou ao respectivo Magistrado, que por seu turno, os levou ao conhecimento do Juiz nas 24h subsequentes, ficam as intercepções correspondentes às transcrições em causa, feridas de nulidade, nos termos do artº 190º do C.P.P, não podendo as mesmas servir de prova” (proc 117/08 –www.pgdlisboa.pt).

Em igual sentido se pronunciou o acórdão do TR Évora de 13.05.2008 : ”O prazo em causa é fixado ao Agente do MºPº e não à simbiose do Agente do MºPº com os respectivos serviços do MºPº” ( relator Martinho Cardoso, proc. 403/08-1)

Pronunciou-se ainda o acórdão do TR Évora de 22.01.2008 (relator João Latas, proc. 3104/07-1 SIMP, descritor “188º CPP ) , no que concerne á contagem do termo do prazo:
Mesmo que se considere que a apresentação dos elementos em causa ao JIC constitui acto processual urgente, resulta do regime legal sobre contagem e prática dos actos processuais, que mesmo os actos urgentes podem ser praticados no dia útil seguinte quando o respectivo prazo termine ao domingo, em termos idênticos ao que sucede com prazo não urgente.( - artºs 104º do CPP e 144º, nº 2 do CPC).

Em sentido distinto, relativamente ao momento da contagem do prazo das 48h, pronunciou-se o acórdão do TRL de 29.05.2008, considerando que tal prazo só começa a correr a partir do momento em que os elementos trazidos pelo OPC chegam à posse efectiva do MºPº , ou seja, no momento em que é aberta conclusão ao MºPº (proc 3735/08-9S, relator Almeida Cabral, www.pgdlisboa.pt) — só tenho conhecimento deste acórdão, no sentido do prazo se contar desde o momento em que a conclusão é aberta ao MºPº, constituindo , até ao momento, jurisprudência isolada quanto ao caso.

Para acautelar a salvaguarda da jurisprudência maioritária quanto à questão, sugeriria que houvesse boa articulação entre o MºPº e o OPC por forma a evitar que minimizar os inconvenientes de as escutas sejam apresentadas após as 16h de uma sexta-feira, afigurando-se que o magistrado do MºPº poderá minimizar os inconvenientes de tal situação através de controle do prazo que estabelece ao OPC para apresentar as mesmas.

Questão da nomeação de intérprete por parte do MºPº
É facto que o art. 188º apenas prescreve que o JIC nomeie, se necessário, interprete para se inteirar do conteúdo das escutas.
Naturalmente que o mesmo problema se coloca aos Magistrados do MºPº quando têm de se inteirar do conteúdo das mesmas, para determinar a sua transcrição pelo OPC ou para requerer ao JIC as passagens que considerar relevantes para efeitos de aplicação de medida de coacção.
Novamente se impõe colaboração estreita entre o MºPº e os OPCs.
Ao que indaguei, no DIAP de Lisboa, a PJ e a PSP têm interprete nos respectivos serviços, os quais procedem à tradução das conversações interceptadas.
E a verdade é que , nos termos do nº1 do art. 188, o OPC tem de elaborar relatório no qual indica as passagens relevantes para a prova, descrever de modo sucinto o respectivo conteúdo e explicar o alcance para a descoberta da verdade.
Para que o OPC possa dar cumprimento ao preceito legal, tem de necessariamente ou, pelo menos desejavelmente, proceder antecipadamente à tradução das escutas.
Em casos limite, sempre o MºPº poderá socorrer-se da nomeação de interprete, nos termos previstos no art. 92º do CPP, prevendo-se em tal preceito que “o interprete seja nomeado por autoridade judiciária ou autoridade de polícia criminal.

Problemática da transcrição de escutas para efeitos de aplicação de medida de coacção( à excepção do TIR)
Trata-se de saber se durante o inquérito o JIC pode indeferir requerimento do MºPº para que se proceda a transcrição de escutas com vista à aplicação de futura medida de coacção, ou se o MºPº tem que indicar, em tal momento, uma concreta medida de coacção a aplicar.
Penso que a jurisprudência maioritária do TRL se tem pronunciado no sentido de não ter de ser cumulativo o requerimento de transcrição de escutas com a indicação de concreta medida de coação a aplicar.
Nesse sentido, Acórdão de 18.12.2007( proc. 8853/07 da 5ª Secção, relator Margarida Blasco), de 27.02.2008(relator Pedro Mourão) e de 4.06.2008 (relator Teresa Féria), estes da 3ª S Criminal( disponíveis em “pgdlisboa.pt)

Em sentido contrário , tenho conhecimento de um acórdão do TR Porto, de 9.04.2008, publicado, com o seguinte sumário:
1. A transcrição prevista no nº 7 do art. 188º do Código de Processo Penal visa permitir o controlo jurisdicional pelo tribunal superior em caso de recurso da decisão de aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial. 2. Por isso, essa transcrição será normalmente um acto posterior à aplicação da medida. (Relator : JOSÉ CARRETO)
Salvo o devido respeito, discordo de tal interpretação.
Também no TRL houve uma decisão sumária, que após reclamação para a conferência, proferiu acórdão no sentido de a intervenção do JIC “só se justificar quando esteja em causa a concreta aplicação de uma medida de coacção, considerando que a actividade reclamada ao juiz ( de determinar a transcrição de escutas) é destituída de sentido, porquanto o MºPº tem à sua disposição todas as intercepções telefónicas, assim como o auto e relatório já elaborados pelo OPC, pelo que sempre poderá o MºPº ordenar as transcrições que entender, ao abrigo do nº9 do art. 188º”.

O MºPº junto do TRL interpôs recurso para o STJ para fixação de jurisprudência face à existência jurisprudencial de soluções opostas sobre a mesma questão de direito.
Como supra aludi, discordo , em absoluto , da posição assumida nos dois últimos acórdãos referenciados, pelos seguintes fundamentos:

A prova documental que resultar das intercepções telefónicas só podem ser consideradas e valoradas pelo tribunal na medida em que a acusação ou a defesa a indique, no momento oportuno, e proceda à respectiva transcrição –( nº9 do art. 188º do CPP).
Porém, o legislador teve ainda o cuidado de estabelecer um regime específico para o caso de, no decurso do inquérito, se tornar necessário valorar essa prova para efeitos de fundamentação da aplicação de medidas de coacção –( nº8 do citado preceito.)
Para não deixar desprotegida, nesta parte, a posição do arguido, impôs que a selecção das conversações a transcrever e a juntar aos autos seja feita pelo Juiz de instrução, a requerimento do MºPº.
Essa intervenção judicial visa garantir a imparcialidade daquela selecção, por forma a que ela possa reflectir toda a prova que tiver sido recolhida através deste meio, no momento em que os restantes sujeitos processuais não têm, ou podem não ter acesso ao processo, designadamente nos casos em que tenha sido determinado o segredo de justiça.
A triagem ou selecção da informação a transcrever tem sempre de se basear em critérios do Juiz – e não do OPC ou do MºPº- enquanto juiz das liberdades que também por isso conserva o que se vem designando por “imparcialidade operativa”
Para fundamentar a decisão judicial de aplicação de medida de coacção o meio de prova válido é, tão só, a transcrição das conversações telefónicas e a determinação da sua junção aos autos – a qual, nos termos do art. 188º nº8 é da competência, exclusiva, do JIC.

Só por esta via se possibilita, de resto, o pleno cumprimento da exigência de fundamentação do despacho judicial que aplicar medida coacção a qual tem de conter, sob pena de nulidade, “a referência a factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da media, incluindo os princípios de necessidade, adequação e proporcionalidade (previstos no art.193º) e os perigos previstos no art. 204º, ,e quando aí se determina que o arguido, por princípio, deve ser confrontado, para além dos factos, também com os meios de prova existentes – art. 194 nº4-d), nº5 e nº6 do CPP.
E só as transcrições valem como prova e podem, assim, ser utilizadas para fundamentar decisões, e não o conteúdo dos suportes técnicos. Note-se que apenas a partir do encerramento do inquérito, o arguido e o assistente podem examinar os suportes técnicos das escutas. ( art.188º nº8).
Os suportes técnicos destinam-se a ser destruídos ou guardados em envelope lacrado – nsº 6 e 12 do art. 188º do CPP.
E os relatórios elaborados pelo OPC, contendo sucinto conteúdo do teor das conversas telefónicas , não são transcrições de conversa telefónicas – art. 188º nº1 do CPP.

Assim sendo, o facto de não ter sido ainda ordenada a detenção de suspeitos a constituir como arguidos e de se não saber sequer qual vai ser a medida de coacção requerida, ou a requerer pelo MºPº, relativamente aos mesmos, não pode obstar a este procedimento uma vez que os indícios resultantes deste meio de obtenção de prova podem vir a ser úteis em qualquer momento e para aplicação de qualquer medida de coacção (à excepção do TIR).

[O Prof. Paulo Pinto Albuquerque( Comentário do CPP) destaca a conveniência, especialmente nos casos de processos com grande volume de escutas, em o MºPº requerer com antecedência ao JIC a transcrição e junção aos autos das transcrições que entende indispensáveis para fundamentar a aplicação de medida de coacção. Quando estiverem prontas as transcrições , o MºPº deve requerer então a realização de interrogatório judicial para aplicação de medida de coacção, no qual se revelarão as transcrições já efectuadas.]

Relativamente à questão suscitada de qual o valor probatório das escutas mandadas transcrever pelo JIC, para efeitos de aplicação de medida de coacção, eu diria que tais escutas não têm de novo que ser transcritas por iniciativa do MºPº ao OPC; o MºPº deve indicar tais escutas como meio de prova na acusação se entender que elas suportam/fundamentam a acusação deduzida.

Nesse sentido se pronunciaram já diversos acórdãos do TRL- disponíveis em http://www.pgdlisboa.pt/, ou no SIMP
- Ac. de 24.10.2007 (proc. 8862/07-3ª s, relator Carlos Almeida)
- Ac. de 6.12.2007(Adelina Oliveira e Trigo Mesquita)
Em sentido contrário, vd. acórdão de 30.10.2008 ( proc. 7396/08 -9ª S, relator Francisco Caramelo)
(todos os acórdãos ou sumários disponíveis em www.pgdlisboa.pt)

Relativamente à questão colocada de “Qual o valor probatório das escutas que o MºPº mande transcrever e juntar aos autos, antes de findo o inquérito, se for aplicada medida de coacção diferente do TIR?”
Eu diria o seguinte.
A entidade competente para aplicar medidas de coação, à excepção do TIR, é, apenas o Juiz de Instrução.
A fundamentação do despacho que aplicar a medida de coacção contém, sob pena de nulidade, a referência aos factos concretos, incluindo os previstos nos arts. 193ºe 204º (princípios de adequação e os “perigos” ). Donde, a meu ver, o valor probatório das escutas que tenham sido seleccionadas e mandadas transcrever pelo MºPº ao OPC, e que venham a fundamentar a aplicação de medida de coacção, por parte do JIC, pelo menos as escutas que indiciem a ocorrência dos “perigos” estabelecidos no art. 204º do CPP, podem estar feridas de nulidade - é o que resulta das disposições conjugadas dos arts. 190º (os requisitos e condições referidos nos arts. 187 a 189º são estabelecidos sob pena de nulidade) art. 188º nº7 ,art. 194º nº4 d), nº5 e nº6).
Deverá, pois, o MºPº estar especialmente atento ao conjunto de escutas que possam fundamentar a aplicação de uma medida de coacção, e requerer ao JIC a selecção e transcrição das mesmas.
Como último recurso,( como excepção, e não como regra), penso que o JIC poderá validar, no despacho que fundamenta a aplicação da medida de coacção, a selecção de escutas efectuada pelo MºPº e por este mandada transcrever ao OPC.

Questão colocada no âmbito do art. 189º nº1 do CPP-
- “extensão dos requisitos de Admissibilidade e de Formalidade das Operações “às conversações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à intercepção de comunicações entre presentes”
- Pergunta: se a expressão..."mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital..." pode abranger as mensagens escritas enviadas via telemóvel, vulgo as sms?
(No anterior regime às sms era aplicado o regime da apreensão de correspondência decorrente do disposto no art. 179.º do Código de Processo Penal; com a alteração legislativa podemos interpretar a nova norma de extensão do regime das escutas telefónicas como abrangendo este tipo de comunicação? )
Eu responderia que sim.
As mensagens arquivadas no cartão do telemóvel constituem uma forma de comunicação incluída no âmbito de protecção do art. 189º , pelo que a respectiva leitura deve ser autorizada pelo juiz, quer já tenham sido lidas, quer ainda o não tenham sido pelo seu destinatário. Assim decidiu já o acórdão do STJ de 20.09.2006.
Nessa medida, a apreensão do telemóvel com vista apenas à leitura da informação sobre os números contactados estará sujeita ao regime do art. 189º.(relativamente a crimes catálogo e a catálogo fechado de alvos escutados).
O acesso à facturação detalhada das conversações telefónicas está igualmente sujeito aos requisitos contidos no art. 189º, sendo que a reforma do CPP acolheu a circular da PGR (nº5/2001 de 16.06.2001), tendo tido acolhimento jurisprudencial, (diversos acórdãos do TRL- ex.Ac TRL de 10.12.2003- e do TR Guimarães - ac de 24.01.2005)
Tal regra impõe-se igualmente para a listagem detalhada das mensagens de texto recebidas por telemóvel - vulgo “SMS”, com identificação dos números remetentes e do conteúdo das mensagens.
Dito de outra forma, apenas será possível proceder à intercepção de comunicações electrónicas não telefónicas nas mesmas condições em que é permitida a realização de intercepções telefónicas – na expressão do acórdão do TRÉvora de 29.04.2008.
No regime vigente, no âmbito do CPP/revisto é esta também a posição perfilhada por Paulo Pinto Albuquerque.
[No domínio do CPP/98 há, porém, jurisprudência divergente da citada, entendendo-se que “As mensagens escritas - SMS - que o arguido remeteu ao queixoso via telemóvel, cujo conteúdo foi copiado pela PJ e junto aos autos, constituem um meio de prova lícito e não_ configuram, de forma alguma, um caso de intromissão na vida privada do mesmo. (Relator : SIMÕES DE CARVALHO) TR Coimbra, de 29.3.2006; TRL acs. De 15.07.2008 (proc. 3453/08-5 Simões Carvalho), de 20.03.2007 ,proc 7189/06-7, Agostinho Torres)]
Mas no sentido que julgo ser o mais conforme à matriz constitucional e ao ordenamento processual penal, citarei o acórdão do TR Évora de 29.04.2008, proc. 111/08, relator Desembargador Dr. Ribeiro Cardoso (e o acórdão do TR Coimbra de 4.10.2006 (CJ XXXI,4,41)

Passaria a ler os segmentos que julgo mais impresssivos do citado Ac do T. R. de Évora:
“O conceito de comunicação electrónica não está previsto na legislação da área penal, mas vem definido no art. 2.º n.º1, alin. a) da Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, que regulamenta o tratamento de dados pessoais e a privacidade no sector das comunicações electrónicas.
( Diz esta norma que comunicação electrónica é qualquer informação trocada ou enviada entre um número finito de partes mediante utilização de um serviço de comunicações electrónicas acessível ao público. É um conceito muito lato e abrangente que, a própria lei entende valer apenas para efeitos da presente lei. Pelo contrário, telecomunicação é um conceito que nenhuma lei actual define. O ordenamento jurídico usa-o, por exemplo, no texto do n.º2 do art. 194.º do Código Penal, mas não o define.
“Importa ter presente que, nos serviços de telecomunicações cabe distinguir três espécies ou tipologias de dados ou elementos: (i) os chamados dados de base, relativos à conexão à rede; (ii) os chamados dados de tráfego, dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e gerados pela utilização da rede (p. ex. localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência); e (iii) os chamados dados de conteúdo, concernentes ao teor da comunicação ou da mensagem [2]
“A garantia do sigilo abrange, não apenas o conteúdo da correspondência, mas o tráfego como tal (espécie, hora, duração, intensidade de utilização).
. Por força do estatuído no n.º 4 daquele art. 34.º, o direito ao sigilo das telecomunicações envolve as proibição da devassa do seu conteúdo e a sua divulgação por quem a elas tenha acesso, designadamente os empregados dos serviços de telecomunicações, para quem decorre um dever de sigilo profissional, como garantia do direito ao sigilo das mesmas telecomunicações, que não poderá ser violado. Este inciso constitucional é tanto mais relevante quanto em matéria de processo criminal as excepções à inviolabilidade das telecomunicações não são a regra, ou melhor, são a contra-regra. Na verdade, na lei ordinária actual, mesmo em matéria de processo crime, a ingerência nas telecomunicações só é permitida nos casos de o tipo legal de crime corresponder ao catálogo de crimes cuja gravidade social e o relevante interesse de paz social permitem essa ingerência (cf. art. 187.º do CPP). . “A distinção entre dados de tráfego das comunicações e o seu conteúdo é, hoje em dia irrelevante, já que a Lei 41/2004, de 18 de Agosto, equipara os dados de tráfego aos dados de conteúdo para efeitos de garantia da inviolabilidade das comunicações.
A equiparação de dados de conteúdo, que são o núcleo mais fundamental da própria comunicação, aos dados de tráfego, para efeitos de protecção do sigilo das telecomunicações sujeita a obtenção destes dados ao regime de intercepção e gravação de conversações e comunicações telefónicas vertido no art. 187.º do Código de Processo Penal.
Em face do disposto nos arts. 187º (crimes catálogo e alvo dos escutados) , 189º(extensão desses requisitos ás conversações transmitidas por meio técnico diferente do telefone) e 269º nº1 al e) do CPP ( apenas o JIC pode autorizar a intercepção, gravação de conversações nos termos dos arts. 187º a 190º), apenas será possível proceder à intercepção de comunicações electrónicas não telefónicas nas mesmas condições em que é permitida a realização de intercepções telefónicas.
A lei nova sujeitou também ao regime do art.. 189º as comunicações electrónicas “mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital” incluindo, portanto, também o correio electrónico já recebido ou mesmo aberto e tratado pelo destinatário.

Com esta breve comunicação, espero ter contribuído para a reflexão sobre o regime das escutas telefónicas no novo regime processual penal.

Por fim, a Temática do meio de prova obtido através de “Reconhecimento” e obtido através de “identificação”.
No que tange à pergunta formulada sobre “ o valor probatório dos reconhecimentos efectuados em audiência de julgamento no decurso de um depoimento testemunhal”, eu diria que está em causa o valor probatório do meio de prova efectuado através de “reconhecimento” e do meio de prova efectuado através de “identificação”.
O meio de prova “reconhecimento”, por regra efectuado em inquérito ou em instrução tem de obedecer, taxativamente, aos requisitos previstos no art. 147º .
A identificação, por regra, efectuada em audiência de julgamento no decurso de depoimento testemunhal, não tem que obedecer aos requisitos plasmados no referido art. 147º, antes tem de ser valorada no termos do art. 127º do CPP - princípio da livre apreciação da prova,.

Nesse sentido se pronunciou o recente acórdão do TR Porto de 7.11.2007 (proc 0713492, www.dgsi.pt), já com expressa referência ao CPP/revisto, cuja clareza de raciocínio justifica que se passem a ler excertos do mesmo:
“A adição pela lei nova ( Lei 48/2007 de 29.08) de um novo número ao art. 147º do CPP (…) não se traduz numa qualquer novidade na disciplina do reconhecimento; apenas vem dizer que, quer no inquérito, quer na instrução, quer no julgamento, o meio de prova que é o reconhecimento tem de obedecer ao formalismo enunciado naquele artigo.
Isto é, a lei nova não veio introduzir um novo meio de prova ou definir de maneira diferente o valor probatório daquele meio de prova, caso em que se poderia pôr a questão de aplicação da lei nova, se eventualmente mais favorável ao arguido. Apenas veio dizer de forma inequívoca aquilo que já era suposto (e que muitas vezes se fazia na prática dos tribunais) na lei antiga: que o meio de prova reconhecimento só seria válido e eficaz se obedecesse ao formalismo do nº2 do art. 147º.
No domínio da lei antiga entendia-se (falamos do entendimento da jurisprudência e da prática dos tribunais) que o reconhecimento do arguido ou de alguém, feito por uma testemunha em audiência de julgamento, não tinha sempre de obedecer ao formalismo prescrito pelo art. 147º do CPP, pois este preceito legal só tinha aplicação nas fases de inquérito e de instrução. (Ac STJ de 2.10.1996 –BMJ460,525; de 1.02.1996-CJ/STJ,ano IV,I,fls.198; de 11.05.2000, proc 75/2000 e de 17-02-2005, proc 4324/04; de 2.10.1996, proc 96P728; de 06-09-2007, proc 06P1392,www.dgsi.pt).
Esse entendimento e a prática correspondente não deverão sofrer abalo no âmbito da lei nova quando se trate não de proceder ao reconhecimento do arguido, mas à identificação do mesmo ,pela testemunha, como sendo o autor dos factos em discussão. Isto por se entender (como antes se entendia) que em tais caos o que se valoriza é o depoimento da testemunha, apreciado nos termos do art. 127º do CPP, e não a “prova por reconhecimento” a que alude o art. 147º (cfr acórdãos atrás citados) . E entendia-se que esta interpretação do art. 147º não violava o princípio das garantias de defesa consagrado no art. 32º nº1 da CRP, ou qualquer outra norma constitucional, como decidiu o TC no acórdão 425/2005 de 25.08.2005( proc 452/05, DR nº 195, II série de 11.10.2005,pp 14574 a 14579) (…)
Em todo o caso, também se sublinhava e deve continuar a sublinhar-se, que tinham de considerar-se sanados quaisquer vícios do âmbito do art. 147º, existentes em reconhecimento efectuado em audiência, desde que não fosse logo arguida a nulidade do acto, quando o arguido a ele assistia. (Ac STJ de 14.04.1994, proc. 46223; Acs STJ de 2.10.1996, proc. 96P728, www.dgsi.pt)” (…)
No que toca à identificação +propriamente dita dos arguidos feita em audiência de julgamento dos presentes autos, no acórdão recorrido refere-se com notável objectividade o teor das declarações das testemunhas que referenciavam os arguidos como sendo os autores dos assaltos, e desse mesmo acórdão não é possível concluir que a convicção do tribunal se formou apenas com base nessas identificações (…)
Assim, com referência às declarações das testemunhas na parte em que, de modo directo ou indirecto, identificaram os arguidos como sendo os autores dos factos que elas referem, terá de se dizer que, como se extrai do art. 127º do CPP, salvo os casos de prova vinculativa, o julgador aprecia a prova segundo a sua própria convicção, formada à luz das regras da experiência comum. E, só perante a constatação de que tal convicção se configurou em termos errados é legalmente admissível ao tribunal superior alterar a matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido”.
Como questão de fundo em termos de valoração destes meios de prova, eu direi, que em 1ª linha, o Magistrado do MºPº, enquanto titular do inquérito, e naturalmente, os Órgão de Polícia Criminal, devem cuidar/diligenciar para que se proceda a reconhecimento –auto de reconhecimento de pessoa - em sede de inquérito, sempre que possível, em momento temporal próximo da prática do crime, com observância escrupulosa dos requisitos legais plasmados no art. 147º do CPP.

Nas situações em que não for viável proceder ao reconhecimento em sede de inquérito, propugna-se que a identificação que venha a ocorrer, em sede de audiência de julgamento, por parte de testemunha, se rodeie de especiais cuidados, designadamente que a testemunha descreva, previamente, as características físicas do identificando, as circunstâncias de modo e lugar em que esteve em contacto visual com o identificando, o tempo que dispôs para visualizar as características físicas daquele, de forma a que o tribunal possa ajuizar, com maior segurança, da credibilidade da identificação, elemento de prova a valorar em conjugação com o restante conjunto de fontes de prova que seja produzido no decurso do julgamento.

O meio de prova obtido através da identificação de arguido exige, por parte do tribunal de julgamento, acrescida exigência de fundamentação sobre as fontes de prova - de entre elas a identificação efectuada -, que serviram para formar a convicção do julgador.

Espero que esta breve comunicação tenha contribuído para uma reflexão conjunta sobre um leque de questões com que todos nos debatemos, na nossa prática judiciária, face à operada reforma do CPP.

A produção de prova em julgamento

A produção de prova em julgamento: criminalidade económico-financeira e criminalidade fiscal
(texto resultante da comunicação efectuada no CEJ, no decurso da formação permanente, em 06.12.2007)
ANA BRITO
JUIZ-DESEMBARGADORA E DOCENTE NO CEJ


Em Portugal há uma ideia que perpassa toda a sociedade: a ideia de que os processos importantes não chegam ao fim.
E considera-se processo importante tanto aquele que corre contra pessoa(s) económica ou politicamente poderosa(s), como o processo por crime que atinja em grau elevado bens jurídicos particularmente relevantes, o processo por crime causador de dano de montante consideravelmente elevado, o processo que adquira avultada dimensão, ou que trate de crime e/ou de factualidade de elevada complexidade.
A criminalidade económico-financeira, as corrupções e a criminalidade fiscal, por uma ou outra razão, dão muitas vezes origem a processos importantes.
Sendo o direito penal uma ciência prática e visando o processo a resolução do caso, partirei de dois desses casos em que tive intervenção como juíza de julgamento, para abordagem de duas concretas questões de prova, neste tipo de criminalidade.
São elas, respectivamente, a especificidade da prova, da prova pericial, no julgamento de crimes fiscais (particularmente das fraude carrossel) e, a especificidade da valoração da prova segundo o princípio da livre apreciação no julgamento de crimes de corrupção.

Em de Dezembro de 2001 foi distribuída à Vara Criminal onde então exercia funções um processo de arguidos presos, conhecido como o processo Mas Rós.
Tratava-se, segundo creio, do primeiro processo de fraude carrossel.
Até então nunca ouvira falar em carrossel do IVA ou em fraude carrossel.
O proc. Mas Ros era já nessa altura constituído por 15 volumes, processados em 4439 folhas, acompanhados de documentação composta por 53 pastas com o nome de pasta-anexo e 91 pastas com o nome de apensos-A
A acusação Mas Ros apresentava-se deduzida contra dezasseis arguidos, nacionais e estrangeiros, sendo nove, pessoas físicas, e sete, sociedades.
Imputava-lhes, ao 1º arguido, um crime de associação criminosa, um crime de fraude fiscal agravada, um crime de abuso de confiança agravado; aos 2º a 9º arguidos, os mesmos crimes à excepção do abuso de confiança, e aos 10 a 16º arguidos, um crime de fraude fiscal.
Computava em 1.529.277.226$00 (mil quinhentos e vinte e nove milhões, duzentos e vinte e sete mil e duzentos e vinte e seis escudos, o valor do prejuízo causado ao estado, sendo desse montante o pedido cível contra todos deduzido.
Arrolava 51 testemunhas, dez das quais inspectores tributários e/ou técnicos economistas. Oferecia ainda como prova toda a documentação junta ao processo e ainda dez relatórios periciais, um dos quais final e de âmbito global.
O processo Mas Rós era, por tudo, um processo importante.
E da leitura da acusação, bem como dos meios de prova oferecidos resultou logo que era também um processo de elevada complexidade.
E essa elevada complexidade resultava não tanto do aspecto jurídico da causa crime (ou da causa cível enxertada na causa crime), mas da própria factualidade subjacente à imputação típica.
Ao longo de quarenta folhas, a acusação descrevia o facto real, ou seja, o tal “pedaço de vida” que se pretende regular com o processo, e que, no caso, consubstanciava uma fraude carrossel do IVA.
Nela se identificavam seis circuitos diferentes de transacção de mercadorias originárias de Espanha e/ou de Portugal, todos eles utilizados como meios distintos para apropriação, a favor dos arguidos, do IVA liquidado e recebido.
E essa apropriação, traduzida na obtenção de benefícios económicos indevidos à custa do estado português, partia do aproveitamento da livre circulação de mercadorias instituída pelos tratados da então C.E.E. e da U.E. e da aquisição de mercadorias feita à taxa de o% de IVA.
O processo era já constituído por quinze volumes, continha densa actividade processual e de investigação, na qual assumiam especial protagonismo a(s) perícia(s) e a actuação dos peritos, com um vastíssimo trabalho de procura do facto.
Mas, apesar de todo esse imenso trabalho desenvolvido no processo pelo instrutor, (instrutor, no sentido mais amplo e menos técnico), é o julgamento, mais precisamente o seu momento último – a sentença ou decisão final - o momento mais importante do processo, o momento para o qual todo o processo caminha desde o início, o momento em que se “restabelece a paz jurídica comunitária posta em causa pelo crime” e se “reafirma a validade da norma violada” (Fig. Dias).
É que, como refere Sérgio Poças, “ em julgamento penal, no início da audiência, nada existe, porque nada está provado”
O julgamento visa a discussão da causa penal, de forma a habilitar o tribunal a proferir decisão justa. A decisão justa pressupõe a descoberta da verdade, e a descoberta da verdade passa pela produção das provas.
Considera-se por isso que a prova é a questão fundamental do julgamento e, logo, de todo o processo judicial, e que o juiz penal deve procurar a verdade onde quer que ela se encontre, socorrendo-se para isso das provas.
E há duas ideias fundamentais, que devem ser preocupação constante do juiz de julgamento e, logo, necessariamente, as do instrutor do processo:
- a primeira, é a de que o facto do processo, do processo judicial, se aproxime o mais possível do facto real (desejável é mesmo que o facto do processo coincida com o facto real;
- e a segunda, a de que a procura da verdade deste facto real, que se deseja que seja também a verdade do processo, se faça de uma forma legalmente conformada.
Não há boa decisão fora da verdade.
E as provas (não quaisquer provas, mas apenas as de imperiosa conformação legal) constituem a única via de acesso à verdade, ou de reconstrução da verdade no processo judicial.
Há que ter sempre presente, em qualquer momento da marcha do processo, que a prova tem que nele entrar validamente, não podendo nunca, o conhecimento do facto passar pela via da prova proibida.
O processo penal, entendido como um espaço seguro no qual o juiz deve garantir que se procura a verdade, espaço edificado pelo corpo de normas processuais penais (e constitucionais penais) constitui o melhor espaço possível para chegar a um resultado que consinta o mínimo erro: o tal erro de facto, que, se cometido, dificilmente será reparado.
Na definição de Garapon, “o processo é uma forma vaga que não pertence a ninguém; é por isso que se adequa tão bem à democracia, que é o poder da pessoa. Está pronto a acolher todas as versões dos factos e todos os argumentos, aplicando-lhes uma determinada ética quanto à exposição. O processo controla o modo como se apresentam, provam e interpretam os factos.”
Pretendendo-se com o processo a resolução do caso, do tal “pedaço de vida” trazido a julgamento, se o juiz falha na averiguação e descrição do facto, falha, no limite, no exercício da sua função soberana de administração da justiça em nome do povo (art. 202º, nº1 da CRP).
Há pois que conformar o facto à realidade histórico-existencial, por via do julgamento justo.
Mas de que facto falamos, quando falamos em criminalidade fiscal, mais especificamente em fraude carrossel do Iva?
Parece-me ser aqui, neste ponto da compreensão/definição do pedaço de vida que se pretende regular, que reside a especificidade dos processos de fraude carrossel e por crimes fiscais em geral.
É que a própria compreensão do facto naturalístico exige, no caso, por parte do julgador, conhecimento em áreas não especificamente jurídico-penais.
É desejável que o juiz penal, quando chamado a decidir a causa penal sempre que esta consista em conhecer da fraude carrossel, possua também alguns conhecimentos de fiscalidade e de contabilidade. Mais do que desejável, julgo-o imprescindível.
É certo que na descoberta/compreensão deste facto assume especial protagonismo a perícia e os peritos.
Mas, por um lado, o resultado apresentado no laudo é sempre sindicável pelo juiz. E, pelo outro, o perito não descreve nem narra todo o facto.
“O perito não pode substituir o julgador antecipando-se à fixação do facto” (Prof. Anabela Rodrigues).
A sua contribuição (do perito) no processo consiste na formulação de um parecer ou opinião sobre o significado ou valor de meios de prova. Ele intervém na apreciação da prova, sempre que esta pressuponha conhecimentos fora do alcance directo do julgador.
O perito é portanto um auxiliar do juiz.
Seguindo Cav. Ferreira, “Os factos são uma coisa e coisa diferente é a sua apreciação. A apreciação dos factos é função judicial. A perícia não é verdadeiramente um meio de prova, nem real, nem pessoal. Destina-se a auxiliar o julgador, ou o instrutor do processo na função que lhe é peculiar de desvendar o significado de provas preexistentes ou de apreciar o seu valor ”.
Nos processos de fraude carrossel, esse auxílio tem lugar em dois momentos diferentes:
- na revelação da existência da prova – v.g. localização, selecção, apreensão de documentos
- e na apreciação do valor dessa prova – exame dos documentos: facturas, balanços, cruzamento de informação contabilística.
Num primeiro momento, trata-se de descobrir a prova, funcionando o perito como auxiliar da investigação e confundindo-se mesmo com o próprio instrutor do processo.
A apreciação da prova pelo perito não é porém omnicompreensiva como a do juiz, mas apenas parcial, quer quanto aos factos ou objecto do processo, quer quanto à perspectiva sob a qual se observam ou apreciam os factos.
As conclusões dos peritos não tomam a natureza de decisões, mas o juiz serve-se delas para formular a própria decisão.
E é nessa formulação da decisão judicial, na parte consistente na definição do facto a subsumir juridicamente, que será desejável, digo mesmo imprescindível, que o juiz de julgamento possua algum conhecimento extra penal, particularmente nas referidas áreas de contabilidade e de fiscalidade, quando julga a causa penal fiscal.
Se assim não for, poderá comprometer a descoberta do facto e, consequentemente, a decisão.
E falhará na função soberana de administração de justiça já que para dizer o direito terá necessariamente de dizer, primeiro, e bem, o facto.

Ainda a propósito da descoberta do facto, e sempre na perspectiva da prova em julgamento, passarei à segunda questão: a da apreciação dessa prova nos crimes de corrupção,
e falarei, a propósito, do segundo processo.
Refiro-me a um processo, de grande dimensão, que ficou conhecido como o processo dos pilotos da barra.
Tendo sido inicialmente acusados cerca de 150 arguidos, por via da separação de processos, vim a intervir no julgamento de 62 deles, a quem se imputavam crimes de corrupção activa e de corrupção passiva.
Os primeiros arguidos, eram sócios de empresas proprietárias de rebocadores, rebocadores utilizados pelos segundos arguidos, os pilotos da barra de Lisboa, nas manobras de entrada e saída de navios do porto de Lisboa.
Muito sinteticamente, dizia a acusação, que as empresas de rebocadores gratificavam monetariamente os pilotos da barra para que estes escolhessem os seus rebocadores (pagos pelo Estado) nas referidas manobras.
A entrega e recebimento das verbas era facilmente demonstrável no processo – todos os arguidos admitiam os pagamentos/recebimentos das quantias que até declaravam fiscalmente, passando recibos; E diziam tratar-se de um costume muito antigo e conhecido de todos.
A prática dos actos da função também o era: a escolha e utilização dos rebocadores estavam materializadas em pertinente documentação.
Faltava a prova do terceiro facto: a ligação entre a solicitação ou aceitação da vantagem e a prática do acto pelo funcionário.

Nas palavras de Almeida Costa, a corrupção (passiva) constitui um crime de dano, que importa efectiva violação da esfera de actividade do Estado, traduzida numa ofensa à sua “autonomia intencional”.
E essa violação dá-se logo que ocorra declaração de vontade do funcionário público que evidencie a inequívoca intenção de mercadejar o cargo, isto é, de vender o exercício de uma actividade. O crime consuma-se independentemente do recebimento da oferta, ou seja da retribuição para um qualquer acto de serviço.
Sempre que o agente se deixa influenciar pelo suborno tomando uma decisão diversa da que tomaria se a gratificação (ou a sua promessa) não tivessem ocorrido, há corrupção passiva.
O tipo do art. 372º do CP pune o funcionário que (…) solicitar ou aceitar vantagem (…) para um qualquer acto ou omissão contrários aos deveres do cargo.
Como alguma doutrina e alguns críticos referem, e a prática judiciária tem demonstrado, é neste “para um qualquer acto” (o antigo ”como contrapartida de”) que se coloca a principal questão de prova neste tipo de criminalidade.
Ou seja: pode ser, e é muitas vezes, facilmente demonstrável no processo a prática de determinado acto ou omissão relativos ao cargo; pode ainda sê-lo a verdade dos factos relativos à existência ou movimento da vantagem do pretenso corruptor para o pretenso corrompido; mas isto não basta para tipificação do crime.
Em 06 de Fevereiro escrevia o Dr. Rui Pereira: ”Suscita controvérsia a proposta de criação de um crime de “enriquecimento ilícito”. Os adeptos da proposta assinalam que a corrupção é difícil de investigar e que a exibição de fortunas inexplicáveis por titulares de cargos públicos põem em causa a credibilidade do Estado de Direito democrático. No pólo oposto os críticos recordam uma garantia fundamental do processo penal: a presunção de inocência, consagrada no art. 32º, nº2 da CRP. Se o crime de corrupção passiva fosse punido sem mais quando o arguido exibe um património cuja origem não consegue explicar, violar-se-ia o art. 32º, nº2 da CRP. A fortuna inexplicável seria condição suficiente de uma condenação, dando-se como provado que alguém teria recebido vantagem patrimonial para praticar determinado acto ou omissão. O arguido seria condenado com violação do princípio do in dúbio pró reo” .
Retomando a questão da prova, já concretamente situada na demonstração do terceiro facto:
Os crimes de corrupção e similares são crimes reconhecidamente de difícil investigação e, ao que ora interessa, de difícil prova.
Reconhecidamente, pelo próprio legislador, que normativizou regimes especiais de recolha e obtenção de prova.
São crimes ligados ao poder ou a um poder.
Onde há poder há corrupção, diz-se. Ou, na melhor das hipóteses, onde há poder pode haver corrupção.
Na ausência de confissão/admissão deste terceiro facto ou de qualquer outra prova directa, no sentido de prova que incida directamente sobre ele, resta ao julgador a apreciação de prova indirecta, aquela que permite ao julgador, sempre com o auxílio das regras da experiência uma ilação quanto ao facto probando.
Como já referia Cav.Ferreira, são muito frequentes os casos em que a prova é essencialmente indirecta.
E acrescentava aquele prof.: “Dada a importância que reveste em processo penal, há que indicar alguns tópicos essenciais, chamando sobretudo a atenção para os seus perigos ou insegurança das conclusões e para o modo mais criterioso da sua utilização. É uma prova em si mesma enganadora, isto é, consente graves erros. Efectivamente a verdade final, a convicção, terá que se obter através de conclusões baseadas em raciocínios e não directamente verificadas: a conclusão funda-se no juízo de relacionação normal entre o indício e o facto probando. O carácter falível destes raciocínios de relacionação entre dois factos revela o evidente perigo de erro, ou a relativa fragilidade da prova em si mesma.”
Sabe-se que a prova é, por regra, apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente; que o tribunal forma a sua convicção valorando os diferentes meios de prova sem obediência a critérios legais pré-fixados, mas de acordo com as regras da experiência; que não existe convicção fora da prova; que esta convicção é pessoal, do julgador, formada na livre apreciação da prova, mas necessariamente objectivável e motivável.
Livre apreciação da prova entendida como, nas palavras de Des.Sérgio Poças “análise racional e objectiva da prova, levada a cabo pelo tribunal de acordo com as regras da experiência, da lógica, da razão e dos conhecimentos científicos e técnicos necessários ao caso, sem subordinação a critérios legais pre-fixados.”
Mas qual o grau de convicção exigível, exigível pelo próprio julgador – o seu grau de convicção; ou, de uma forma diferente onde termina ou começa a dúvida razoável?
Voltando ao caso, há que avaliar, à luz dos critérios da experiência comum se, no caso, a(s) entrega(s) em dinheiro, as gratificações, as lembranças, pelo seu valor, pela sua reiteração, pelo demais circunstancialismo de tempo modo e lugar em que ocorrem se não mostram justificáveis de outro modo, que não seja o de visarem a prática de acto do funcionário.
Mas essa avaliação far-se-á de acordo com os princípios gerais de apreciação de prova comuns a todos os tipos de criminalidade.
O processo penal não permite, porque não prevê, regras especiais de valoração da prova para os casos de corrupção ou nos casos de criminalidade de difícil investigação.
Prevê meios específicos de obtenção e até de produção de prova. Mas não de valoração da prova.
São momentos processualmente distintos, que se sucedem no processo: o da recolha e obtenção da prova, o da produção da prova e, por último, o da sua valoração.
O grau de exigência e de rigor exigido pelo princípio da livre apreciação da prova não variam consoante o tipo de crime em causa.
São, pelo contrário, precisamente os mesmos. O que no caso quer porém também dizer que esse exercício soberano máximo falha quando se exige mais, mais prova, ou melhor ou maior convicção do que para o julgamento de outros crimes menos graves ou menos complexos; ou simplesmente diferentes.

Gostaria de referir, para terminar, o que aconteceu afinal aos dois processos.
No proc. Mas Rós, a 04/06/2002, dois anos após a prática do (último) facto, foi proferido acórdão, em que se decidiu: julgar a acusação e o pedido cível procedentes por provados, e em consequência condenar o primeiro arguido na pena única de sete anos e seis meses de prisão, um outro arguido na pena de três anos e seis meses de prisão, todos os restantes arguidos pessoas singulares na pena de três anos de prisão suspensa na execução por igual período de tempo, as arguidas “sociedades” em penas de multa.
Foram ainda todos os arguidos condenados a pagar ao Estado Português a quantia de 7.627.753,24€ (sete milhões, seiscentos e vinte e sete mil, setecentos e cinquenta e três euros e vinte e quatro cêntimos) e juros legais.
Interpostos recursos, sucessivamente, para o Tribunal da Relação de Lisboa, para o Supremo Tribunal de Justiça e, ainda, para o Tribunal Constitucional, foi sendo a decisão proferida em 1ª instância sempre confirmada, tendo o seu trânsito em julgado ocorrido em 21.11.2003.
Os arguidos cumpriram as respectivas penas.
O Estado adquiriu título para recuperação do dano.
Restabeleceu-se a paz jurídica comunitária posta em causa pelo crime e reafirmou-se a validade da norma violada.
O processo dos pilotos da barra também chegou ao fim, conhecendo contudo decisão diferente.
Decorridos alguns meses de julgamento foi proferido acórdão integralmente absolutório, do qual não foi interposto recurso.
Também aqui se restabeleceu a paz jurídica comunitária.

Gostava de referir, e agora é mesmo para terminar, que o nosso sistema processual penal convive muito dificilmente com processos de avultada dimensão, os mega-processos ou os processos-monstro.
Que cabe ao M.P., no âmbito do seu poder de direcção do inquérito e por via da prolação da acusação, a delimitação/conformação, inicial do processo.
Cabe-lhe por tudo isso uma grande responsabilidade na definição última do tema da prova (apesar das possíveis alterações de objecto que venham a ocorrer no processo, por via do exercício da defesa do arguido e outras pontuais intervenções de sujeitos processuais).
Julgo que deverá ser sempre equacionada e pensada pelo MP também esta questão da dimensão física do processo, no sentido de se prosseguir e conseguir uma melhor justiça.
Que não passa, na minha visão das coisas, pelas mega-acusações e pelos os mega-processos.
Tudo para que também os processos importantes continuem a chegar ao fim.