terça-feira, setembro 15, 2009

A responsabilidade civil conexa com a criminal

(texto de Mónica Travessa Ferreira, para a sessão de 3 de Março de 2009)

A responsabilidade civil conexa com a responsabilidade penal; o pedido de indemnização civil.

I – A prática de uma infracção criminal é possível fundamento de duas pretensões dirigidas contra os seus agentes:
- uma acção penal, para julgamento e, em caso de condenação, aplicação das reacções criminais adequadas;
- uma acção cível, para ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais que a infracção tenha causado.

Estas duas acções apresentam uma estreita conexão entre si mas não se confundem, daí que se tenha discutido se deverão as mesmas ser objecto do mesmo processo ou se deverão ser decididas em processos autónomos, de jurisdições diferentes.
A este propósito podemos identificar:
a) O sistema da identidade: apenas tem interesse histórico. Figueiredo Dias apelidou-o de “sistema da confusão” total. Corresponde a uma fase da evolução do direito penal em que este ainda se confunde com o direito civil – ainda não está presente o interesse na punição do culpado, mas apenas o interesse da vítima em obter vingança e reparação;
b) O sistema da absoluta independência: é o sistema seguido em Inglaterra, Estados Unidos da América e Brasil. Tem como pressuposto as diferentes finalidades que as acções penal e cível se propõem realizar;
c) O sistema da interdependência ou da adesão: é o sistema perfilhado pela maioria das legislações. Tem inúmeras cambiantes mas apresenta como denominador comum a possibilidade ou a obrigatoriedade de juntar a acção cível à acção penal, permitindo que o juiz penal decida também a acção cível.

É este o sistema também consagrado entre nós no artigo 71.º do Código de Processo Penal. Assim, o direito à indemnização por perdas e danos sofridos com o ilícito criminal só pode ser exercido no próprio processo penal, nele se enxertando o procedimento cível a tal destinado.

Do ponto de vista das leis penal e processual penal, a indemnização civil fundada na prática do crime é encarada como um instituto de natureza estritamente civilístico, e como tal deve ser substantivamente encarado e tratado.
Tal resulta, claro, do art.º 129.º do CP (A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil), e tem expressão em toda a regulamentação dos art.ºs 71.º e ss. do CPP.
Já, porém, no aspecto processual, e tendo em conta o princípio da autonomia do processo penal, o correspondente pedido rege-se pelas normas pertinentes do CPP, sem prejuízo da aplicabilidade, como direito subsidiário, das normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal – art.º 4º.
A este propósito, cfr. o Ac. Rel. Porto, de 24.01.94, in CJ, XIX, tomo 1, pág. 253 onde se prescreve que “no pedido de indemnização civil formulado em processo penal não é aplicável o art.º 631.º do CPC, mas sim o 316.º, n.º 1, CPP, em matéria de substituição e adicionamento de testemunhas – questão processual ;
Cfr., também, o Ac. Rel. Coimbra, de 21.11.96, in CJ, XXI, tomo 5, pag.55, onde foi admitida a ampliação do pedido de indemnização civil em processo penal, numa aplicação das regras do processo civil sobre ampliação do pedido.

O princípio é o de que o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime deve ser accionado no processo penal, só o podendo ser em separado nos casos previstos na lei.
O Código adoptou, pois, um sistema de adesão obrigatória da acção civil à acção penal, embora mitigado.

II – Este sistema de adesão obrigatória estava já consagrado no CPP de 1929 – artigo 29.º − e tinha como traço fundamental a possibilidade de o juiz condenar o réu em indemnização civil sem necessidade de pedido expresso (artigo 34.º do CPP de 1929) mesmo em caso de absolvição do crime (artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 605/75, de 3-11).

Em 1987, ficou consagrada a necessidade de formulação expressa do pedido cível para que o juiz penal possa arbitrar uma indemnização.
Manteve-se, pois, o princípio da adesão obrigatória da acção civil ao processo penal.
Restringiu-se o patrocínio oficioso do MP aos carecidos de meios económicos – cfr. a este propósito a Circular da PGR n.º 14/88.
Estabeleceu-se a obrigatoriedade de o tribunal informar o lesado de um crime dos direitos civis que lhe assistem e da forma pela qual os pode fazer valer no processo penal e, ainda, a intervenção subsidiária do MP na dedução do pedido.
Ficou ainda estabelecida a possibilidade de o juiz atribuir provisoriamente ao lesado uma soma adequada sempre que não possa ou não deva decidir sobre o pedido de indemnização civil ou este deva ser liquidado só em execução de sentença.

O regime do pedido de indemnização civil em processo penal foi objecto de profundas alterações pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, no sentido, sobretudo, de melhorar a protecção do lesado no âmbito do processo penal.
Sem prejuízo do que diremos mais à frente, apontamos já as alterações que nos parecem mais significativas:
- a omissão do dever de informação do lesado passou a constituir fundamento para a dedução em separado do pedido – art.º 72.º, n.º 1, al. i);
- o dever de informação é alargado aos OPC’s, quando for caso disso – art.º 75.º, n.º 1;
- estabeleceu-se a obrigação das pessoas interessadas em deduzir o pedido de indemnização o declararem no processo até ao encerramento do inquérito;
- prevê-se, em último caso, a possibilidade de intervenção espontânea do lesado que não tenha manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização ou que não tenha sido notificado para o fazer;
- O regime da representação sofreu grandes alterações – num esforço de conciliação com as regras do processo civil e com o EMP:
- afirmou-se o princípio de representação do lesado por advogado, mas admitiu-se a sua intervenção sem advogado nos casos em que também o pode fazer em processo civil (artigo 32.º, a contrario, do CPC) – possibilitou-se que, na maioria dos casos, o lesado pudesse obter o ressarcimento dos seus danos através de um procedimento informal, baseado numa simples declaração no processo, com indicação dos prejuízos e das provas que pretende apresentar;
- o regime de intervenção do MP em representação do lesado não foi eliminado mas foi harmonizado com o regime resultante do seu estatuto orgânico e com o processo civil – artigo 76.º, n.º 3, prevê a intervenção do MP em representação do Estado e das outras pessoas e interesses cuja representação lhe seja atribuída por lei. É o caso, designadamente, dos incapazes, dos incertos e dos ausentes.
- O art.º 82.º-A veio consagrar a possibilidade de o tribunal, oficiosamente, poder arbitrar, como efeito penal da condenação, uma reparação pelos prejuízos sofridos, quando o imponham particulares exigências de protecção da vítima.

III – Passando à análise do processamento do pedido de indemnização cível no processo penal:
Como já ficou dito, a regra é a da obrigatoriedade de dedução do pedido cível no processo penal – artigo 71.º − desrespeitando-se este princípio, há uma preclusão do direito à indemnização pois fica-se impossibilitado, no futuro, de se recorrer aos meios civis para obtenção do ressarcimento dos prejuízos sofridos.

O artigo 72.º consagra, porém, as excepções ao princípio da adesão obrigatória, que podem ser agrupados nas seguintes categorias:
- protelamento ou arrastamento excessivo do processo penal (a), por não haver acusação passados oito meses sobre a notícia do crime ou por o processo estar sem andamento por igual período;
- arquivamento ou suspensão provisória do processo penal, ou extinção do procedimento antes do julgamento (b);
- procedimento dependente de queixa ou acusação particular (c), caso em que a prévia dedução do pedido perante a jurisdição civil vale como renúncia ao direito de queixa ou de acusação (n.º 2);
- ausência de danos no momento da acusação, ou desconhecimento da sua existência ou extensão (d);
- silêncio da sentença penal quanto ao pedido formulado, por o juiz ter remetido as partes para os meios comuns, nos termos do art.º 82.º, n.º 3 (e);
- ter o pedido cível sido deduzido contra o arguido e responsáveis civis, ou somente contra estes haja sido provocada, nessa acção, a intervenção principal do arguido (f);
- diferente espécie dos tribunais passíveis de intervir na parte criminal e civil, por o valor do pedido cível permitir, se deduzido no foro civil, a intervenção do tribunal colectivo, devendo o processo penal correr perante o tribunal singular (g);
- forma especial, sumária ou sumaríssima, em que deva ocorrer o processo penal (h);
- falta de informação do lesado acerca do direito de formular o pedido cível no processo penal, em violação do dever de informação que consta do art.º 75.º, ou falta de notificação do despacho de acusação ou, não o havendo, do despacho de pronúncia, para, querendo deduzir o pedido, em violação do art.º 77.º, n.º 2.

Umas notas particulares para as alíneas:
b) o processo criminal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o processo se tiver extinguido antes do julgamento
Pergunta-se: extinto o procedimento criminal por morte do arguido antes do julgamento o processo penal pode prosseguir quanto ao pedido de indemnização cível?
Ac. RC de 16-5-1994 e Ac. RL de 15-4-1998: não é possível o prosseguimento dos autos para apreciação do pedido cível. O lesado deve, pois, recorrer aos tribunais cíveis para ver ressarcidos os seus danos.
E se o processo penal se extinguir por amnistia?
Ac. Fixação de Jurisprudência n.º 1/98: “Quando, por aplicação da amnistia, se extingue a acção penal, e apesar de não ter sido deduzida acusação, poderá o ofendido requerer o prosseguimento do pedido cível”.
Quanto à extinção por prescrição:
O AUJ 3/2002, de 17.01.02, in DR 1-A, nº54, de 05.03.02, julgou que “extinto o procedimento criminal, por prescrição, depois de proferido o despacho a que se refere o art.º 311.º do Código de Processo Penal, mas antes de realizado o julgamento, o processo em que tiver sido deduzido pedido de indemnização civil prossegue para conhecimento deste”.

c) O procedimento depender de queixa o de acusação particular
A excepção prevista na alínea c, do nº1 tem como objectivo evitar o recurso obrigatório ao processo criminal, por parte do ofendido de crimes particulares ou semi-públicos. Por isso, deve ser interpretada restritivamente, de maneira a que dela não resulte a possibilidade de o ofendido que tenha exercido o direito de queixa ou de acusação, poder deduzir, em separado, pedido cível ao mesmo tempo que faz prosseguir o processo criminal.

h) o processo penal decorrer sobre a forma sumária ou sumaríssima
Processo sumário: O formalismo do pedido cível no processo sumário é muito reduzido – o pedido e a contestação são apresentados em requerimento escrito, ou verbalmente, para a acta – art.º 388.º.
Se o julgamento do pedido não se compadecer com os trâmites do processo deverá ser decidida a tramitação sob a forma de processo comum – art.º 390.º.
Para além disso o pedido pode, logo desde o início, ser deduzido em separado.
Processo sumaríssimo: nesta forma de processo, não é lícita a intervenção de pessoas com responsabilidade meramente civil – art.º 393.º.
Estas podem dirigir-se ao MP que proporá, se for caso disso, o pedido de indemnização.
Independentemente disso, elas próprias poderão propor acção em separado para o ressarcimento dos seus danos.

Quanto ao n.º 2 do mesmo artigo:
Se o lesado, titular do direito de queixa ou acusação num crime semi-público ou particular, deduziu pedido de indemnização nos tribunais cíveis não pode posteriormente apresentar queixa pelos mesmos factos uma vez que tal opção equivale a renúncia ao direito de queixa ou acusação.
Já será diferente naqueles casos em que a causa de pedir da acção civil e da acção penal são diferentes – é o caso do Ac. RE de 24-10-1995: A intenta uma acção cível contra B cuja causa de pedir é o incumprimento de um contrato de compra e venda, pedindo o pagamento de parte do preço em dívida. Depois quer apresentar queixa-crime por emissão de cheque sem provisão porque o cheque que B lhe dera para pagamento dessa parte do preço não tinha provisão. Aqui pode, porque são diferentes as causas de pedir, e assim o recurso prévio à via cível não equivale a renúncia ao direito de queixa.
Cfr. AUJ 5/00, de 19.01.00, in DR 1-A, nº52, de 02.03.2000, onde se diz que a dedução, perante a jurisdição civil, do pedido de indemnização, fundado nos mesmos factos que constituem objecto da acusação, não determina a extinção do procedimento quando o referido pedido cível tiver sido apresentado depois de exercido o direito de queixa se o processo estiver sem andamento há mais de oito meses após a formulação da acusação.

A ideia geral a reter acerca das excepções ao princípio da adesão é a de que, tirando os dois primeiros casos da alínea b, o caso da alínea e e, ainda, o da alínea h (mas esta só no que se refere ao processo sumaríssimo), o pedido em separado constitui uma opção do lesado, incluindo no caso da alínea b, parte final. Neste último caso, de extinção do procedimento criminal antes do julgamento, o processo poderá, pois, prosseguir ao serviço, tão só, do pedido cível que já tenha sido deduzido, desde que já haja acusação, porque, se ela não existe, o pedido cível carece de qualquer referência.

Legitimidade para dedução do pedido de indemnização cível (legitimidade activa):
- O lesado – art.º 74.º, n.º 1, do CPP – a pessoa que sofreu danos, materiais ou morais, ocasionados pelo crime, ainda que não se tenha constituído ou não possa constituir-se assistente;
- O MP – art.º 76.º, n.º 3, do CPP – em representação do Estado e das pessoas ou interesses cuja representação lhe seja atribuída por lei;
- As Instituições de Segurança Social, nos termos e para os efeitos do art.º 2.º, n.º 2, do DL n.º 58/89, de 22 de Fevereiro.

Legitimidade passiva:
- Em regra, será deduzido contra o agente do crime;
- Pode ser deduzido, também, contra os responsáveis meramente civis, incluindo as seguradoras da responsabilidade civil.
Os responsáveis meramente civis podem intervir voluntariamente no processo (art.º 73.º, n.º 1), mas, a intervenção voluntária não habilita o interveniente (responsável meramente civil) a praticar actos que o arguido tiver perdido o direito de praticar (n.º 2).
Por esta via, pretendeu evitar-se que o arguido recupere direitos que deixara caducar.

Poderes processuais do lesado
Foram moldados pelos do assistente (art.º 74.º, n.º 2), no correspondentemente aplicável, restringindo-se à sustentação e prova do pedido que formulou.
O lesado que tenha manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização deve, em especial, ser notificado do arquivamento do inquérito (art.º 277.º, n.º 3);
e pode requerer, em relação ao arguido ou responsáveis meramente civis, a prestação de caução económica ou o arresto de bens (art.º 227.º, n.º 2, e 228.º).

Poderes processuais do demandado cível e dos intervenientes
Foram moldados pelos do arguido, no correspondentemente aplicável, e limitados à sustentação e à prova das questões civis debatidas no processo (art.º 74.º, n.º 3).
Existe independência entre a defesa criminal e a civil, e, por isso,
a confissão, de qualquer dos demandados ou intervenientes,
a desistência
ou a transacção acerca do pedido cível (quanto à desistência, rege, expressamente, o art.º 81.º, a)
não implicam com o normal desenvolvimento da acção penal;
a relação entre cada uma das defesas cíveis, de dependência ou independência, resultará do que, a tal respeito, regem as normas de processo civil.

Direito ao recurso
As partes civis têm legitimidade para recorrer das decisões que lhes são desfavoráveis (art.º 401.º, n.º 1, c, e 404.º).

Direito à informação
A fim de possibilitar o exercício do direito de indemnização e o cumprimento do ónus da adesão da acção cível ao processo penal, o art.º 75.º, n.º 1, carrega as autoridades judiciárias e os órgãos de polícia criminal, no seu âmbito de actuação e competência, com o dever de informar o lesado do direito de deduzir o pedido de indemnização e dos trâmites a observar, para o efeito.
Até ao encerramento do inquérito, o lesado deverá informar no processo a intenção de o fazer, e isso para que, na altura própria, possa ser notificado, nos termos do n.º 2, do art.º 77.º, para deduzir o pedido.
Se, apesar de avisado do seu direito, nos termos do n.º 1 do art.º 75.º, o lesado não informar, até ao termo do inquérito, do seu propósito de entrar com o pedido de indemnização, ou se pura e simplesmente, a autoridade judiciária omitiu o dever de o notificar, nos termos do citado art.º 77.º, n.º 2, ainda lhe restará uma possibilidade, deduzindo o pedido nos 20 dias posteriores à notificação ao arguido da acusação ou, não a havendo, do despacho de pronúncia (art.º 77.º, n.º 3).
Só que, nesta hipótese, terá de estar atento, porque nada obriga a autoridade judiciária a informá-lo da data daquela última notificação.
O incumprimento do dever de informação previsto no art.º 75.º, n.º 1, ou do dever de notificação previsto no art.º 77.º, n.º 2, constitui, assim, mera irregularidade, sem consequências.
Em todo o caso, nunca o lesado verá precludido o seu direito de acção, pois aquela violação dos deveres de informação, nos termos do artº75º, nº1, ou de notificação, nos termos do artº77º, nº2, constitui, precisamente, um dos casos que justificam a dedução em separado do pedido cível, como se viu atrás.

Representação judiciária do lesado e dos demandados (art.º 76.º)
O lesado pode fazer-se representar por advogado, sendo essa representação obrigatória nos mesmos casos em que o seria se o pedido fosse presente à jurisdição civil (n.º 1).
Já os demandados e os intervenientes devem fazer-se representar por advogado (n.º 2).

Prazo e modo de formulação do pedido – art.º 77.º
- Quando deduzido pelo MºPº, em representação do Estado ou das pessoas e interesses cuja representação lhe cabe, ou pelo assistente, o pedido deve ser formulado na acusação ou no prazo em que esta deve ser formulada (n.º 1).
Nesta segunda hipótese (dedução do pedido em separado da acusação), o requerimento do MºPº ou do assistente deve ser articulado.
- Quando deduzido pelo lesado que não seja assistente, o pedido é deduzido em requerimento articulado, nos seguintes prazos:
- 20 dias, a contar da notificação prevista no n.º 2;
- não tendo sido notificado, por qualquer motivo, 20 dias a contar da notificação ao arguido da acusação ou do despacho de pronúncia (n.º 3).

Nada obsta a que o pedido de quem se não constituiu assistente seja formulado mesmo na fase de inquérito, ficando, naturalmente, a sua viabilidade e o seu alcance sujeito à acusação ou à pronúncia que vierem a ser deduzidas.
Isto porque, como disse atrás, é sempre a acusação ou a pronúncia que fornecem o referencial do ilícito causador dos danos indemnizáveis.

Se o valor do pedido dispensar a constituição de advogado, pode o lesado, dentro dos prazos atrás referidos, deduzi-lo, por si, em requerimento simplificado e informal, que pode ser formulado oralmente, em auto, com indicação do prejuízo sofrido e das provas (n.º 4).

Como já ficou dito:
Para o processo sumário, rege o art.º 388.º (no início da audiência).

Em processo sumaríssimo, o pedido cível não é admitido (art.º 393.º).

Trâmites do pedido posteriores ao requerimento inicial do lesado – art.º 78.º a 83.º
A contestação deve ser, tal como o pedido, articulada e ser deduzida no prazo de 20 dias (art.º 78.º, n.ºs 1 e 2) posteriores à notificação para tal.
Os elementos a transmitir com a notificação devem ser os correspondentemente aplicáveis indicados no art.º 235.º, CPC, por aplicação subsidiária, nos termos do art.º 4.º.
Não há efeito cominatório para a falta de contestação, mesmo a dos responsáveis meramente civis (art.º 78.º, n.º 3).
Também não há lugar a reconvenção.

Provas (art.º 79.º)
As provas são oferecidas com os articulados, e podem ser de qualquer natureza, de entre as admissíveis.
Há limitação quanto ao número de testemunhas – máximo de 10 ou de 5, por cada requerente, demandado ou interveniente, consoante o valor do pedido exceda ou não a alçada do tribunal da relação, em matéria cível (art.º 79.º, n.ºs 1 e 2).

Saneamento
No despacho a que se reporta o art.º 311.º (em que faz o saneamento do processo, quando este lhe é remetido com a acusação ou com o despacho de pronúncia) o juiz pode rejeitar liminarmente o pedido, se ele for manifestamente improcedente ou ocorrerem excepções dilatórias insupríveis, que sejam de conhecimento oficioso.

Julgamento (art.º 80.º)
A comparência das partes civis no julgamento não é, em princípio, obrigatória; só o será se forem chamados a prestar declarações a que não puderem recusar-se (art.º 80.º).
As partes civis não podem depor como testemunhas (art.º 133.º, n.º 1, c), mas podem prestar declarações (art.º 145.º e 347.º).
No mais, a intervenção das partes civis em julgamento tem o seu assento próprio nas normas que disciplinam esta fase do processo.

Renúncia, desistência e conversão do pedido
Em harmonia com a natureza civil do direito de indemnização, o lesado pode, em qualquer altura do processo,
renunciar ao direito de indemnização,
desistir do pedido formulado
e, até, converter o pedido em diferente atribuição patrimonial, desde que prevista na lei, como são os casos contemplados no art.º 130.º, n.ºs 2 e 3, CP (objectos declarados perdidos para o Estado, o produto da sua venda, o preço ou o valor correspondentes a vantagens provenientes do crime, o montante da multa).
Nos casos de adesão facultativa, nada impede, também, a simples desistência da instância, com efeitos meramente processuais.

Liquidação em execução de sentença e reenvio para os tribunais civis (art.º 82.º)
Liquidação em execução de sentença
Como no processo civil, pode o tribunal, se não dispuser de elementos bastantes, condenar no que se liquidar em execução de sentença, correndo, então, a execução perante a jurisdição civil, isto sem prejuízo de, oficiosamente ou a requerimento, condenar, desde logo, se, para tal, tiver elementos, numa indemnização provisória por conta da indemnização a fixar depois.

Reenvio para os tribunais civis
Oficiosamente, ou a requerimento, pode o tribunal remeter as partes para os meios cíveis, se
as questões suscitadas inviabilizarem uma decisão rigorosa
ou forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente a questão penal.
É que, por vezes, ou a estrutura do processo penal não se adequa a certas questões de complexidade marcadamente civilística ou as incidências do pedido cível podem retardar para além do admissível a conclusão da acção penal.
É para isso que, fazendo apelo ao bom senso do juiz, o legislador lhe atribuiu o poder oficioso previsto no n.º 3 do art.º 82.º.

Exequibilidade provisória
Pode o juiz, também, a requerimento do lesado, e independentemente do trânsito em julgado, declarar a condenação em indemnização civil, no todo ou em parte, provisoriamente executiva, nomeadamente, sob a forma de pensão – art.º 83.º.

Julgamento penal absolutório
Ainda que absolutória no aspecto penal, a sentença deverá condenar em indemnização civil, se o pedido respectivo se revelar fundado e o tribunal não tiver usado da faculdade de remeter as partes para os tribunais civis (art.º 377.º).
O AUJ 7/99, de 17.06.99, in DR 1-A, nº179, de 03.08.99, fixou a seguinte jurisprudência: Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no art.º 377.º, n.º1, CPP, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade contratual.
Há, na realidade, uma autonomia entre a responsabilidade civil e a responsabilidade penal, no entanto, aquele artigo pressupõe que a indemnização se funde nos mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal.
A condenação civil deve ter, pois, como fundamento o mesmo facto voluntário que integra o objecto da acusação ou pronúncia, embora despojado dos elementos que o qualificavam como crime mas não dos que lhe dão relevo como fonte de responsabilidade civil extracontratual.

Casos especiais de reparação civil
Em caso de condenação penal do arguido, pode o tribunal, também de ofício, mas respeitando o princípio do contraditório, arbitrar indemnização ao lesado que não tenha deduzido pedido cível, nem o tenha formulado em separado, quando particulares exigências de protecção da vítima o justifiquem (art.º 82.º-A).
Esta é uma válvula de escape do sistema de adesão, sistema este que é fundamentalmente centrado no princípio civilístico do dispositivo.
Tem em vista atalhar às situações particulares de vítimas carenciadas de protecção.
A avaliação dessas situações fica entregue ao bom senso do juiz.
A quantia é arbitrada “a título de reparação dos prejuízos sofridos”, mas não tem a pretensão de ser uma indemnização.
Dadas as circunstâncias em que é arbitrada e às finalidades que serve, o seu valor tenderá a ser inferior ao da verdadeira indemnização, mas será descontado em caso de futura acção indemnizatória.
Não obstante a aparente intenção limitativa da sua letra, deve entender-se que a norma abrange não só a pessoa directamente lesada pelo crime, mas, também, todo o lesado que, nos termos da lei, tenha direito de indemnização.

Caso julgado – art.º 84.º
Na decorrência lógica do carácter civilístico da indemnização, o art.º 84.º confere à decisão penal que julgar o pedido cível a eficácia de caso julgado que o código de processo civil atribui às sentenças cíveis.

IV – Acabamos de ver o processamento do pedido de indemnização civil deduzido contra pessoas com responsabilidade civil.
Porém, o artigo 130.º do CP prevê a criação de um seguro social destinado a assegurar a indemnização do lesado quando a mesma não possa ser satisfeita pelo arguido.
O Decreto-Lei n.º 423/91, de 30 de Outubro, que veio a ser alterado pela Lei n.º 31/2006, de 21 de Julho, deu um primeiro passo no sentido de concretizar esse objectivo tendo em vista (em consonância com instrumentos internacionais, nomeadamente do Conselho da Europa) indemnizar as vítimas de criminalidade violenta.
Nesta indemnização não está em causa a efectivação por parte do Estado de uma sua responsabilidade pelo facto ilícito gerador de indemnização civil fundada na prática de um crime, mas sim de uma indemnização baseada na ideia de solidariedade social.
A atribuição desta indemnização é feita por via administrativa, sendo da competência do Ministro da Justiça, assistido por uma comissão, à qual compete a instrução e cuja composição consta do artigo 6.º, n.º 2, do referido DL.
O DReg. n.º 4/93, de 22 de Fevereiro, veio regulamentar o DL n.º 423/91.
Este diploma é muito específico: apenas se aplica quando estejam em causa vítimas de certos crimes e determinado tipo de danos, e mediante a verificação de certos requisitos. Assim:
Nos termos do n.º 1 do artigo 1.º do DL 423/91, apenas podem requerer a indemnização as vítimas de crimes que envolvam a prática de actos intencionais de violência de que decorram lesões graves.

Danos indemnizáveis:
A indemnização é restrita ao dano patrimonial resultante da lesão, fixada equitativamente com os limites máximos constantes do artigo 2.º.

Montante da Indemnização
No montante da indemnização serão tomadas em consideração todas as importâncias recebidas de outra fonte, nomeadamente do agente do facto ou da segurança social.
Em relação às importâncias recebidas a título de seguro de vida ou de acidentes pessoais, estas só serão levadas em conta na medida em que a equidade o exija.

Requisitos (artigo 1.º, n.º 1):
- da lesão ter resultado uma incapacidade permanente, uma incapacidade temporária e absoluta para o trabalho de pelo menos 30 dias ou a morte;
- ter o prejuízo causado uma perturbação considerável do nível de vida da vítima ou, no caso de morte, do requerente;
- não ter a vítima obtido a efectiva reparação do dano em execução de sentença condenatória relativa a pedido cível deduzido nos termos do artigo 71.º e s do CPP, ou
Ser razoavelmente de prever que o demando e responsável civil não reparará o dano não sendo possível obter a reparação por outra via.

Legitimidade para o pedido:
- a vítima;
- em caso de morte desta, as pessoas que nos termos do artigo 2009.º do CC têm direito a alimentos, e as que, nos termos da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, vivessem com ela em união de facto;
- as pessoas que auxiliaram voluntariamente a vítima ou as autoridades na prevenção da infracção, perseguição ou detenção do agente (artigo 1.º, n.º 3);
- o Ministério Público – artigo 5.º, n.º 1.

Prazo para o pedido:
Artigo 4.º − o pedido de concessão da indemnização deve ser apresentado no prazo de um ano a contar da data do facto (se a vítima for menor pode apresentar o pedido até um ano depois de atingir a maioridade ou a emancipação)
Se tiver sido instaurado processo criminal estes prazos podem ser prorrogados e expiram após uma ano sobre a decisão que põe termo àquele processo.
O Ministro da Justiça pode relevar o requerente do efeito da caducidade se justificadas circunstâncias morais ou materiais tiverem impedido a apresentação atempada do pedido.

O direito a indemnização mantém-se, ainda que não seja conhecido o autor dos actos intencionais de violência ou por outra razão aquele não possa ser condenado ou acusado.

Competência para a decisão do pedido:
Ministro da Justiça – artigo 6.º, n.º 1.

Procedimento:
- o pedido é dirigido ao Ministro da Justiça e entregue na Comissão para a Instrução de pedidos de indemnização às vítimas de crimes violentos – artigo 6.º, n.º 1, e 3.º do Dec. Reg. 4/93, de 22 de Fevereiro:
- a Comissão procede à instrução do processo em 3 meses – artigo 8.º, n.º 1;
- após instrução o processo é remetido ao Ministro com parecer sobre a concessão da indemnização – artigo 8.º, n.º 2.

Notas finais:
O DL 423/91 não é aplicável quando o dano for causado por um veículo terrestre a motor, bem como se forem aplicáveis as regras sobre acidentes de trabalho ou em serviço – artigo 1.º, n.º 5.

A indemnização pode ser reduzida ou excluída tendo em conta a conduta da vítima ou do requerente antes, durante, ou após a prática dos factos, a sua relação com o autor do ilícito criminal, ou se a atribuição daquela indemnização se mostrar contrária ao sentimento de justiça ou à ordem pública - artigo 3.º.

Em caso de urgência, pode ser requerida a concessão de uma provisão por conta da indemnização a fixar posteriormente. A provisão não pode ser superior a um quarto do limite máximo da indemnização.

Se a vítima obtiver a qualquer título reparação ou indemnização efectiva do dano sofrido, posteriormente ao pagamento da provisão ou da indemnização, deve o Ministro da Justiça, mediante parecer da comissão, exigir o reembolso, total ou parcial, das importâncias pagas – artigo 10.º, n.º 1.
O mesmo vale para aquelas situações em que foi entregue a provisão e a indemnização não veio a ser concedida por falta dos requisitos do artigo 1.º.

sexta-feira, agosto 21, 2009

Proibições de Prova

(texto de Sandra Duarte Lobo)

Quando se fala num tema tão vasto e tão complexo quanto as proibições de prova é inevitável chamar à colação o Prof. Costa Andrade e a sua obra “Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal”, onde o referido autor escreve que, “Em nome de uma «exigência de superioridade ética» do Estado, das suas «mãos limpas» na veste de promotor da justiça penal, a violação da proibição de provas– que significaria o «encurtamento da diferença ética que deve existir entre a perseguição do crime e o próprio crime» – é hoje uma questão de actual e premente abordagem, uma vez que, sob a égide de uma justiça penal eficaz, se vem mobilizando a doutrina e a jurisprudência para um «clima de moral panic», um «estado de necessidade de investigação”.
As proibições de prova são, assim, autênticos limites à descoberta da verdade material, sendo certo que a gravidade do crime a perseguir não será, por si só e enquanto tal, razão bastante para legitimar a danosidade social da violação das proibições de prova.

Nos termos do artº 126º, nº 1 do CPP, que repete o artº32º - 8, CRP, são inadmissíveis e, por isso, nulas as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
A proibição correspondente a estes métodos constitui, não só uma proibição de produção como, também, uma proibição de valoração.
São sujeitos passivos dos métodos proibidos de prova, não só o arguido e as testemunhas, mas também o assistente, partes civis, o perito ou o intérprete.
Os sujeitos activos não são apenas os agentes do Estado, mas também qualquer particular.

O nº2, do artº126º esclarece o que se deve entender por métodos de prova ofensivos da integridade física ou moral das pessoas, que a lei proíbe, ainda que consentidos pelo visado.
Fá-lo de uma forma não taxativa, pois, em tal categoria, de acordo com o programa constitucional, em que avulta o respeito pela dignidade da pessoa (art.1º, CRP), devem ser incluídos todos os métodos que interferem com a liberdade da declaração ou depoimento, por efeito de perturbação da liberdade de vontade ou de decisão ou da capacidade de memória ou de avaliação, e que, por isso mesmo, nem com consentimento do sujeito se salvam da proscrição absoluta enquanto meios de prova.
A nova redacção do nº3, do art.126º do CPP, resultante da reforma processual de 2007, destinou-se a tornar claro que as proibições de prova relativas às intromissões não consentidas na vida privada, domicílio, correspondência ou telecomunicações, têm a mesma força e efeito que as previstas nos nº1 e 2, do mesmo artigo; a ausência, no antigo nº3, do segmento “não podendo ser utilizadas”, que sempre constou do nº1, e que a reforma acrescentou ao dito nº3, tornou claro e definitivo o que, para mim, já se encontrava no espírito da lei.

Passemos então a análise de alguns casos concretos sobre a presente temática.

Assim, quanto à prova obtida mediante tortura indica-se, a título de exemplo, alguns casos julgados no TEDH, que considerou nulas:
-as provas obtidas mediante a agressão sexual da detida (Aydin vs Turquia)
-mediante pancadas nas plantas dos pés (salman vs Turquia)
-insultos e privação do sono por vários dias (bati e outros vs Turquia)
-mediante a detenção em local que não respeita a higiene básica, sem assistência médica do detido doente ou a prática de alimentação forçada (nevmerzhitz vs Ucrânia)

Por outro lado, são exemplos de prova obtida mediante ofensa à integridade física e mental:
- a administração de narcóticos e desinibidores, como o álcool;
- o recurso à hipnose;
-o uso do polígrafo;
- as técnicas de manutenção de stress no detido, tais como a manutenção de pé durante horas, o encapuçamento e a privação de alimentação ou de bebida (Irlanda vs Reino Unido).

O recurso a meios enganosos, inclui a mentira ardilosa sobre elementos do processo relevantes para a situação processual do arguido, como por ex, a mentira sobre a existência de uma confissão de um co-arguido ou de um depoimento comprometedor de uma testemunha.

A prova obtida mediante ameaça de desvantagem legalmente inadmissível ou, em sentido positivo, a promessa de vantagem legalmente inadmissível, inclui, por ex., a obtida mediante promessa relativa à qualificação jurídica do crime ou à determinação da medida concreta da pena e, designadamente, a promessa feita pelo tribunal de uma determinada pena concreta se o arguido confessar ou desistir de um determinado requerimento de prova. Mas não inclui a prova obtida mediante a ameaça das consequências legais da acção do interveniente processual, nem a prova obtida mediante a ameaça do exercício pela autoridade de poderes processuais, por ex, o confronto do arguido com as testemunhas.

Nos casos previstos no artigo 126º nº 3 do CPP, contrariamente aos previstos no nº 2, se o consentimento do titular dos direitos afectados for válido, jamais se poderá falar nulidade de prova, designadamente, por intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas comunicações.
É o que acontece, nos casos das mensagens voluntariamente gravadas num voice mail alheio (cfr. Ac RP de 17/12/1997, Ac RE de 4/12/2001 e de 05/02/2003). Nesses casos, como referiu Costa Andrade, a fls. 251 da obra já citada, a gravação consentida (ou a sua utilização) configura uma forma paradigmática de exclusão do ilícito típico, não por força de qualquer justificação de lesão do bem jurídico, mas pela exclusão da tipicidade, por ausência de lesão do bem jurídico.

Porém, o consentimento, para além de abranger as situações em que o direito lesado é livremente disponível, pressupõe a efectiva intervenção do respectivo titular e não da pessoa que tiver disponibilidade sobre ele - nesse sentido, o AC T. Constitucional nº 507/94 (de 14 de Julho de 1994) julgou inconstitucional a interpretação segundo a qual a busca domiciliária em casa habitada e as subsequentes apreensões efectuadas durante aquela diligência podem ser realizadas por órgão de polícia criminal, desde que se verifique o consentimento de quem, não sendo visado por tais diligências, tiver a disponibilidade do lugar de habitação em que a busca seja efectuada.

Na parte inicial do nº 3 do artigo 126º faz-se uma ressalva para os casos previstos na lei.
Assim, não são meios proibidos de prova as buscas domiciliárias, as apreensões de correspondência, as escutas telefónicas, o registo de voz e imagem, o tratamento de dados pessoais para fins de investigação policial, a quebra do dever de segredo profissional, desde que respeitados os pressupostos muito rigoroso da lei processual penal, de cariz materialmente constitucional, que, salvo raras excepções, estão sujeitos, desde logo sujeitos a reserva de juiz.

Questões novas que estão a ser debatidas na jurisprudência:
-ARE de 07/10/2008, processo 2005/08-1
Não carece de prévia autorização judicial o uso pelos órgãos de polícia criminal de localizadores de GPS colocados em veículos utilizados por pessoas investigadas em inquérito (e pelo tempo tido por necessário pelo órgão de polícia criminal encarregue do mesmo).

-ARL de 15/07/2008- SMS
A mensagem recebida em telemóvel, atenta a natureza e finalidade do aparelho, é de presumir que uma vez recebida foi lida pelo seu destinatário.
Deste modo, na sua essência, a mensagem mantida em suporte digital depois de recebida e lida terá a mesma protecção da carta em papel que tenha sido recebida pelo correio e que foi aberta e guardada em arquivo pessoal.
Tratando-se de meros documentos escritos, estas mensagens não gozam de aplicação do regime de protecção da reserva da correspondência e das comunicações (cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 29-03-2006, relatado pelo Exm.º Desembargador Ribeiro Martins, in www.dgsi.pt,)pelo que a leitura de tais sms não carece de ser ordenada ou autorizada pelo JIC, não sendo de aplicar o regime das escutas.
- Em sentido CONTRÁRIO, AC STJ de 20/09/2006- constitui nulidade relativa a ausência de autorização judicial, para a leitura do SMs, quer tenham sido ou não lidos pelo respectivo destinatário.

Outros meios proibidos de prova que estão dispersos pelo CPP:
- casos de omissão ou de violação do dever de informação ou advertência do suspeito ou arguido: 58/5 (formalidades da constituição como arguido), 141/4/a), 343/1 (informação sobre os direitos do arguido, designadamente o direito ao silencio)
- 134 (ausência de informação sobre a possibilidade de recusa de depoimento), 147/7 (violação das formalidades do reconhecimento de pessoas)
- proibição de prova relacionada com o principio da imediação. 129/1 (depoimento indirecto), 130 (vozes públicas e convicções pessoais), 355 (leitura de declarações prévias ao julgamento).

Conclusão
Não há dúvida que o princípio da investigação ou da verdade material, sem prejuízo da estrutura acusatória do processo penal, tem valor constitucional
Porém, só a verdade material, obtida de forma processualmente válida, interessa ao Estado de Direito.

Perda de bens ou perda de a favor do Estado de vantagens criminosas

(texto de Ana Luísa Santos Coelho)

A lei 5/2002 introduziu um conjunto de medidas especiais de combate à criminalidade organizada e económico-financeira. Uma dessas medidas é precisamente a criação de um mecanismo repressivo designado de perda de bens a favor do Estado – art. 7º a 12º.

Desde logo pode-se questionar se a expressão escolhida pelo legislador se revela adequada, uma vez que em rigor não se trata de nenhuma perda de bens. A expressão “perda de bens”, utilizada no domínio da Lei 5/2002, nada tem a ver com a perda de bens que se prevê no Código Penal. De facto, na legislação penal existe uma ligação directa entre a figura da apreensão – enquanto medida processual – e a declaração de perda. Ali os bens apreendidos são meios de prova do facto cometido e devem ser declarados perdidos em directa ligação ao facto ilícito praticado. Já no caso da Lei 5/2002, não há qualquer ligação com o crime cometido. Do que verdadeiramente se trata é de determinar o montante apurado que deve ser declarado perdido a favor do Estado. Trata-se, sim, de uma declaração de perda pelo valor. Dito de outro modo, a verdadeira sanção é uma sanção pecuniária avaliada em função do património do condenado, pelo que o mais correcto será concluir que a expressão “perda de bens” denomina sim a execução da referida sanção.

Assim, ultrapassada a questão terminológica passemos então ao enquadramento jurídico e aos fundamentos que estiveram na origem da criação desta medida especial. O legislador, considerando que nem sempre se afigura fácil a prova de que, os bens patrimoniais dos arguidos em certos crimes organizados ou económico-financeiros, são vantagens provenientes da actividade ilícita e, portanto, sujeitos a perda a favor do Estado, nos termos dos artigos 109º a 111º do CP, veio estabelecer algumas regras que impedem os agentes criminosos de se refugiarem, quanto a esse aspecto, numa mera aparência de legalidade, ou de pretenderem prevalecer-se da dúvida, consagrando no art. 7º uma presunção sobre a origem das vantagens obtidas pelo agente.
Este mecanismo corresponde, pois, a uma nova forma sancionatória que visa garantir a eficaz repressão dos lucros que podem ser obtidos com certo tipo de criminalidade. Traduz-se num verdadeiro confisco, numa sanção puramente objectiva, cuja determinação é baseada unicamente num cálculo patrimonial, matemático, não relevando a gravidade do ilícito, nem a gravidade da pena ou sequer o grau de participação do condenado (dai, segundo o Prof. Damião da Cunha entender que se trata de uma sanção sem qualquer elemento de pessoalidade).

Poderá dizer-se a este respeito que a determinação da medida sancionatória conflitua com o princípio da proporcionalidade, quando confrontado com o disposto no nº 4, do art. 112º do CP, que estabelece uma regra de equidade se a perda pelo valor se mostrar injusta ou demasiado severa face à situação económico-financeira do arguido. No entanto, como contra argumento, sempre se poderá afirmar que estamos no âmbito de uma criminalidade organizada, o que pressupõe parâmetros substancialmente mais exigentes.
Este novo mecanismo assume assim:
i) Relevo substantivo – pretende reprimir vantagens presumidas de uma actividade criminosa baseada num juízo de congruência entre o património do arguido e o rendimento lícito do mesmo,
ii) Relevo processual – funcionando como uma verdadeira regra de inversão do ónus da prova – art. 9º - cabendo ao arguido a prova da licitude dos seus rendimentos.
O legislador introduz, assim, uma presunção juris tantum: se alguém se dedica a certa actividade ilícita que propicia, como regra, rendimentos avultados, nem sempre fáceis de quantificar, é de presumir que esses benefícios patrimoniais são de proveniência ilegítima.
Assim, a sanção criada pela Lei 5/2002 é aplicada quando, sendo um agente condenado por um crime de catálogo, se possa inferir que esse crime se insere numa actividade criminosa e que, com probabilidade, o seu património terá como fonte essa actividade.
Nos termos do seu art. 7.º, “em caso de condenação pela prática de crime referido no art. 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.”

Questão que se coloca, desde logo, é se, com a criação deste mecanismo, se viola ou não o direito de propriedade, constitucionalmente assegurado no artigo 62º CRP. Refiram-se, a este propósito, os Acórdãos do STJ de 12/11/2008 – Procº08P3180 –Relator: Santos Monteiro e do TC nº 294/2008 – Relator: Carlos Cadilhe, disponíveis em www.dgsi.pt, os quais se pronunciaram no sentido da não violação de qualquer direito fundamental, nomeadamente o direito de propriedade. No entendimento dos acórdãos, tal presunção legal de ilicitude na proveniência nada tem de inaceitavelmente agressivo aos direitos fundamentais do cidadão, na medida em que:
1º Em primeiro lugar, opera apenas no âmbito de crimes de catálogo (os mencionados no seu art. 1.º);
2º Depois, porque a presunção - base do confisco - supõe a prévia condenação por um daqueles crimes;
3º Por outro lado, ela é direccionável, apenas, ao seu produto, às vantagens dele derivadas, assente num propósito de prevenção da criminalidade em globo, ligado ao velho aforismo de que o crime não compensa, de reafirmar tanto sobre o agente do facto típico (prevenção especial individual) como sobre a sociedade em geral, com reflexo ao nível do reforço da vigência da norma (prevenção geral positiva ou de integração);
4º Por fim, e não menos essencial, o arguido pode arredar a presunção, demonstrando, no exercício do seu pleno direito de contraditório, a proveniência lícita dos bens ou vantagens supostamente liquidados pelo MP com o rótulo de ilícitos.
O direito de propriedade, não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro de determinados limites e com as restrições definidas noutros lugares do texto constitucional ou na lei.
Acrescentam, ainda, que esta limitação ao direito de propriedade, em nada viola o princípio da presunção de inocência, uma vez que não representa qualquer antecipação da pena e visa, apenas, alcançar outras finalidades relacionadas com a boa administração da justiça, recaindo sobre a acusação o ónus de provar em julgamento os elementos típicos dos crimes que vierem a ser imputados aos arguidos. Concluem, portanto, no sentido de que a previsão de um mecanismo especial de perda de bens a favor do Estado por força da Lei 5/2002, tomando por base a presunção de obtenção de vantagens patrimoniais ilícitas através da actividade criminosa, estando em causa graves crimes, como é o caso p.ex. do tráfico de estupefacientes, é perfeitamente conforme à CRP.
Em favor da legalidade da presunção estabelecida, invocam, ainda, um outro argumento: o facto de a Lei 19/2008 de 21 de Abril (que veio alterar a Lei 5/2002 reajustando os crimes de catálogo) ter deixado intocada a presunção.
O estabelecimento de uma presunção é uma indicação clara de que a Lei 5/2002 introduziu no processo penal um procedimento que se afasta dos seus cânones.
1º O julgador deve verificar se estão reunidos os pressupostos que configuram a base factual daquela presunção e,
2º Depois, constatar se o arguido deduz contraprova quanto à presunção da proveniência ilícita do produto do crime.
Prioritariamente, o julgador deve socorrer-se da prova produzida em tribunal e, depois, fazer funcionar a presunção, fixando o facto legalmente presumido, na esteira de que quem usufrui de uma presunção está dispensado de provar os factos a que ela conduz, nos termos do art. 344.º, n.º 1, do CC. No entanto, a presunção estende-se, apenas, à ilicitude da proveniência de bens.

O Prof. Damião da Cunha lança algumas críticas a este novo mecanismo sancionatório:

1º Desde logo, afirma que em lado nenhum se diz na lei que, pelo facto de o agente ter sido condenado por um crime, se deva presumir que existe uma anterior actividade criminosa;
2º Depois, ao não prever expressamente qualquer dever por parte do MP de demonstrar a existência de uma anterior actividade criminosa, põe sobre o condenado um ónus excessivo;
3º E quando exige a prova da licitude dos rendimentos ou bens, tem ainda como consequência que o património a ser retirado possa nada ter a ver com os crimes do catálogo.
Assim, para o Prof. Damião da Cunha, para que se possa verificar a presunção estabelecida no artigo 7º, é necessário que:
1º O agente seja condenado por um dos crimes de catálogo e que se caracteriza pela susceptibilidade de gerar grandes proveitos;
2º Se comprove uma actividade criminosa.
Esta medida sancionatória tem uma dupla finalidade, já que assenta num duplo juízo de probabilidade: prognose para o futuro e para o passado, ou seja:
1º Foi criada para, retrospectivamente, combater lucros (presuntivamente) ilícitos;
2º E prospectivamente, para destruir a base económica de actividades ilícitas que podem servir de base à continuação da actividade criminosa.
No entendimento do Prof. Damião da Cunha trata-se de uma medida de carácter não penal, uma vez que nada tem a ver com um crime, sendo mais uma medida de carácter análogo a uma medida de segurança.
Outro problema interpretativo que se poderá colocar prende-se com o próprio âmbito da presunção estabelecida no artigo 7º. Saber se, de acordo com a letra da lei, a mesma se refere única e exclusivamente ao chamado “património não congruente”, isto é, à diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito, ou se verdadeiramente o que se presume é que, no caso de condenação por um dos crimes previstos, todo o património tem fonte ilícita. Para o Prof. Damião da Cunha, quando o art. 9º estabelece que a presunção é ilidada se se provar que os bens resultaram de actividade lícita ou foram obtidos há, pelo menos, cinco anos antes da constituição de arguido, parte de uma presunção de que a fonte do património é sempre ilícita, concluindo então que é esta verdadeiramente a presunção estabelecida no art. 7º.

Importa, ainda, referir que o conceito de património associado à sanção estabelecida é demasiadamente vasto, já que do nº2 do art.7º resulta que o ponto de partida da sanção é precisamente constituído por todos os bens ai referidos, dependendo, depois, do arguido “salvar” no todo ou em parte o património, se fizer prova da licitude da sua origem. É o MP que na acusação ou até 30 dias antes do julgamento liquida o montante que deve ser perdido a favor do Estado. A liquidação que é efectuada constitui sempre o limite máximo do valor apurado como a declarar perdido.

Também relativamente a este aspecto, o Prof. Damião da Cunha levanta algumas reservas já que para que o acto de liquidação tivesse características de objectividade seria necessário que o MP desenvolvesse uma qualquer investigação em ordem a apurar a incongruência dos rendimentos. No entanto, não sendo esta a finalidade do inquérito, não se poder esperar que o MP averigúe desta sanção.
Uma última palavra para referir que o art. 10º da Lei 5/2002 prevê, ainda, a possibilidade de ser decretado pelo juiz o arresto preventivo dos bens, a requerimento do MP e independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime, sendo-lhe aplicável o regime do arresto preventivo previsto no CPP. O arresto, assume, assim a forma de incidente processual.

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Escutas telefónicas e reconhecimento de pessoas

Escutas telefónicas e reconhecimento de pessoas

(texto elaborado para a intervenção na sessão sobre Questões de Prova, no Forum sobre a Reforma do Código de Processo Penal, do CEJ, a 16 de Janeiro de 2009)

NATÁLIA LIMA

(PROCURADORA-GERAL ADJUNTA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA)




A presente comunicação teve por base um conjunto de questões formuladas pelos colegas junto dos tribunais de 1ª instância, por iniciativa do CEJ, e que abrangem a temática das escutas telefónicas face ao figurino introduzido pela reforma do CPP.
O meu contributo prende-se, essencialmente, com a experiência profissional no âmbito dos recursos que têm surgido no TRL.

A 1ª questão que gostaria de salientar prende-se com os pressupostos legais de Admissibilidade das escutas telefónicas para a descoberta da verdade, relativamente aos quais acrescidas exigências de fundamentação se impõem, quer por parte do MºPº, que tem que formular o requerimento, quer por parte do JIC, relativamente ao despacho que autoriza a intercepção e gravação das escutas telefónicas.
Do pressuposto de admissibilidade, vigente no CPP/98, de que a diligência – de intercepção e gravação de escutas – “se revelasse de grande interesse para a descoberta da verdade”, exige-se agora, perante a reforma, que “ a diligência seja indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter”.

Haverá, pois, que evidenciar no despacho que admite a intercepção da escuta, a fundamentação cuidada dos princípios de subsidiariedade e proporcionalidade que regem a necessidade da escuta telefónica.
Ou seja, só será admissível o recurso às escutas nos casos em que a descoberta dos factos ou o lugar onde o arguido se encontra seria, de outra forma, impossível ou de muito difícil concretização. Princípio de que deriva uma dupla exigência: - não será legítimo o recurso às escutas nos casos em que os resultados probatórios desejados sejam, sem dificuldade, alcançados por meio menos invasivo dos direitos fundamentais; - é ainda necessário que a escuta telefónica se apresente como um meio adequado a conseguir aquele resultado.

Pretendeu, pois, a actual reforma instituir, melhor dizendo, disciplinar, que, como regra, a escuta telefónica não seja determinada como primeiro meio de obtenção de prova, logo na abertura do inquérito, nem com base em mera denúncia anónima, mesmo que desta se possam retirar ” indícios da prática de crime”.
[ A determinação da escuta telefónica, tanto num caso como no outro, só não constituirá , assim, uma interferência desproporcional e desnecessária em casos excepcionais de investigação , ou seja, nas situações em que a escuta constitua o único meio de prova, ou de obtenção de prova, de um crime que já se indicia nos autos.]

2ª Questão suscitada:
Delimitação do campo subjectivo do universo dos “escutados”
Com a reforma de 2007, estabelece-se que “As escutas só podem ser efectuadas contra:
- suspeito ou arguidos
- pessoas que sirvam de intermediário
- vítimas
A questão foi suscitada do seguinte modo : “Quais as pessoas alvo das intercepções telefónicas, no segmento “pessoa que sirva de intermediário”- ter-se-á aqui em conta apenas os indícios? Podem escutar-se todos? Mesmo aqueles que , por força da lei – art. 134º do CPP , se podem recusar a depor?

Duas questões:
- noção/conceito de” pessoa que sirva de intermediário”
- faculdade legal de familiares do arguido se recusarem a depor como testemunhas.
Relativamente à última questão – saber se podem escutar (interceptar e gravar conversações) daqueles que se podem recusar a depor como testemunhas, eu diria que sim. Que se podem escutar tais conversações .

A recusa em depor como testemunha é uma faculdade legal, uma possibilidade, a qual pode, ou não, vir a ser utilizada pelos visados (familiares do arguido).
A lei não impõe um dever, mas apenas concede um direito - uma faculdade_ que cede diante do interesse público da investigação criminal (nesse sentido, Prof Costa Andrade).
No mesmo sentido se pronunciou o Sr. Dr. Rui Pereira, coordenador da “Unidade de Missão”- actas- que entendeu que a lógica da recusa e da escusa de depoimento se não estende automaticamente às intercepções telefónicas.

Relativamente ao conceito de “pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido”.
Tenho conhecimento do
Acórdão do TRL de 06.12.2007 -9ª secção, no qual se contempla uma noção ampla de “ intermediário”
Deverá considerar-se que, intermediário , será todo aquele que, pela sua proximidade com o arguido ou suspeito, seja-o por razões de ordem familiar, de amizade, ou por quaisquer outras que levem ao contacto entre ambos, ainda que ocasional ou forçado, se prefigure como potencial interlocutor ,e sobre o qual recaiam suspeitas fundadas de, nos referidos contactos, serem discutidos assuntos que, directa ou indirectamente, se prendam com o crime em investigação,( sendo sempre certo que aquilo que não vier a ser utilizado como meio de prova será posteriormente destruído).
2. A mediação aqui prevista não pressupõe que o referido interlocutor, que não poderá ser, igualmente, um agente do crime, tenha um papel activo na recepção ou transmissão da mensagem. A sua acção pode ser puramente passiva, pois que não é o seu comportamento que aqui se visa, mas, tão só, o de alguém que, sendo suspeito ou arguido da prática de um crime, com aquele se possa relacionar, e com fortes probabilidades de, nos respectivos contactos, falarem do mesmo crime. (Relator : ALMEIDA CABRAL)

Questão distinta se coloca, porém, quanto ao regime dos apelidados “ conhecimentos fortuitos”
O que está em causa é a regulamentação do aproveitamento extraprocessual dos conhecimentos Fortuitos obtidos através das escutas telefónicas
A questão do valor destes conhecimentos fortuitos apenas se coloca quando eles constituem meio de prova de um outro crime diverso daquele que se investiga – regime previsto nos nsº 7 e 8 do art. 187º do CPP.
A regra orientadora será a de que só poderá ser aproveitado para outro processo, já instaurado ou a instaurar, o conhecimento fortuito obtido através de uma escuta telefónica que se destine a fazer prova de um crime catálogo legal e em relação a pessoa que possa ser incluída no catálogo legal de alvo.

Já na vigência do CPP/98 a jurisprudência se pronunciava em tal sentido – acórdãos do STJ de 23.10.2002, de 4.05.2006; do TRL acórdãos 6.05.2003, 7.07.2004, tal como a doutrina - Costa Andrade, que considerava exigível um estado de necessidade investigatório e Germano Marques da Silva que considerava que a escuta telefónica tinha de mostrar-se indispensável à prova do crime noutro processo.

Haverá que ter particular cuidado, por exemplo, nos casos de crimes de associação criminosa, em que a reforma não admite a valoração dos conhecimentos fortuitos relativos a todos os crimes que integrem a finalidade da associação criminosa.- só poderá ser aproveitada para outro processo o conhecimento fortuito, através da escuta, que se destine a fazer prova de crime catálogo e em relação ao catálago fechado dos alvos das escutas.(art. 187º nº1 e nº2 e nº4)

Abordaremos, agora, a temática das “Formalidades das Operações” prevista no art. 188º do CPP
O regime do CPP/98 prescrevia que o OPC levava “imediatamente” ao conhecimento do JIC o auto de intercepção e gravação das conversações, com indicação das passagens consideradas relevantes para a prova, juntamente com as fitas gravadas.
Se o JIC considerasse os elementos recolhidos relevantes para a prova ordenava a sua transcrição e junção aos autos.

No actual modelo, o OPC lavra auto de intercepção e de gravação e elabora relatório indicando as passagens relevantes para a prova, descreve sucintamente o seu conteúdo e explica o seu alcance para a descoberta da verdade.
O OPC leva ao conhecimento do MºPº - de 15 em 15 dias- a partir do início da 1ª intercepção, os respectivos autos e relatórios, bem como os suportes técnicos.
O MºPº leva ao conhecimento do JIC tais elementos no prazo máximo de 48 horas.

Duas questões suscitadas:
- a natureza deste prazo processual;
- a nomeação de intérprete, quando necessário, também por parte do MºPº.

Relativamente à questão da natureza deste prazo “máximo” de 48 horas, tenho conhecimento de duas decisões no TRL, em sentido não coincidente:

-Acórdão de 30.01.2008- da 3ª Secção, no qual se decidiu “que tal prazo se conta a partir do momento em que os elementos trazidos pelo OPC são apresentados nos serviços do MºPº.
“A apresentação dos elementos em causa ao JIC, face à sua específica natureza com tutela constitucional, é um acto urgente, independentemente de o processo no âmbito do qual essa escuta é realizada poder não ter natureza urgente.
“ Resulta do regime legal sobre a contagem e prática dos actos processuais que mesmo os actos urgentes podem ser praticados no dia útil seguinte quando o respectivo prazo termine ao domingo - artºs 104º do CPP e 144º, nº 2 do CPC.
IV - Não tendo sido cumprido o referido prazo uma vez que a secretaria do MºPº só 2 dias depois da entrega daqueles elementos por parte do OPC os apresentou ao respectivo Magistrado, que por seu turno, os levou ao conhecimento do Juiz nas 24h subsequentes, ficam as intercepções correspondentes às transcrições em causa, feridas de nulidade, nos termos do artº 190º do C.P.P, não podendo as mesmas servir de prova” (proc 117/08 –www.pgdlisboa.pt).

Em igual sentido se pronunciou o acórdão do TR Évora de 13.05.2008 : ”O prazo em causa é fixado ao Agente do MºPº e não à simbiose do Agente do MºPº com os respectivos serviços do MºPº” ( relator Martinho Cardoso, proc. 403/08-1)

Pronunciou-se ainda o acórdão do TR Évora de 22.01.2008 (relator João Latas, proc. 3104/07-1 SIMP, descritor “188º CPP ) , no que concerne á contagem do termo do prazo:
Mesmo que se considere que a apresentação dos elementos em causa ao JIC constitui acto processual urgente, resulta do regime legal sobre contagem e prática dos actos processuais, que mesmo os actos urgentes podem ser praticados no dia útil seguinte quando o respectivo prazo termine ao domingo, em termos idênticos ao que sucede com prazo não urgente.( - artºs 104º do CPP e 144º, nº 2 do CPC).

Em sentido distinto, relativamente ao momento da contagem do prazo das 48h, pronunciou-se o acórdão do TRL de 29.05.2008, considerando que tal prazo só começa a correr a partir do momento em que os elementos trazidos pelo OPC chegam à posse efectiva do MºPº , ou seja, no momento em que é aberta conclusão ao MºPº (proc 3735/08-9S, relator Almeida Cabral, www.pgdlisboa.pt) — só tenho conhecimento deste acórdão, no sentido do prazo se contar desde o momento em que a conclusão é aberta ao MºPº, constituindo , até ao momento, jurisprudência isolada quanto ao caso.

Para acautelar a salvaguarda da jurisprudência maioritária quanto à questão, sugeriria que houvesse boa articulação entre o MºPº e o OPC por forma a evitar que minimizar os inconvenientes de as escutas sejam apresentadas após as 16h de uma sexta-feira, afigurando-se que o magistrado do MºPº poderá minimizar os inconvenientes de tal situação através de controle do prazo que estabelece ao OPC para apresentar as mesmas.

Questão da nomeação de intérprete por parte do MºPº
É facto que o art. 188º apenas prescreve que o JIC nomeie, se necessário, interprete para se inteirar do conteúdo das escutas.
Naturalmente que o mesmo problema se coloca aos Magistrados do MºPº quando têm de se inteirar do conteúdo das mesmas, para determinar a sua transcrição pelo OPC ou para requerer ao JIC as passagens que considerar relevantes para efeitos de aplicação de medida de coacção.
Novamente se impõe colaboração estreita entre o MºPº e os OPCs.
Ao que indaguei, no DIAP de Lisboa, a PJ e a PSP têm interprete nos respectivos serviços, os quais procedem à tradução das conversações interceptadas.
E a verdade é que , nos termos do nº1 do art. 188, o OPC tem de elaborar relatório no qual indica as passagens relevantes para a prova, descrever de modo sucinto o respectivo conteúdo e explicar o alcance para a descoberta da verdade.
Para que o OPC possa dar cumprimento ao preceito legal, tem de necessariamente ou, pelo menos desejavelmente, proceder antecipadamente à tradução das escutas.
Em casos limite, sempre o MºPº poderá socorrer-se da nomeação de interprete, nos termos previstos no art. 92º do CPP, prevendo-se em tal preceito que “o interprete seja nomeado por autoridade judiciária ou autoridade de polícia criminal.

Problemática da transcrição de escutas para efeitos de aplicação de medida de coacção( à excepção do TIR)
Trata-se de saber se durante o inquérito o JIC pode indeferir requerimento do MºPº para que se proceda a transcrição de escutas com vista à aplicação de futura medida de coacção, ou se o MºPº tem que indicar, em tal momento, uma concreta medida de coacção a aplicar.
Penso que a jurisprudência maioritária do TRL se tem pronunciado no sentido de não ter de ser cumulativo o requerimento de transcrição de escutas com a indicação de concreta medida de coação a aplicar.
Nesse sentido, Acórdão de 18.12.2007( proc. 8853/07 da 5ª Secção, relator Margarida Blasco), de 27.02.2008(relator Pedro Mourão) e de 4.06.2008 (relator Teresa Féria), estes da 3ª S Criminal( disponíveis em “pgdlisboa.pt)

Em sentido contrário , tenho conhecimento de um acórdão do TR Porto, de 9.04.2008, publicado, com o seguinte sumário:
1. A transcrição prevista no nº 7 do art. 188º do Código de Processo Penal visa permitir o controlo jurisdicional pelo tribunal superior em caso de recurso da decisão de aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial. 2. Por isso, essa transcrição será normalmente um acto posterior à aplicação da medida. (Relator : JOSÉ CARRETO)
Salvo o devido respeito, discordo de tal interpretação.
Também no TRL houve uma decisão sumária, que após reclamação para a conferência, proferiu acórdão no sentido de a intervenção do JIC “só se justificar quando esteja em causa a concreta aplicação de uma medida de coacção, considerando que a actividade reclamada ao juiz ( de determinar a transcrição de escutas) é destituída de sentido, porquanto o MºPº tem à sua disposição todas as intercepções telefónicas, assim como o auto e relatório já elaborados pelo OPC, pelo que sempre poderá o MºPº ordenar as transcrições que entender, ao abrigo do nº9 do art. 188º”.

O MºPº junto do TRL interpôs recurso para o STJ para fixação de jurisprudência face à existência jurisprudencial de soluções opostas sobre a mesma questão de direito.
Como supra aludi, discordo , em absoluto , da posição assumida nos dois últimos acórdãos referenciados, pelos seguintes fundamentos:

A prova documental que resultar das intercepções telefónicas só podem ser consideradas e valoradas pelo tribunal na medida em que a acusação ou a defesa a indique, no momento oportuno, e proceda à respectiva transcrição –( nº9 do art. 188º do CPP).
Porém, o legislador teve ainda o cuidado de estabelecer um regime específico para o caso de, no decurso do inquérito, se tornar necessário valorar essa prova para efeitos de fundamentação da aplicação de medidas de coacção –( nº8 do citado preceito.)
Para não deixar desprotegida, nesta parte, a posição do arguido, impôs que a selecção das conversações a transcrever e a juntar aos autos seja feita pelo Juiz de instrução, a requerimento do MºPº.
Essa intervenção judicial visa garantir a imparcialidade daquela selecção, por forma a que ela possa reflectir toda a prova que tiver sido recolhida através deste meio, no momento em que os restantes sujeitos processuais não têm, ou podem não ter acesso ao processo, designadamente nos casos em que tenha sido determinado o segredo de justiça.
A triagem ou selecção da informação a transcrever tem sempre de se basear em critérios do Juiz – e não do OPC ou do MºPº- enquanto juiz das liberdades que também por isso conserva o que se vem designando por “imparcialidade operativa”
Para fundamentar a decisão judicial de aplicação de medida de coacção o meio de prova válido é, tão só, a transcrição das conversações telefónicas e a determinação da sua junção aos autos – a qual, nos termos do art. 188º nº8 é da competência, exclusiva, do JIC.

Só por esta via se possibilita, de resto, o pleno cumprimento da exigência de fundamentação do despacho judicial que aplicar medida coacção a qual tem de conter, sob pena de nulidade, “a referência a factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da media, incluindo os princípios de necessidade, adequação e proporcionalidade (previstos no art.193º) e os perigos previstos no art. 204º, ,e quando aí se determina que o arguido, por princípio, deve ser confrontado, para além dos factos, também com os meios de prova existentes – art. 194 nº4-d), nº5 e nº6 do CPP.
E só as transcrições valem como prova e podem, assim, ser utilizadas para fundamentar decisões, e não o conteúdo dos suportes técnicos. Note-se que apenas a partir do encerramento do inquérito, o arguido e o assistente podem examinar os suportes técnicos das escutas. ( art.188º nº8).
Os suportes técnicos destinam-se a ser destruídos ou guardados em envelope lacrado – nsº 6 e 12 do art. 188º do CPP.
E os relatórios elaborados pelo OPC, contendo sucinto conteúdo do teor das conversas telefónicas , não são transcrições de conversa telefónicas – art. 188º nº1 do CPP.

Assim sendo, o facto de não ter sido ainda ordenada a detenção de suspeitos a constituir como arguidos e de se não saber sequer qual vai ser a medida de coacção requerida, ou a requerer pelo MºPº, relativamente aos mesmos, não pode obstar a este procedimento uma vez que os indícios resultantes deste meio de obtenção de prova podem vir a ser úteis em qualquer momento e para aplicação de qualquer medida de coacção (à excepção do TIR).

[O Prof. Paulo Pinto Albuquerque( Comentário do CPP) destaca a conveniência, especialmente nos casos de processos com grande volume de escutas, em o MºPº requerer com antecedência ao JIC a transcrição e junção aos autos das transcrições que entende indispensáveis para fundamentar a aplicação de medida de coacção. Quando estiverem prontas as transcrições , o MºPº deve requerer então a realização de interrogatório judicial para aplicação de medida de coacção, no qual se revelarão as transcrições já efectuadas.]

Relativamente à questão suscitada de qual o valor probatório das escutas mandadas transcrever pelo JIC, para efeitos de aplicação de medida de coacção, eu diria que tais escutas não têm de novo que ser transcritas por iniciativa do MºPº ao OPC; o MºPº deve indicar tais escutas como meio de prova na acusação se entender que elas suportam/fundamentam a acusação deduzida.

Nesse sentido se pronunciaram já diversos acórdãos do TRL- disponíveis em http://www.pgdlisboa.pt/, ou no SIMP
- Ac. de 24.10.2007 (proc. 8862/07-3ª s, relator Carlos Almeida)
- Ac. de 6.12.2007(Adelina Oliveira e Trigo Mesquita)
Em sentido contrário, vd. acórdão de 30.10.2008 ( proc. 7396/08 -9ª S, relator Francisco Caramelo)
(todos os acórdãos ou sumários disponíveis em www.pgdlisboa.pt)

Relativamente à questão colocada de “Qual o valor probatório das escutas que o MºPº mande transcrever e juntar aos autos, antes de findo o inquérito, se for aplicada medida de coacção diferente do TIR?”
Eu diria o seguinte.
A entidade competente para aplicar medidas de coação, à excepção do TIR, é, apenas o Juiz de Instrução.
A fundamentação do despacho que aplicar a medida de coacção contém, sob pena de nulidade, a referência aos factos concretos, incluindo os previstos nos arts. 193ºe 204º (princípios de adequação e os “perigos” ). Donde, a meu ver, o valor probatório das escutas que tenham sido seleccionadas e mandadas transcrever pelo MºPº ao OPC, e que venham a fundamentar a aplicação de medida de coacção, por parte do JIC, pelo menos as escutas que indiciem a ocorrência dos “perigos” estabelecidos no art. 204º do CPP, podem estar feridas de nulidade - é o que resulta das disposições conjugadas dos arts. 190º (os requisitos e condições referidos nos arts. 187 a 189º são estabelecidos sob pena de nulidade) art. 188º nº7 ,art. 194º nº4 d), nº5 e nº6).
Deverá, pois, o MºPº estar especialmente atento ao conjunto de escutas que possam fundamentar a aplicação de uma medida de coacção, e requerer ao JIC a selecção e transcrição das mesmas.
Como último recurso,( como excepção, e não como regra), penso que o JIC poderá validar, no despacho que fundamenta a aplicação da medida de coacção, a selecção de escutas efectuada pelo MºPº e por este mandada transcrever ao OPC.

Questão colocada no âmbito do art. 189º nº1 do CPP-
- “extensão dos requisitos de Admissibilidade e de Formalidade das Operações “às conversações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à intercepção de comunicações entre presentes”
- Pergunta: se a expressão..."mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital..." pode abranger as mensagens escritas enviadas via telemóvel, vulgo as sms?
(No anterior regime às sms era aplicado o regime da apreensão de correspondência decorrente do disposto no art. 179.º do Código de Processo Penal; com a alteração legislativa podemos interpretar a nova norma de extensão do regime das escutas telefónicas como abrangendo este tipo de comunicação? )
Eu responderia que sim.
As mensagens arquivadas no cartão do telemóvel constituem uma forma de comunicação incluída no âmbito de protecção do art. 189º , pelo que a respectiva leitura deve ser autorizada pelo juiz, quer já tenham sido lidas, quer ainda o não tenham sido pelo seu destinatário. Assim decidiu já o acórdão do STJ de 20.09.2006.
Nessa medida, a apreensão do telemóvel com vista apenas à leitura da informação sobre os números contactados estará sujeita ao regime do art. 189º.(relativamente a crimes catálogo e a catálogo fechado de alvos escutados).
O acesso à facturação detalhada das conversações telefónicas está igualmente sujeito aos requisitos contidos no art. 189º, sendo que a reforma do CPP acolheu a circular da PGR (nº5/2001 de 16.06.2001), tendo tido acolhimento jurisprudencial, (diversos acórdãos do TRL- ex.Ac TRL de 10.12.2003- e do TR Guimarães - ac de 24.01.2005)
Tal regra impõe-se igualmente para a listagem detalhada das mensagens de texto recebidas por telemóvel - vulgo “SMS”, com identificação dos números remetentes e do conteúdo das mensagens.
Dito de outra forma, apenas será possível proceder à intercepção de comunicações electrónicas não telefónicas nas mesmas condições em que é permitida a realização de intercepções telefónicas – na expressão do acórdão do TRÉvora de 29.04.2008.
No regime vigente, no âmbito do CPP/revisto é esta também a posição perfilhada por Paulo Pinto Albuquerque.
[No domínio do CPP/98 há, porém, jurisprudência divergente da citada, entendendo-se que “As mensagens escritas - SMS - que o arguido remeteu ao queixoso via telemóvel, cujo conteúdo foi copiado pela PJ e junto aos autos, constituem um meio de prova lícito e não_ configuram, de forma alguma, um caso de intromissão na vida privada do mesmo. (Relator : SIMÕES DE CARVALHO) TR Coimbra, de 29.3.2006; TRL acs. De 15.07.2008 (proc. 3453/08-5 Simões Carvalho), de 20.03.2007 ,proc 7189/06-7, Agostinho Torres)]
Mas no sentido que julgo ser o mais conforme à matriz constitucional e ao ordenamento processual penal, citarei o acórdão do TR Évora de 29.04.2008, proc. 111/08, relator Desembargador Dr. Ribeiro Cardoso (e o acórdão do TR Coimbra de 4.10.2006 (CJ XXXI,4,41)

Passaria a ler os segmentos que julgo mais impresssivos do citado Ac do T. R. de Évora:
“O conceito de comunicação electrónica não está previsto na legislação da área penal, mas vem definido no art. 2.º n.º1, alin. a) da Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, que regulamenta o tratamento de dados pessoais e a privacidade no sector das comunicações electrónicas.
( Diz esta norma que comunicação electrónica é qualquer informação trocada ou enviada entre um número finito de partes mediante utilização de um serviço de comunicações electrónicas acessível ao público. É um conceito muito lato e abrangente que, a própria lei entende valer apenas para efeitos da presente lei. Pelo contrário, telecomunicação é um conceito que nenhuma lei actual define. O ordenamento jurídico usa-o, por exemplo, no texto do n.º2 do art. 194.º do Código Penal, mas não o define.
“Importa ter presente que, nos serviços de telecomunicações cabe distinguir três espécies ou tipologias de dados ou elementos: (i) os chamados dados de base, relativos à conexão à rede; (ii) os chamados dados de tráfego, dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e gerados pela utilização da rede (p. ex. localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência); e (iii) os chamados dados de conteúdo, concernentes ao teor da comunicação ou da mensagem [2]
“A garantia do sigilo abrange, não apenas o conteúdo da correspondência, mas o tráfego como tal (espécie, hora, duração, intensidade de utilização).
. Por força do estatuído no n.º 4 daquele art. 34.º, o direito ao sigilo das telecomunicações envolve as proibição da devassa do seu conteúdo e a sua divulgação por quem a elas tenha acesso, designadamente os empregados dos serviços de telecomunicações, para quem decorre um dever de sigilo profissional, como garantia do direito ao sigilo das mesmas telecomunicações, que não poderá ser violado. Este inciso constitucional é tanto mais relevante quanto em matéria de processo criminal as excepções à inviolabilidade das telecomunicações não são a regra, ou melhor, são a contra-regra. Na verdade, na lei ordinária actual, mesmo em matéria de processo crime, a ingerência nas telecomunicações só é permitida nos casos de o tipo legal de crime corresponder ao catálogo de crimes cuja gravidade social e o relevante interesse de paz social permitem essa ingerência (cf. art. 187.º do CPP). . “A distinção entre dados de tráfego das comunicações e o seu conteúdo é, hoje em dia irrelevante, já que a Lei 41/2004, de 18 de Agosto, equipara os dados de tráfego aos dados de conteúdo para efeitos de garantia da inviolabilidade das comunicações.
A equiparação de dados de conteúdo, que são o núcleo mais fundamental da própria comunicação, aos dados de tráfego, para efeitos de protecção do sigilo das telecomunicações sujeita a obtenção destes dados ao regime de intercepção e gravação de conversações e comunicações telefónicas vertido no art. 187.º do Código de Processo Penal.
Em face do disposto nos arts. 187º (crimes catálogo e alvo dos escutados) , 189º(extensão desses requisitos ás conversações transmitidas por meio técnico diferente do telefone) e 269º nº1 al e) do CPP ( apenas o JIC pode autorizar a intercepção, gravação de conversações nos termos dos arts. 187º a 190º), apenas será possível proceder à intercepção de comunicações electrónicas não telefónicas nas mesmas condições em que é permitida a realização de intercepções telefónicas.
A lei nova sujeitou também ao regime do art.. 189º as comunicações electrónicas “mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital” incluindo, portanto, também o correio electrónico já recebido ou mesmo aberto e tratado pelo destinatário.

Com esta breve comunicação, espero ter contribuído para a reflexão sobre o regime das escutas telefónicas no novo regime processual penal.

Por fim, a Temática do meio de prova obtido através de “Reconhecimento” e obtido através de “identificação”.
No que tange à pergunta formulada sobre “ o valor probatório dos reconhecimentos efectuados em audiência de julgamento no decurso de um depoimento testemunhal”, eu diria que está em causa o valor probatório do meio de prova efectuado através de “reconhecimento” e do meio de prova efectuado através de “identificação”.
O meio de prova “reconhecimento”, por regra efectuado em inquérito ou em instrução tem de obedecer, taxativamente, aos requisitos previstos no art. 147º .
A identificação, por regra, efectuada em audiência de julgamento no decurso de depoimento testemunhal, não tem que obedecer aos requisitos plasmados no referido art. 147º, antes tem de ser valorada no termos do art. 127º do CPP - princípio da livre apreciação da prova,.

Nesse sentido se pronunciou o recente acórdão do TR Porto de 7.11.2007 (proc 0713492, www.dgsi.pt), já com expressa referência ao CPP/revisto, cuja clareza de raciocínio justifica que se passem a ler excertos do mesmo:
“A adição pela lei nova ( Lei 48/2007 de 29.08) de um novo número ao art. 147º do CPP (…) não se traduz numa qualquer novidade na disciplina do reconhecimento; apenas vem dizer que, quer no inquérito, quer na instrução, quer no julgamento, o meio de prova que é o reconhecimento tem de obedecer ao formalismo enunciado naquele artigo.
Isto é, a lei nova não veio introduzir um novo meio de prova ou definir de maneira diferente o valor probatório daquele meio de prova, caso em que se poderia pôr a questão de aplicação da lei nova, se eventualmente mais favorável ao arguido. Apenas veio dizer de forma inequívoca aquilo que já era suposto (e que muitas vezes se fazia na prática dos tribunais) na lei antiga: que o meio de prova reconhecimento só seria válido e eficaz se obedecesse ao formalismo do nº2 do art. 147º.
No domínio da lei antiga entendia-se (falamos do entendimento da jurisprudência e da prática dos tribunais) que o reconhecimento do arguido ou de alguém, feito por uma testemunha em audiência de julgamento, não tinha sempre de obedecer ao formalismo prescrito pelo art. 147º do CPP, pois este preceito legal só tinha aplicação nas fases de inquérito e de instrução. (Ac STJ de 2.10.1996 –BMJ460,525; de 1.02.1996-CJ/STJ,ano IV,I,fls.198; de 11.05.2000, proc 75/2000 e de 17-02-2005, proc 4324/04; de 2.10.1996, proc 96P728; de 06-09-2007, proc 06P1392,www.dgsi.pt).
Esse entendimento e a prática correspondente não deverão sofrer abalo no âmbito da lei nova quando se trate não de proceder ao reconhecimento do arguido, mas à identificação do mesmo ,pela testemunha, como sendo o autor dos factos em discussão. Isto por se entender (como antes se entendia) que em tais caos o que se valoriza é o depoimento da testemunha, apreciado nos termos do art. 127º do CPP, e não a “prova por reconhecimento” a que alude o art. 147º (cfr acórdãos atrás citados) . E entendia-se que esta interpretação do art. 147º não violava o princípio das garantias de defesa consagrado no art. 32º nº1 da CRP, ou qualquer outra norma constitucional, como decidiu o TC no acórdão 425/2005 de 25.08.2005( proc 452/05, DR nº 195, II série de 11.10.2005,pp 14574 a 14579) (…)
Em todo o caso, também se sublinhava e deve continuar a sublinhar-se, que tinham de considerar-se sanados quaisquer vícios do âmbito do art. 147º, existentes em reconhecimento efectuado em audiência, desde que não fosse logo arguida a nulidade do acto, quando o arguido a ele assistia. (Ac STJ de 14.04.1994, proc. 46223; Acs STJ de 2.10.1996, proc. 96P728, www.dgsi.pt)” (…)
No que toca à identificação +propriamente dita dos arguidos feita em audiência de julgamento dos presentes autos, no acórdão recorrido refere-se com notável objectividade o teor das declarações das testemunhas que referenciavam os arguidos como sendo os autores dos assaltos, e desse mesmo acórdão não é possível concluir que a convicção do tribunal se formou apenas com base nessas identificações (…)
Assim, com referência às declarações das testemunhas na parte em que, de modo directo ou indirecto, identificaram os arguidos como sendo os autores dos factos que elas referem, terá de se dizer que, como se extrai do art. 127º do CPP, salvo os casos de prova vinculativa, o julgador aprecia a prova segundo a sua própria convicção, formada à luz das regras da experiência comum. E, só perante a constatação de que tal convicção se configurou em termos errados é legalmente admissível ao tribunal superior alterar a matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido”.
Como questão de fundo em termos de valoração destes meios de prova, eu direi, que em 1ª linha, o Magistrado do MºPº, enquanto titular do inquérito, e naturalmente, os Órgão de Polícia Criminal, devem cuidar/diligenciar para que se proceda a reconhecimento –auto de reconhecimento de pessoa - em sede de inquérito, sempre que possível, em momento temporal próximo da prática do crime, com observância escrupulosa dos requisitos legais plasmados no art. 147º do CPP.

Nas situações em que não for viável proceder ao reconhecimento em sede de inquérito, propugna-se que a identificação que venha a ocorrer, em sede de audiência de julgamento, por parte de testemunha, se rodeie de especiais cuidados, designadamente que a testemunha descreva, previamente, as características físicas do identificando, as circunstâncias de modo e lugar em que esteve em contacto visual com o identificando, o tempo que dispôs para visualizar as características físicas daquele, de forma a que o tribunal possa ajuizar, com maior segurança, da credibilidade da identificação, elemento de prova a valorar em conjugação com o restante conjunto de fontes de prova que seja produzido no decurso do julgamento.

O meio de prova obtido através da identificação de arguido exige, por parte do tribunal de julgamento, acrescida exigência de fundamentação sobre as fontes de prova - de entre elas a identificação efectuada -, que serviram para formar a convicção do julgador.

Espero que esta breve comunicação tenha contribuído para uma reflexão conjunta sobre um leque de questões com que todos nos debatemos, na nossa prática judiciária, face à operada reforma do CPP.

A produção de prova em julgamento

A produção de prova em julgamento: criminalidade económico-financeira e criminalidade fiscal
(texto resultante da comunicação efectuada no CEJ, no decurso da formação permanente, em 06.12.2007)
ANA BRITO
JUIZ-DESEMBARGADORA E DOCENTE NO CEJ


Em Portugal há uma ideia que perpassa toda a sociedade: a ideia de que os processos importantes não chegam ao fim.
E considera-se processo importante tanto aquele que corre contra pessoa(s) económica ou politicamente poderosa(s), como o processo por crime que atinja em grau elevado bens jurídicos particularmente relevantes, o processo por crime causador de dano de montante consideravelmente elevado, o processo que adquira avultada dimensão, ou que trate de crime e/ou de factualidade de elevada complexidade.
A criminalidade económico-financeira, as corrupções e a criminalidade fiscal, por uma ou outra razão, dão muitas vezes origem a processos importantes.
Sendo o direito penal uma ciência prática e visando o processo a resolução do caso, partirei de dois desses casos em que tive intervenção como juíza de julgamento, para abordagem de duas concretas questões de prova, neste tipo de criminalidade.
São elas, respectivamente, a especificidade da prova, da prova pericial, no julgamento de crimes fiscais (particularmente das fraude carrossel) e, a especificidade da valoração da prova segundo o princípio da livre apreciação no julgamento de crimes de corrupção.

Em de Dezembro de 2001 foi distribuída à Vara Criminal onde então exercia funções um processo de arguidos presos, conhecido como o processo Mas Rós.
Tratava-se, segundo creio, do primeiro processo de fraude carrossel.
Até então nunca ouvira falar em carrossel do IVA ou em fraude carrossel.
O proc. Mas Ros era já nessa altura constituído por 15 volumes, processados em 4439 folhas, acompanhados de documentação composta por 53 pastas com o nome de pasta-anexo e 91 pastas com o nome de apensos-A
A acusação Mas Ros apresentava-se deduzida contra dezasseis arguidos, nacionais e estrangeiros, sendo nove, pessoas físicas, e sete, sociedades.
Imputava-lhes, ao 1º arguido, um crime de associação criminosa, um crime de fraude fiscal agravada, um crime de abuso de confiança agravado; aos 2º a 9º arguidos, os mesmos crimes à excepção do abuso de confiança, e aos 10 a 16º arguidos, um crime de fraude fiscal.
Computava em 1.529.277.226$00 (mil quinhentos e vinte e nove milhões, duzentos e vinte e sete mil e duzentos e vinte e seis escudos, o valor do prejuízo causado ao estado, sendo desse montante o pedido cível contra todos deduzido.
Arrolava 51 testemunhas, dez das quais inspectores tributários e/ou técnicos economistas. Oferecia ainda como prova toda a documentação junta ao processo e ainda dez relatórios periciais, um dos quais final e de âmbito global.
O processo Mas Rós era, por tudo, um processo importante.
E da leitura da acusação, bem como dos meios de prova oferecidos resultou logo que era também um processo de elevada complexidade.
E essa elevada complexidade resultava não tanto do aspecto jurídico da causa crime (ou da causa cível enxertada na causa crime), mas da própria factualidade subjacente à imputação típica.
Ao longo de quarenta folhas, a acusação descrevia o facto real, ou seja, o tal “pedaço de vida” que se pretende regular com o processo, e que, no caso, consubstanciava uma fraude carrossel do IVA.
Nela se identificavam seis circuitos diferentes de transacção de mercadorias originárias de Espanha e/ou de Portugal, todos eles utilizados como meios distintos para apropriação, a favor dos arguidos, do IVA liquidado e recebido.
E essa apropriação, traduzida na obtenção de benefícios económicos indevidos à custa do estado português, partia do aproveitamento da livre circulação de mercadorias instituída pelos tratados da então C.E.E. e da U.E. e da aquisição de mercadorias feita à taxa de o% de IVA.
O processo era já constituído por quinze volumes, continha densa actividade processual e de investigação, na qual assumiam especial protagonismo a(s) perícia(s) e a actuação dos peritos, com um vastíssimo trabalho de procura do facto.
Mas, apesar de todo esse imenso trabalho desenvolvido no processo pelo instrutor, (instrutor, no sentido mais amplo e menos técnico), é o julgamento, mais precisamente o seu momento último – a sentença ou decisão final - o momento mais importante do processo, o momento para o qual todo o processo caminha desde o início, o momento em que se “restabelece a paz jurídica comunitária posta em causa pelo crime” e se “reafirma a validade da norma violada” (Fig. Dias).
É que, como refere Sérgio Poças, “ em julgamento penal, no início da audiência, nada existe, porque nada está provado”
O julgamento visa a discussão da causa penal, de forma a habilitar o tribunal a proferir decisão justa. A decisão justa pressupõe a descoberta da verdade, e a descoberta da verdade passa pela produção das provas.
Considera-se por isso que a prova é a questão fundamental do julgamento e, logo, de todo o processo judicial, e que o juiz penal deve procurar a verdade onde quer que ela se encontre, socorrendo-se para isso das provas.
E há duas ideias fundamentais, que devem ser preocupação constante do juiz de julgamento e, logo, necessariamente, as do instrutor do processo:
- a primeira, é a de que o facto do processo, do processo judicial, se aproxime o mais possível do facto real (desejável é mesmo que o facto do processo coincida com o facto real;
- e a segunda, a de que a procura da verdade deste facto real, que se deseja que seja também a verdade do processo, se faça de uma forma legalmente conformada.
Não há boa decisão fora da verdade.
E as provas (não quaisquer provas, mas apenas as de imperiosa conformação legal) constituem a única via de acesso à verdade, ou de reconstrução da verdade no processo judicial.
Há que ter sempre presente, em qualquer momento da marcha do processo, que a prova tem que nele entrar validamente, não podendo nunca, o conhecimento do facto passar pela via da prova proibida.
O processo penal, entendido como um espaço seguro no qual o juiz deve garantir que se procura a verdade, espaço edificado pelo corpo de normas processuais penais (e constitucionais penais) constitui o melhor espaço possível para chegar a um resultado que consinta o mínimo erro: o tal erro de facto, que, se cometido, dificilmente será reparado.
Na definição de Garapon, “o processo é uma forma vaga que não pertence a ninguém; é por isso que se adequa tão bem à democracia, que é o poder da pessoa. Está pronto a acolher todas as versões dos factos e todos os argumentos, aplicando-lhes uma determinada ética quanto à exposição. O processo controla o modo como se apresentam, provam e interpretam os factos.”
Pretendendo-se com o processo a resolução do caso, do tal “pedaço de vida” trazido a julgamento, se o juiz falha na averiguação e descrição do facto, falha, no limite, no exercício da sua função soberana de administração da justiça em nome do povo (art. 202º, nº1 da CRP).
Há pois que conformar o facto à realidade histórico-existencial, por via do julgamento justo.
Mas de que facto falamos, quando falamos em criminalidade fiscal, mais especificamente em fraude carrossel do Iva?
Parece-me ser aqui, neste ponto da compreensão/definição do pedaço de vida que se pretende regular, que reside a especificidade dos processos de fraude carrossel e por crimes fiscais em geral.
É que a própria compreensão do facto naturalístico exige, no caso, por parte do julgador, conhecimento em áreas não especificamente jurídico-penais.
É desejável que o juiz penal, quando chamado a decidir a causa penal sempre que esta consista em conhecer da fraude carrossel, possua também alguns conhecimentos de fiscalidade e de contabilidade. Mais do que desejável, julgo-o imprescindível.
É certo que na descoberta/compreensão deste facto assume especial protagonismo a perícia e os peritos.
Mas, por um lado, o resultado apresentado no laudo é sempre sindicável pelo juiz. E, pelo outro, o perito não descreve nem narra todo o facto.
“O perito não pode substituir o julgador antecipando-se à fixação do facto” (Prof. Anabela Rodrigues).
A sua contribuição (do perito) no processo consiste na formulação de um parecer ou opinião sobre o significado ou valor de meios de prova. Ele intervém na apreciação da prova, sempre que esta pressuponha conhecimentos fora do alcance directo do julgador.
O perito é portanto um auxiliar do juiz.
Seguindo Cav. Ferreira, “Os factos são uma coisa e coisa diferente é a sua apreciação. A apreciação dos factos é função judicial. A perícia não é verdadeiramente um meio de prova, nem real, nem pessoal. Destina-se a auxiliar o julgador, ou o instrutor do processo na função que lhe é peculiar de desvendar o significado de provas preexistentes ou de apreciar o seu valor ”.
Nos processos de fraude carrossel, esse auxílio tem lugar em dois momentos diferentes:
- na revelação da existência da prova – v.g. localização, selecção, apreensão de documentos
- e na apreciação do valor dessa prova – exame dos documentos: facturas, balanços, cruzamento de informação contabilística.
Num primeiro momento, trata-se de descobrir a prova, funcionando o perito como auxiliar da investigação e confundindo-se mesmo com o próprio instrutor do processo.
A apreciação da prova pelo perito não é porém omnicompreensiva como a do juiz, mas apenas parcial, quer quanto aos factos ou objecto do processo, quer quanto à perspectiva sob a qual se observam ou apreciam os factos.
As conclusões dos peritos não tomam a natureza de decisões, mas o juiz serve-se delas para formular a própria decisão.
E é nessa formulação da decisão judicial, na parte consistente na definição do facto a subsumir juridicamente, que será desejável, digo mesmo imprescindível, que o juiz de julgamento possua algum conhecimento extra penal, particularmente nas referidas áreas de contabilidade e de fiscalidade, quando julga a causa penal fiscal.
Se assim não for, poderá comprometer a descoberta do facto e, consequentemente, a decisão.
E falhará na função soberana de administração de justiça já que para dizer o direito terá necessariamente de dizer, primeiro, e bem, o facto.

Ainda a propósito da descoberta do facto, e sempre na perspectiva da prova em julgamento, passarei à segunda questão: a da apreciação dessa prova nos crimes de corrupção,
e falarei, a propósito, do segundo processo.
Refiro-me a um processo, de grande dimensão, que ficou conhecido como o processo dos pilotos da barra.
Tendo sido inicialmente acusados cerca de 150 arguidos, por via da separação de processos, vim a intervir no julgamento de 62 deles, a quem se imputavam crimes de corrupção activa e de corrupção passiva.
Os primeiros arguidos, eram sócios de empresas proprietárias de rebocadores, rebocadores utilizados pelos segundos arguidos, os pilotos da barra de Lisboa, nas manobras de entrada e saída de navios do porto de Lisboa.
Muito sinteticamente, dizia a acusação, que as empresas de rebocadores gratificavam monetariamente os pilotos da barra para que estes escolhessem os seus rebocadores (pagos pelo Estado) nas referidas manobras.
A entrega e recebimento das verbas era facilmente demonstrável no processo – todos os arguidos admitiam os pagamentos/recebimentos das quantias que até declaravam fiscalmente, passando recibos; E diziam tratar-se de um costume muito antigo e conhecido de todos.
A prática dos actos da função também o era: a escolha e utilização dos rebocadores estavam materializadas em pertinente documentação.
Faltava a prova do terceiro facto: a ligação entre a solicitação ou aceitação da vantagem e a prática do acto pelo funcionário.

Nas palavras de Almeida Costa, a corrupção (passiva) constitui um crime de dano, que importa efectiva violação da esfera de actividade do Estado, traduzida numa ofensa à sua “autonomia intencional”.
E essa violação dá-se logo que ocorra declaração de vontade do funcionário público que evidencie a inequívoca intenção de mercadejar o cargo, isto é, de vender o exercício de uma actividade. O crime consuma-se independentemente do recebimento da oferta, ou seja da retribuição para um qualquer acto de serviço.
Sempre que o agente se deixa influenciar pelo suborno tomando uma decisão diversa da que tomaria se a gratificação (ou a sua promessa) não tivessem ocorrido, há corrupção passiva.
O tipo do art. 372º do CP pune o funcionário que (…) solicitar ou aceitar vantagem (…) para um qualquer acto ou omissão contrários aos deveres do cargo.
Como alguma doutrina e alguns críticos referem, e a prática judiciária tem demonstrado, é neste “para um qualquer acto” (o antigo ”como contrapartida de”) que se coloca a principal questão de prova neste tipo de criminalidade.
Ou seja: pode ser, e é muitas vezes, facilmente demonstrável no processo a prática de determinado acto ou omissão relativos ao cargo; pode ainda sê-lo a verdade dos factos relativos à existência ou movimento da vantagem do pretenso corruptor para o pretenso corrompido; mas isto não basta para tipificação do crime.
Em 06 de Fevereiro escrevia o Dr. Rui Pereira: ”Suscita controvérsia a proposta de criação de um crime de “enriquecimento ilícito”. Os adeptos da proposta assinalam que a corrupção é difícil de investigar e que a exibição de fortunas inexplicáveis por titulares de cargos públicos põem em causa a credibilidade do Estado de Direito democrático. No pólo oposto os críticos recordam uma garantia fundamental do processo penal: a presunção de inocência, consagrada no art. 32º, nº2 da CRP. Se o crime de corrupção passiva fosse punido sem mais quando o arguido exibe um património cuja origem não consegue explicar, violar-se-ia o art. 32º, nº2 da CRP. A fortuna inexplicável seria condição suficiente de uma condenação, dando-se como provado que alguém teria recebido vantagem patrimonial para praticar determinado acto ou omissão. O arguido seria condenado com violação do princípio do in dúbio pró reo” .
Retomando a questão da prova, já concretamente situada na demonstração do terceiro facto:
Os crimes de corrupção e similares são crimes reconhecidamente de difícil investigação e, ao que ora interessa, de difícil prova.
Reconhecidamente, pelo próprio legislador, que normativizou regimes especiais de recolha e obtenção de prova.
São crimes ligados ao poder ou a um poder.
Onde há poder há corrupção, diz-se. Ou, na melhor das hipóteses, onde há poder pode haver corrupção.
Na ausência de confissão/admissão deste terceiro facto ou de qualquer outra prova directa, no sentido de prova que incida directamente sobre ele, resta ao julgador a apreciação de prova indirecta, aquela que permite ao julgador, sempre com o auxílio das regras da experiência uma ilação quanto ao facto probando.
Como já referia Cav.Ferreira, são muito frequentes os casos em que a prova é essencialmente indirecta.
E acrescentava aquele prof.: “Dada a importância que reveste em processo penal, há que indicar alguns tópicos essenciais, chamando sobretudo a atenção para os seus perigos ou insegurança das conclusões e para o modo mais criterioso da sua utilização. É uma prova em si mesma enganadora, isto é, consente graves erros. Efectivamente a verdade final, a convicção, terá que se obter através de conclusões baseadas em raciocínios e não directamente verificadas: a conclusão funda-se no juízo de relacionação normal entre o indício e o facto probando. O carácter falível destes raciocínios de relacionação entre dois factos revela o evidente perigo de erro, ou a relativa fragilidade da prova em si mesma.”
Sabe-se que a prova é, por regra, apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente; que o tribunal forma a sua convicção valorando os diferentes meios de prova sem obediência a critérios legais pré-fixados, mas de acordo com as regras da experiência; que não existe convicção fora da prova; que esta convicção é pessoal, do julgador, formada na livre apreciação da prova, mas necessariamente objectivável e motivável.
Livre apreciação da prova entendida como, nas palavras de Des.Sérgio Poças “análise racional e objectiva da prova, levada a cabo pelo tribunal de acordo com as regras da experiência, da lógica, da razão e dos conhecimentos científicos e técnicos necessários ao caso, sem subordinação a critérios legais pre-fixados.”
Mas qual o grau de convicção exigível, exigível pelo próprio julgador – o seu grau de convicção; ou, de uma forma diferente onde termina ou começa a dúvida razoável?
Voltando ao caso, há que avaliar, à luz dos critérios da experiência comum se, no caso, a(s) entrega(s) em dinheiro, as gratificações, as lembranças, pelo seu valor, pela sua reiteração, pelo demais circunstancialismo de tempo modo e lugar em que ocorrem se não mostram justificáveis de outro modo, que não seja o de visarem a prática de acto do funcionário.
Mas essa avaliação far-se-á de acordo com os princípios gerais de apreciação de prova comuns a todos os tipos de criminalidade.
O processo penal não permite, porque não prevê, regras especiais de valoração da prova para os casos de corrupção ou nos casos de criminalidade de difícil investigação.
Prevê meios específicos de obtenção e até de produção de prova. Mas não de valoração da prova.
São momentos processualmente distintos, que se sucedem no processo: o da recolha e obtenção da prova, o da produção da prova e, por último, o da sua valoração.
O grau de exigência e de rigor exigido pelo princípio da livre apreciação da prova não variam consoante o tipo de crime em causa.
São, pelo contrário, precisamente os mesmos. O que no caso quer porém também dizer que esse exercício soberano máximo falha quando se exige mais, mais prova, ou melhor ou maior convicção do que para o julgamento de outros crimes menos graves ou menos complexos; ou simplesmente diferentes.

Gostaria de referir, para terminar, o que aconteceu afinal aos dois processos.
No proc. Mas Rós, a 04/06/2002, dois anos após a prática do (último) facto, foi proferido acórdão, em que se decidiu: julgar a acusação e o pedido cível procedentes por provados, e em consequência condenar o primeiro arguido na pena única de sete anos e seis meses de prisão, um outro arguido na pena de três anos e seis meses de prisão, todos os restantes arguidos pessoas singulares na pena de três anos de prisão suspensa na execução por igual período de tempo, as arguidas “sociedades” em penas de multa.
Foram ainda todos os arguidos condenados a pagar ao Estado Português a quantia de 7.627.753,24€ (sete milhões, seiscentos e vinte e sete mil, setecentos e cinquenta e três euros e vinte e quatro cêntimos) e juros legais.
Interpostos recursos, sucessivamente, para o Tribunal da Relação de Lisboa, para o Supremo Tribunal de Justiça e, ainda, para o Tribunal Constitucional, foi sendo a decisão proferida em 1ª instância sempre confirmada, tendo o seu trânsito em julgado ocorrido em 21.11.2003.
Os arguidos cumpriram as respectivas penas.
O Estado adquiriu título para recuperação do dano.
Restabeleceu-se a paz jurídica comunitária posta em causa pelo crime e reafirmou-se a validade da norma violada.
O processo dos pilotos da barra também chegou ao fim, conhecendo contudo decisão diferente.
Decorridos alguns meses de julgamento foi proferido acórdão integralmente absolutório, do qual não foi interposto recurso.
Também aqui se restabeleceu a paz jurídica comunitária.

Gostava de referir, e agora é mesmo para terminar, que o nosso sistema processual penal convive muito dificilmente com processos de avultada dimensão, os mega-processos ou os processos-monstro.
Que cabe ao M.P., no âmbito do seu poder de direcção do inquérito e por via da prolação da acusação, a delimitação/conformação, inicial do processo.
Cabe-lhe por tudo isso uma grande responsabilidade na definição última do tema da prova (apesar das possíveis alterações de objecto que venham a ocorrer no processo, por via do exercício da defesa do arguido e outras pontuais intervenções de sujeitos processuais).
Julgo que deverá ser sempre equacionada e pensada pelo MP também esta questão da dimensão física do processo, no sentido de se prosseguir e conseguir uma melhor justiça.
Que não passa, na minha visão das coisas, pelas mega-acusações e pelos os mega-processos.
Tudo para que também os processos importantes continuem a chegar ao fim.