sexta-feira, agosto 21, 2009

Perda de bens ou perda de a favor do Estado de vantagens criminosas

(texto de Ana Luísa Santos Coelho)

A lei 5/2002 introduziu um conjunto de medidas especiais de combate à criminalidade organizada e económico-financeira. Uma dessas medidas é precisamente a criação de um mecanismo repressivo designado de perda de bens a favor do Estado – art. 7º a 12º.

Desde logo pode-se questionar se a expressão escolhida pelo legislador se revela adequada, uma vez que em rigor não se trata de nenhuma perda de bens. A expressão “perda de bens”, utilizada no domínio da Lei 5/2002, nada tem a ver com a perda de bens que se prevê no Código Penal. De facto, na legislação penal existe uma ligação directa entre a figura da apreensão – enquanto medida processual – e a declaração de perda. Ali os bens apreendidos são meios de prova do facto cometido e devem ser declarados perdidos em directa ligação ao facto ilícito praticado. Já no caso da Lei 5/2002, não há qualquer ligação com o crime cometido. Do que verdadeiramente se trata é de determinar o montante apurado que deve ser declarado perdido a favor do Estado. Trata-se, sim, de uma declaração de perda pelo valor. Dito de outro modo, a verdadeira sanção é uma sanção pecuniária avaliada em função do património do condenado, pelo que o mais correcto será concluir que a expressão “perda de bens” denomina sim a execução da referida sanção.

Assim, ultrapassada a questão terminológica passemos então ao enquadramento jurídico e aos fundamentos que estiveram na origem da criação desta medida especial. O legislador, considerando que nem sempre se afigura fácil a prova de que, os bens patrimoniais dos arguidos em certos crimes organizados ou económico-financeiros, são vantagens provenientes da actividade ilícita e, portanto, sujeitos a perda a favor do Estado, nos termos dos artigos 109º a 111º do CP, veio estabelecer algumas regras que impedem os agentes criminosos de se refugiarem, quanto a esse aspecto, numa mera aparência de legalidade, ou de pretenderem prevalecer-se da dúvida, consagrando no art. 7º uma presunção sobre a origem das vantagens obtidas pelo agente.
Este mecanismo corresponde, pois, a uma nova forma sancionatória que visa garantir a eficaz repressão dos lucros que podem ser obtidos com certo tipo de criminalidade. Traduz-se num verdadeiro confisco, numa sanção puramente objectiva, cuja determinação é baseada unicamente num cálculo patrimonial, matemático, não relevando a gravidade do ilícito, nem a gravidade da pena ou sequer o grau de participação do condenado (dai, segundo o Prof. Damião da Cunha entender que se trata de uma sanção sem qualquer elemento de pessoalidade).

Poderá dizer-se a este respeito que a determinação da medida sancionatória conflitua com o princípio da proporcionalidade, quando confrontado com o disposto no nº 4, do art. 112º do CP, que estabelece uma regra de equidade se a perda pelo valor se mostrar injusta ou demasiado severa face à situação económico-financeira do arguido. No entanto, como contra argumento, sempre se poderá afirmar que estamos no âmbito de uma criminalidade organizada, o que pressupõe parâmetros substancialmente mais exigentes.
Este novo mecanismo assume assim:
i) Relevo substantivo – pretende reprimir vantagens presumidas de uma actividade criminosa baseada num juízo de congruência entre o património do arguido e o rendimento lícito do mesmo,
ii) Relevo processual – funcionando como uma verdadeira regra de inversão do ónus da prova – art. 9º - cabendo ao arguido a prova da licitude dos seus rendimentos.
O legislador introduz, assim, uma presunção juris tantum: se alguém se dedica a certa actividade ilícita que propicia, como regra, rendimentos avultados, nem sempre fáceis de quantificar, é de presumir que esses benefícios patrimoniais são de proveniência ilegítima.
Assim, a sanção criada pela Lei 5/2002 é aplicada quando, sendo um agente condenado por um crime de catálogo, se possa inferir que esse crime se insere numa actividade criminosa e que, com probabilidade, o seu património terá como fonte essa actividade.
Nos termos do seu art. 7.º, “em caso de condenação pela prática de crime referido no art. 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.”

Questão que se coloca, desde logo, é se, com a criação deste mecanismo, se viola ou não o direito de propriedade, constitucionalmente assegurado no artigo 62º CRP. Refiram-se, a este propósito, os Acórdãos do STJ de 12/11/2008 – Procº08P3180 –Relator: Santos Monteiro e do TC nº 294/2008 – Relator: Carlos Cadilhe, disponíveis em www.dgsi.pt, os quais se pronunciaram no sentido da não violação de qualquer direito fundamental, nomeadamente o direito de propriedade. No entendimento dos acórdãos, tal presunção legal de ilicitude na proveniência nada tem de inaceitavelmente agressivo aos direitos fundamentais do cidadão, na medida em que:
1º Em primeiro lugar, opera apenas no âmbito de crimes de catálogo (os mencionados no seu art. 1.º);
2º Depois, porque a presunção - base do confisco - supõe a prévia condenação por um daqueles crimes;
3º Por outro lado, ela é direccionável, apenas, ao seu produto, às vantagens dele derivadas, assente num propósito de prevenção da criminalidade em globo, ligado ao velho aforismo de que o crime não compensa, de reafirmar tanto sobre o agente do facto típico (prevenção especial individual) como sobre a sociedade em geral, com reflexo ao nível do reforço da vigência da norma (prevenção geral positiva ou de integração);
4º Por fim, e não menos essencial, o arguido pode arredar a presunção, demonstrando, no exercício do seu pleno direito de contraditório, a proveniência lícita dos bens ou vantagens supostamente liquidados pelo MP com o rótulo de ilícitos.
O direito de propriedade, não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro de determinados limites e com as restrições definidas noutros lugares do texto constitucional ou na lei.
Acrescentam, ainda, que esta limitação ao direito de propriedade, em nada viola o princípio da presunção de inocência, uma vez que não representa qualquer antecipação da pena e visa, apenas, alcançar outras finalidades relacionadas com a boa administração da justiça, recaindo sobre a acusação o ónus de provar em julgamento os elementos típicos dos crimes que vierem a ser imputados aos arguidos. Concluem, portanto, no sentido de que a previsão de um mecanismo especial de perda de bens a favor do Estado por força da Lei 5/2002, tomando por base a presunção de obtenção de vantagens patrimoniais ilícitas através da actividade criminosa, estando em causa graves crimes, como é o caso p.ex. do tráfico de estupefacientes, é perfeitamente conforme à CRP.
Em favor da legalidade da presunção estabelecida, invocam, ainda, um outro argumento: o facto de a Lei 19/2008 de 21 de Abril (que veio alterar a Lei 5/2002 reajustando os crimes de catálogo) ter deixado intocada a presunção.
O estabelecimento de uma presunção é uma indicação clara de que a Lei 5/2002 introduziu no processo penal um procedimento que se afasta dos seus cânones.
1º O julgador deve verificar se estão reunidos os pressupostos que configuram a base factual daquela presunção e,
2º Depois, constatar se o arguido deduz contraprova quanto à presunção da proveniência ilícita do produto do crime.
Prioritariamente, o julgador deve socorrer-se da prova produzida em tribunal e, depois, fazer funcionar a presunção, fixando o facto legalmente presumido, na esteira de que quem usufrui de uma presunção está dispensado de provar os factos a que ela conduz, nos termos do art. 344.º, n.º 1, do CC. No entanto, a presunção estende-se, apenas, à ilicitude da proveniência de bens.

O Prof. Damião da Cunha lança algumas críticas a este novo mecanismo sancionatório:

1º Desde logo, afirma que em lado nenhum se diz na lei que, pelo facto de o agente ter sido condenado por um crime, se deva presumir que existe uma anterior actividade criminosa;
2º Depois, ao não prever expressamente qualquer dever por parte do MP de demonstrar a existência de uma anterior actividade criminosa, põe sobre o condenado um ónus excessivo;
3º E quando exige a prova da licitude dos rendimentos ou bens, tem ainda como consequência que o património a ser retirado possa nada ter a ver com os crimes do catálogo.
Assim, para o Prof. Damião da Cunha, para que se possa verificar a presunção estabelecida no artigo 7º, é necessário que:
1º O agente seja condenado por um dos crimes de catálogo e que se caracteriza pela susceptibilidade de gerar grandes proveitos;
2º Se comprove uma actividade criminosa.
Esta medida sancionatória tem uma dupla finalidade, já que assenta num duplo juízo de probabilidade: prognose para o futuro e para o passado, ou seja:
1º Foi criada para, retrospectivamente, combater lucros (presuntivamente) ilícitos;
2º E prospectivamente, para destruir a base económica de actividades ilícitas que podem servir de base à continuação da actividade criminosa.
No entendimento do Prof. Damião da Cunha trata-se de uma medida de carácter não penal, uma vez que nada tem a ver com um crime, sendo mais uma medida de carácter análogo a uma medida de segurança.
Outro problema interpretativo que se poderá colocar prende-se com o próprio âmbito da presunção estabelecida no artigo 7º. Saber se, de acordo com a letra da lei, a mesma se refere única e exclusivamente ao chamado “património não congruente”, isto é, à diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito, ou se verdadeiramente o que se presume é que, no caso de condenação por um dos crimes previstos, todo o património tem fonte ilícita. Para o Prof. Damião da Cunha, quando o art. 9º estabelece que a presunção é ilidada se se provar que os bens resultaram de actividade lícita ou foram obtidos há, pelo menos, cinco anos antes da constituição de arguido, parte de uma presunção de que a fonte do património é sempre ilícita, concluindo então que é esta verdadeiramente a presunção estabelecida no art. 7º.

Importa, ainda, referir que o conceito de património associado à sanção estabelecida é demasiadamente vasto, já que do nº2 do art.7º resulta que o ponto de partida da sanção é precisamente constituído por todos os bens ai referidos, dependendo, depois, do arguido “salvar” no todo ou em parte o património, se fizer prova da licitude da sua origem. É o MP que na acusação ou até 30 dias antes do julgamento liquida o montante que deve ser perdido a favor do Estado. A liquidação que é efectuada constitui sempre o limite máximo do valor apurado como a declarar perdido.

Também relativamente a este aspecto, o Prof. Damião da Cunha levanta algumas reservas já que para que o acto de liquidação tivesse características de objectividade seria necessário que o MP desenvolvesse uma qualquer investigação em ordem a apurar a incongruência dos rendimentos. No entanto, não sendo esta a finalidade do inquérito, não se poder esperar que o MP averigúe desta sanção.
Uma última palavra para referir que o art. 10º da Lei 5/2002 prevê, ainda, a possibilidade de ser decretado pelo juiz o arresto preventivo dos bens, a requerimento do MP e independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime, sendo-lhe aplicável o regime do arresto preventivo previsto no CPP. O arresto, assume, assim a forma de incidente processual.