terça-feira, março 27, 2007

O registo de voz e imagem

(texto de Síliva Martins, para as sessões de Penal II - 15 de Dezembro de 2006)


O registo de voz e imagem - Enquanto meio de produção de prova em processo penal

Lei 5/2002, de 11 de Janeiro

Esquema de apresentação:
1 – Enquadramento legal.
2 – Comparação com a Lei 1/2005, de 10 de Janeiro e o DL 35/2004, de 21 de Fevereiro.
3 – O regime de registo de voz e imagem:
Dispositivos legais aplicáveis;
Aspectos comuns com o CPP;
Aspectos específicos.

1 – enquadramento legal

Quer a voz, mais propriamente a palavra, quer a imagem são direitos que têm consagração/tutela constitucional.
Sendo certo que a captação de voz e imagem através de meios técnicos pode colidir com outros direitos, tais como, a privacidade, o sigilo de comunicações, etc.

O art. 26.º da CRP prescreve como direitos fundamentais, os direitos à imagem e à palavra.

Art. 26º da CRP
(Outros direitos pessoais)
1 – A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.

A imagem (mas não a voz), enquanto direito de personalidade, é também tutelada juscivilisticamente pelo art. 70 e ss. do CC, onde consta a tutela geral dos direitos de personalidade.

Art. 70.º
(Tutela geral da personalidade)
1 - “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.”

A tutela da imagem é especificamente concretizada no art. 79.º do CC (Direito à imagem), de acordo com o qual o retrato de uma pessoa não pode ser exposto nem publicado sem o seu consentimento.

O citado art. 79 do CC estabelece que:
1 – O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela; depois da morte da pessoa retratada, a autorização compete às pessoas designadas no n.º 2 do artigo 71.º, segundo a ordem nele indicada.
2 – Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades cientificas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente.
3 - ….

Tais direitos (voz e imagem) encontram também positivação/protecção jurídico-penal através do art. 199.º do CP, onde se proíbem as “Gravações e fotografias ilícitas”.

Art. 199.º do CP
1 – Quem sem consentimento:
a) Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou
b) Utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas;
é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.
2 – Na mesma pena incorre quem, contra vontade:
a) Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou
b) Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos.
3- …

Assim, a palavra e a imagem são, actualmente, tratados como bens jurídicos autónomos face à privacidade/intimidade (art. 190.º do CP).
Até 1995, a voz e a imagem eram tratados no capítulo Dos crimes contra a reserva da vida privada. Todavia, em 1995, a voz e imagem (art. 199.º) passaram a ter uma tutela autónoma, encabeçando o novo capítulo Dos crimes contra outros bens jurídicos pessoais.

Pretendeu-se elevar estes dois interesses à categoria de autênticos e autónomos bens jurídicos, expressão da personalidade, dignos e carentes de tutela penal, independentemente de se colocar ou não em causa a intimidade da vida privada.

Por outro lado, já na esfera dos meios de prova, o art. 167.º do CPP consagra que
Art. 167 do CPP
(Valor probatório das reproduções mecânicas)
1 – As reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo electrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas nos termos da lei penal. (desde logo, o art. 199.º do CP)
2 – Não se consideram, nomeadamente, ilícitas para os efeitos previstos no número anterior as reproduções mecânicas que obedecerem ao disposto no Título III deste Livro. (refere-se aos meios de obtenção de prova – ar. 171 e ss. do CPP)

A prossecução das finalidades repressivas imanentes ao processo penal, maxime, a descoberta da verdade material, não legitima produção (por particular ou por autoridade pública) sem consentimento, de gravação, fotografia ou filme. Como não legitima a sua utilização ou valoração sem consentimento em processo penal, nomeadamente no contexto das proibições de prova.
O mero propósito de juntar, salvaguardar e carrear provas para o processo penal não justifica o sacrifício do direito à palavra e do direito à imagem.

Conclui-se, assim, que a voz e a imagem são bens jurídicos eminentemente pessoais, enquanto expressão da personalidade e têm uma tutela penal própria.

E da conjugação das várias disposições referidas, resulta a ilicitude da utilização da voz e da imagem, sem o consentimento do respectivo titular.

Todavia, a protecção da palavra e da imagem conhece algumas limitações, pois os direitos fundamentais não são absolutos nem ilimitados.

Em primeiro lugar, e não se podendo considerar uma verdadeira limitação, na determinação da área de tutela (penal) típica do direito à imagem deve ter-se presente o disposto no art. 79, n.º 2 do CC, que, pelo menos em algumas situações ai previstas, se projecta em sede de tipicidade e não apenas de ilicitude/ justificação, o que se verifica em relação a dois grupos de casos:
a) Em primeiro lugar, quando a imagem vier enquadrada na de lugares públicos ou na de factos de interesse público ou hajam decorrido publicamente, isto na medida em que a imagem da pessoa resulte inequivocamente integrada na imagem daqueles espaços ou eventos e neles se dissolva;
b) Em segundo lugar, quando seja relevante a notoriedade ou o cargo desempenhado. (O cargo público exercido está incluído pela lei nos casos de limitação legal do direito à imagem, já que o interesse público em conhecer a imagem dos respectivos titulares sobreleva o interesse individual.)
O art. 79.º, n.º 2 do CC reduz significativamente a tipicidade dos atentados à imagem.
De acordo com o art. 31.º do CP todas as causas de justificação existentes em qualquer ramo do direito valem em direito penal. Integração sistemática com a ordem jurídica no seu conjunto.
Art. 31.º do CP “O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.”

Anteriormente, era também considerado o art. 79.º, n.º 2 do CC no que concerne às “exigências de polícia ou de justiça”, mas o preceito há-de, actualmente, ser interpretado à luz do art. 167.º do CPP. Ou seja, o objectivo de carrear prova para o processo penal não justifica a produção de fotografias arbitrárias.

Por outro lado, a voz e a imagem, enquanto direitos constitucionalmente tutelados, sofrem limitações/restrições em homenagem à realização de finalidades processuais, as finalidades repressivas imanentes ao processo penal. Com efeito, o art. 187 do CPP e o art. 6 da Lei 5/2002 (sob apertadas exigências previstas legalmente), permitem a intercepção e gravação de conversações e o registo de voz e imagem.
Mas tais direitos, podem também ser limitados por questões de segurança e prevenção, designadamente o DL 35/2004 e a L 1/2005.


Assim, e começando pelo fim…analisemos a Lei 1/2005…nunca esquecendo que o trabalho tem por base a obtenção de prova em processo penal…


2 – Comparação com a Lei 1/2005, de 10 de Janeiro e o DL 35/2004, de 21 de Fevereiro.

A Lei 1/2005 regula a utilização de câmaras de vídeo pelas forças e serviços de segurança em locais públicos de utilização comum.

Dos art. 1.º, n.º 3 e art. 2.º, n.º2 , decorre a aplicação subsidiária da Lei 67/98, de 26 de Outubro (Lei de protecção de dados pessoais), uma vez que, como decorre do próprio objecto e âmbito da lei, esta visa a utilização de sistemas de videovigilância, o que implica uma limitação/restrição do direito à reserva da intimidade da vida privada
Sendo certo que apenas estão sujeitos à aplicação desta lei as situações de captação de dados que permitam identificar as pessoas, o que não acontece com um sistema sem zoom que apenas pretende visualizar o fluxo de tráfego numa determinada rua.
Art. 4.º, n.º 4 da Lei 67/98 “A presente lei aplica-se à videovigilância e outras formas de captação, tratamento e difusão de sons e imagens que permitam identificar pessoas sempre que o responsável pelo tratamento esteja domiciliado ou sediado em Portugal..”

De acordo com esta lei – art. 2.º -
Só pode ser autorizada a utilização de videovigilância para um dos seguintes fins:
a) Protecção de edifícios e instalações públicos e respectivos acessos;
b) Protecção de instalações com interesse para a defesa nacional;
c) Protecção da segurança das pessoas e bens, públicos ou privados, e prevenção da prática de crimes em locais em que exista razoável risco da sua ocorrência;
d) Prevenção e repressão de infracções estradais. (a captação para estes fins deve ser objecto da autorização devida – art. 2.º, n.º3)

A instalação de câmaras de vigilância está sujeita a autorização do membro do Governo que tutela a força ou serviço de segurança requerente, precedido de Parecer da Comissão Nacional de Protecção de Dados, de acordo com o art. 3º. Se o referido Parecer for negativo, a autorização não pode ser concedida e havendo material gravado, ele será imediatamente destruído.

A autorização de instalação é requerida pelo dirigente máximo da força ou serviço de segurança, e pode também ser requerida pelo Presidente da Câmara (art. 5, n.º2)

Nos elementos que devem constar do pedido de autorização, apenas refiro os 2 mais relevantes para o tema:

d) Os fundamentos justificativos da necessidade e conveniência da instalação do sistema de vigilância por câmaras de vídeo;
e) Os procedimentos de informação ao público sobre a existência do sistema;


O art. 5, n.º 5 refere depois que a duração máxima da autorização será de um ano, sujeita a renovação.

Assim e de acordo com o art. 4.º, nos locais objecto de vigilância, com recurso a câmaras fixas, é obrigatória a afixação de informação sobre:
a) A existência e localização das câmaras de vídeo;
b) A finalidade;
c) A informação sobre o responsável pelo tratamento dos dados recolhidos.


A grande diferença entre esta Lei 1/2005 e a Lei 5/2002, está precisamente aqui. Na lei 1/2005, a vigilância é usada como meio de prevenção, de dissuasão de prática de eventuais crimes e, essa vigilância, decorre com o conhecimento das pessoas, do público.


Por outro lado, o art. 6, n.º 1 refere que a autorização para utilização de câmaras fixas inclui a utilização de câmaras portáteis.

E no n.º 4 do mesmo art. refere-se que, à utilização de câmaras portáteis é aplicável a legislação própria relativa às forças e serviços de segurança e a Lei 5/2002.
Destaco a LOPJ, aprovada pelo DL 275-A/2000, onde no art. 4.º, n.º2 se permite que “…podendo proceder à identificação de pessoas e realizar vigilâncias, se necessário, com recurso a todos os meios e técnicas de registo de som e imagem,…, nos termos do disposto no CPP e legislação complementar.” Se ficar registada a ocorrência de um crime, não há razão que obste à sua utilização como meio de prova.

O Art. 7.º refere os princípios atinentes à utilização das câmaras de vídeo
Em primeiro lugar (n.º1) a utilização de câmaras de vídeo rege-se pelo princípio da proporcionalidade. Isto implica em cada caso concreto a ponderação da idoneidade do meio utilizado, bem como o respeito pelo princípio da intervenção mínima. Ou seja, é necessário ponderar a finalidade pretendida e a necessária violação de direitos fundamentais, concretamente o direito à privacidade e à imagem.

Na decorrência do referido, os n.º 4, 5, 6 e 7 vêm dizer que
“É expressamente proibida a instalação de câmaras fixas em áreas que, apesar de situadas em locais públicos, sejam pela sua natureza, destinadas a ser utilizadas em resguardo.”

O n.º 5 diz que
”A autorização de utilização de câmaras pressupõe sempre a existência de riscos objectivos para a segurança e ordem públicas.”

E o n.º 6 refere que
“É vedada a utilização de câmaras de vídeo quando a captação de imagens e de sons abranja interior de casa ou edifício habitado ou sua dependência, salvo consentimento dos proprietários e de quem o habite legitimamente ou autorização judicial.”

E o n.º 7 refere que
“É igualmente vedada a captação de imagens e sons nos locais previstos no art. 2, n.º 1 quando essa captação afecte, de forma directa e imediata, a intimidade das pessoas, ou resulte na gravação de conversas de natureza privada.”

Por último o n.º 8 vem dizer que
“As imagens e sons acidentalmente obtidos, em violação dos n.ºs 6 e 7, devem ser destruídos de imediato pelo responsável do sistema.”

O art. 8.º tem importância porque trata da questão da gravação da prática de um crime, pelo que quando uma gravação registe a prática de factos com relevância criminal, a força ou serviço de segurança elaborará auto que remeterá ao MP.

O art. 9.º, refere que sem prejuízo do disposto no art. 8.º, isto é, quando se trata da gravação de factos com relevância criminal, as gravações efectuadas de acordo com a presente lei apenas podem ser guardadas um mês contado da data da respectiva captação.

O art. 10.º refere os direitos dos interessados, sendo que estes têm o direito de acesso e eliminação. Sendo que esses direitos podem ser limitados quando se verifique uma das situações previstas no n.º 2 (constituir perigo para a defesa do Estado ou para a segurança pública, seja uma ameaça ao exercício de direitos e liberdades de terceiros, ou prejudique investigação criminal em curso).

Em conclusão:
1 – finalidades de protecção e prevenção;
2 – necessária autorização prévia e parecer da CNPD;
3 – informação do público da utilização de sistemas de vigilância;
4– as imagens são guardadas durante um mês, a menos que tenham relevância penal e sejam aí usadas como meio de prova.
5 – princípio da proporcionalidade e intervenção mínima.



O DL 35/2004 por seu lado regula a actividade de segurança privada.

De acordo com o próprio Preâmbulo do diploma, os princípios definidores desta actividade são:
Prossecução do interesse público;
Complementaridade e subsidariedade face às competências desempenhadas pelas forças e serviços de segurança.

O art. 1.º refere, no seu n.º 2, o carácter subsidiário e complementar da actividade face à actividade das forças e dos serviços de segurança pública.
O n.º 3 diz que:
Para efeitos do presente diploma, considera-se actividade de segurança privada:
a) A prestação de serviços a terceiros por entidades privadas com vista à protecção de pessoas e bens, bem como à prevenção da prática de crimes;
b) A organização, por quaisquer entidades e em proveito próprio, de serviços de autoprotecção, com vista à protecção de pessoas e bens, bem como à prevenção da prática de crimes.
Na mesma linha, o art. 20.º, n.º 2 do Código do Trabalho considera lícita a utilização de meios de vigilância à distância.
Art. 20.º
(Meios de vigilância à distância)
1 – O empregador não pode utilizar meios de vigilância a distância no local de trabalho, mediante o emprego de equipamento tecnológico, com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador.
2 – A utilização do equipamento identificado no número anterior é lícita sempre que tenha por finalidade a protecção e segurança de pessoas e bens ou quando particulares exigências inerentes à natureza da actividade o justifiquem.
3 – Nos casos previstos no número anterior o empregador deve informar o trabalhador sobre a existência e finalidade dos meios de vigilância utilizados.
Ac. do STJ de 08-02-2006:
Finalidade da captação de imagens pela entidade patronal: a protecção dos bens do empregador; para evitar o furto de medicamentos. A CNPD autorizou a vigilância para esse fim. É um interesse legítimo. A protecção da segurança das pessoas e bens, enquanto finalidade especifica da recolha e tratamento de dados pessoais, tem em vista a prevenção da prática de crimes. A videovigilância com este objectivo deve ocorrer em locais onda haja o risco de delitos contra pessoas ou contra o património, e esses risco decorre de serem locais abertos ao público frequentados por pessoas anónimas sem possibilidade de qualquer prévio controlo de identificação. Não é o que acontece numa empresa onde a vigilância incide sobre os trabalhadores, que são facilmente identificados. Não há uma vigilância genérica e de natureza essencialmente preventiva; mas uma vigilância individualmente dirigida que elege todos e cada um dos trabalhadores como potenciais suspeitos da prática de crimes. Neste condicionalismo a videovigilância configura uma medida de polícia. Constitui uma intolerável intromissão na reserva da vida privada na sua vertente de direito à imagem. A utilização de câmaras de vídeo nestes termos é ilícita.

Por outro lado, o ac. do TR Lisboa de 03-05-2006:
“I – São provas nulas as imagens de vídeo obtidas sem o consentimento ou conhecimento do arguido, através de câmara oculta colocada pelo assistente no seu estabelecimento de gelataria, e que é o local de trabalho do arguido, e sem que estivesse afixada informação sobre a existência de meios de videovigilância e qual a sua finalidade.”
Este acórdão trata uma situação anterior ao DL 35/2004.
Voto de vencido do Desembargador Mário Morgado:”A prova obtida é válida nos termos do art. 167.º, n.º 1 do CPP, já que a captação de imagens realizada não ofende a integridade física ou moral do arguido, nem a sua dignidade ou intimidade, como não é ilícita nem integra o crime do artigo 199.º, n.º 2-a) do CP. ”


O art. 4.º refere-nos que determinadas entidades têm obrigatoriamente de adoptar um sistema de segurança privada, designadamente, o Banco de Portugal, as instituições de crédito e entidades financeiras, e ainda os estabelecimentos de restauração e de bebida, onde haja espaços destinados à dança…

A realização de espectáculos em recintos desportivos depende da condição de disporem de um sistema de segurança, nos termos e condições fixadas por Portaria.
O art. 6.º, n.º 5 refere ainda que “Os assistentes de recinto desportivo, no controlo de acesso aos recintos desportivos, podem efectuar revistas pessoais de prevenção e segurança…”.

O art. 13.º refere os meios.
Assim, o art. 13.º
(Meios de vigilância electrónica)
1 – As entidades …podem utilizar equipamentos electrónicos de vigilância com o objectivo de proteger pessoas e bens desde que sejam ressalvados os direitos e interesses constitucionalmente protegidos.
2 - A gravação de imagens e som feita por entidades de segurança privada ou serviços de autoprotecção, no exercício da sua actividade, através de equipamentos electrónicos de vigilância deve ser conservada pelo prazo de 30 dias, findo o qual será destruída, só podendo ser utilizada nos termos da legislação processual penal.
3 – Nos lugares objecto de vigilância com recurso aos meios previstos nos números anteriores é obrigatória a afixação em local bem visível de uma aviso com os seguintes dizeres, consoante o caso “Para sua protecção, este lugar encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão” ou “Para sua protecção, este lugar encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão, procedendo-se à gravação de imagem e som”, seguido de símbolo identificativo.

Também aqui se aplica subsidiariamente a Lei 67/98 relativa à protecção de dados, designadamente em matéria de direito de acesso, informação, oposição de titulares e regime sancionatório, de acordo com o disposto no art. 13.º, n.º4.
Pelo que, se aplicam aqui os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.


O art. 17.º refere o dever de colaboração entre estas entidades privadas e as forças de segurança em locais onde ambos actuem. Sendo que as entidades privadas devem colocar os seus meios humanos e materiais à disposição e sob a direcção do comando das forças de segurança.

O art. 19.º diz que estes profissionais ficam sujeitos ao dever de Segredo profissional, que apenas pode ser levantado de acordo com a legislação penal e processual penal.

Em conclusão:
1 Estas entidades privadas podem utilizar equipamentos electrónicos de vigilância com o objectivo de proteger pessoas e bens, bem como de prevenção à prática de crimes;
2 Há entidades em que tal vigilância é obrigatória;
3 Estas imagens devem ser guardadas durante 30 dias;
4 Findo esse prazo devem ser destruídas, a menos que tenham relevância criminal. aqui, as imagens servem como meio de prova em processo penal;
5 Afixação obrigatória do aviso “Para sua protecção, este lugar encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão” ou “Para sua protecção, este lugar encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão, procedendo-se à gravação de imagem e som”.



Assim, e também nesta lei, a finalidade da colocação de sistemas de vigilância passa pela protecção de pessoas e bens, bem como pela prevenção da prática de crimes. A função dissuasora.
Daqui decorre que a recolha de imagem e som não está direccionada para actos individuais mas para uma generalidade de pessoas.
Também aqui, há um dever de informação do público quanto à existência de câmaras.




E chegados agora ao que verdadeiramente interessa…ou seja, à Lei 5/2002, onde se trata dos registos de voz e imagem apenas com finalidades no âmbito do processo penal, ou seja, enquanto meio de obtenção de prova.


3 – O REGISTO DE VOZ E IMAGEM
A Lei 5/2002, de 11 de Janeiro

Então, a Lei 5/2002 estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira. Privilegia-se este tipo de criminalidade por ser aquele que carece de uma intervenção penal eficaz, ou melhor, uma justiça funcionalmente eficaz.
A criminalidade económico-financeira enquadra-se no campo do “direito penal secundário”. Esta é uma área de normatividade jurídico-penal que se vem expandindo, em razão da intensidade com que as condutas têm sido tuteladas.
Os bens jurídicos do direito penal secundário, são normalmente supra-individuais e relacionam-se com a actuação da personalidade do homem enquanto fenómeno social, em comunidade e em dependência recíproca.

O art. 1.º define o âmbito de aplicação da lei. Começando por dizer que estabelece um regime especial de recolha de prova quanto a determinados crimes que enumera.
Como se disse, esta lei constitui uma restrição aos direitos fundamentais à palavra e à imagem.
Assim, o art. 1.º
1 – Esta lei estabelece um regime especial de recolha de prova…relativa aos crimes de:
a) Tráfico de estupefacientes, nos termos do art. 21.º a 23.º e 28.º do DL 15/93, de 22 de Janeiro;
b) Terrorismo e organização terrorista;
c) Tráfico de armas;
d) Corrupção passiva e peculato;
e) Branqueamento de capitais;
f) Associação criminosa;
g) Contrabando;
h) Tráfico e viciação de veículos furtados;
i) Lenocínio e lenocínio e tráfico de menores;
j) Contrafacção de moeda e de títulos equiparados a moeda.
2 – O disposto na presente lei só é aplicável aos crimes previstos nas alíneas g) a j) do número anterior se o crime for praticado de forma organizada.
3 – O disposto nos capítulos II e III é ainda aplicável aos demais crimes referidos no art. 1.º da Lei 36/94, de 29 de Setembro.

Ou seja,
a) Corrupção, peculato e participação económica em negócio;
b) Administração danosa em unidade económica do sector público;
c) Infracções económico-financeiras cometidas de forma organizada, com recurso à tecnologia informática;
d) Infracções económico-financeiras de dimensão internacional e transnacional.

Por outro lado, o art. 6.º refere que
Art. 6.º
(Registo de voz e imagem)
1 – É admissível, quando necessário para a investigação de crimes referidos no artigo 1.º, o registo de voz e imagem, por qualquer meio, sem o consentimento do visado.
2 – A produção destes registos depende de prévia autorização ou ordem do juiz, consoante os casos.
3 – São aplicáveis aos registos obtidos, com as necessárias adaptações, as formalidades previstas no art. 188.º do CPP.

Assim, resulta da lei que a utilização deste novo meio de obtenção de prova está dependente da verificação cumulativa de três requisitos:
a) A existência de uma ordem ou autorização do juiz;
b) A circunstância de se estar a investigar um crime de catálogo;
c) A necessidade para a investigação da utilização desse meio de prova.


Aspectos comuns ao CPP e à Lei 5/2002:
1 – As formalidades;
De acordo com o art. 6.º n.º 3 aplica-se o art. 188.º do CPP, com as necessárias adaptações (é lavrado auto, levado ao conhecimento do juiz “imediatamente”…).
2 – Desnecessidade de consentimento do visado;
Parece até redundante…se houvesse consentimento não havia necessidade de prever este regime, porque não haveria crime.
3 – Prévia intervenção do Juiz.
Vem prevista no art. 6.º, n.º 2.
Nota: não remete para o art. 187.º, n.º 2 do CPP, mas parece ser de entender que, na fase de inquérito, tal como nas escutas telefónicas, deve haver promoção do MP, ou pelo menos a intervenção do OPC.

Nota: não há uma remissão para o art. 187.º n.º 3 do CPP, todavia entende-se que se podem colher imagens das conversas entre o arguido e o seu defensor, mas isso não pode envolver a gravação da voz.

Aspectos específicos da Lei 5/2002 referentes ao registo de voz e imagem:
1 – Meio através do qual se efectua o registo.
O art. 6.º diz qualquer meio
Os art.s 187.º e 190.º do CPP aparentemente limitam os meios. De acordo com o disposto nas referidas normas, tais meios são o telefone ou qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, bem como a intercepção das comunicações entre presentes (alteração de 1998).
Neste aspecto, a lei 5/2002 é mais ampla porque diz qualquer meio. Mas na prática as diferenças acabam por não ser muitas, uma vez que o art. 190.º do CPP procede a um alargamento.
Contudo, será de entender que o CPP não permite, por si, a gravação de imagem (mas apenas permite o registo da palavra/voz). E a Lei 5/2002 permite o registo de voz e imagem, sendo certo que o registo de voz é necessariamente complementar do registo da imagem, ou seja, depende dele. O que esta lei trouxe de novo foi o registo de imagem, que até então não era permitido.
2 – O catálogo de crimes.
Há a diferença terminológica .
Os crimes que nesta Lei 5/2002 não têm correspondência no art. 187.º do CPP, acabam por ser absorvidos pelo art. 187.º, n.º1- a) – crime punível com pena superior a três anos, por ex. a Lei 5/2002 refere o lenocínio e o lenocínio e tráfico de menores que não consta do catálogo do CPP, mas cuja moldura penal é de 6 meses a 5 anos (crime base).
Aqui o CPP é mais amplo – crimes puníveis com pena superior a três anos…
O art. 1.º, n.º2 da Lei 5/2002, restringe alguns casos à prática de crime de forma organizada – al. g) a j) do art.1, n.º2. Ou seja, se não houver forma organizada não pode haver registo de voz e imagem; novamente o lenocínio e lenocínio e tráfico de menores.
Mas, como é que os OPC, o MP ou o JIC sabem que se trata e criminalidade organizada sem efectuar tais registos?
Logo, também o CPP é aqui mais amplo, o que causa alguma perplexidade.
3 – A lei diz que este meio de obtenção de prova pode ser usado “quando se mostre necessário para a investigação”, o que aponta para uma maior permissividade do que o CPP onde refere “razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou prova”.



Levanta-se aqui uma questão:
O regime previsto para o registo de voz e imagem apenas exclui a ilicitude resultante da violação da voz e da imagem ou a sua força justificadora também se alarga à privacidade, permitindo, por exemplo “captar, fotografar, filmar, registar ou divulgar imagem das pessoas ou de objectos em espaços íntimos (art. 192, n.º1, al. b) do CP)”? Isto é, poderão as câmaras e os microfones ser instalados em espaços que constituam o domicílio de alguém?
1 – Carlos Almeida
Parece que não.
Procurando manter o equilíbrio entre as necessidades de defesa da sociedade e a salvaguarda dos direitos fundamentais, não se pode deixar de interpretar (?!?!?!) o art. 6.º no sentido de que ele apenas legitima a violação ao direito à imagem e à palavra falada. Isto por lado, porque se tratam de bens jurídicos autónomos e não existe na lei qualquer referência expressa à susceptibilidade de, por esta via, se invadir a privacidade, sem a qual não se pode admitir a lesão das dimensões formal e material deste bem jurídico, cuja densidade e relevância ultrapassam claramente as dos direitos à imagem e à palavra.
Por outro lado, não se concebe que a sua violação fique dependente apenas da mera existência de uma qualquer necessidade, não qualificada de investigação.
Mesmo que assim se não entendesse, não se podia valorar a prova por se ter violado o “núcleo essencial intangível da personalidade e, com isso, a dignidade humana.”

O ac. do TR Guimarães de 14-03-2005, segue a posição defendida por Carlos Almeida, e rejeita a posição seguida pelo ac. do TR Coimbra referido infra em 3.
Também neste sentido, o recente acórdão do TR Porto, de 22 de Março de 2006, de onde, no sumário, ressalta que “I – A recolha de provas através do registo de voz e imagem em lugares públicos sem autorização do visado (prevista na Lei 5/2002, de 11/Jan) tem de ser autorizada pelo juiz. II – Essa autorização só deve ser concedida quando estejam em causa um dos crimes referidos na dita Lei e seja impossível ou extremamente difícil obter prova por outro meio menos danoso para o direito à imagem e à reserva da vida privada.”. Também neste acórdão se remete para a posição defendida por Carlos Almeida.

2 – Mário Ferreira Monte
Parece que sim.
Tais direitos – voz e imagem - são verdadeiros bens jurídicos pessoais e expressão da personalidade, e são autonomamente tutelados, independentes da protecção da vida privada e da intimidade, pelo que, para aplicação do art. 6.º não há que fazer distinção entre tais direitos dentro e fora da privacidade/intimidade da vida privada.


3 – Ac. T.R.Coimbra de 23-04-2003 in CJ, t. II, pág. 43 e ss.
“Importa assim conjugar os diplomas e respectivos normativos que disciplinam esta matéria quais sejam o n.º 3 do art. 126º do CPP e o recente n.º1 do art. 6.º da lei 5/2002 aplicável ao caso atenta a data da entrada em vigor (10.02.02)…
Ora da conjugação referida ressalta agora que, nos crimes ora em apreço (sobre o enquadramento jurídico…) o registo de voz ou imagem, por qualquer meio, mesmo que tal constitua intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações não exige consentimento do visado, depende de prévia autorização ou ordem do juiz.
Afigure-se-nos assim que o legislador, com vista a maior eficácia no combate a criminalidade, sem descurar a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos constitucionalmente consagrados (no art. 26.º da CRP), em caso de conflito com direitos ou valores da mesma matriz, deposito no juiz a ponderação dos interesses em jogo permitindo a restrição contra as exigências (mínimas) de valor que, por serem a projecção da ideia de dignidade humana, constituem o fundamento (a essência) de cada preceito constitucional nesta matéria, …
Nesta perspectiva o regime estabelecido pela referida lei 5/2002 no que respeita ao registo de voz e imagem não podia ser mais restritivo do que o regime anterior proporcionado pelo art. 126 do CPP.
É que, não obstante, agora ser dispensável o consentimento do visado, o certo é que, pelo supra exposto, não se pode concluir que todo e qualquer registo de voz e imagem (art. 6 da lei 5/2002) depende de prévia autorização ou ordem do juiz, mas tão só aquele registo em que haja ofensa à integridade moral das pessoas (n.º 1 do art. 126.º do CPP) ou constitua intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações (n.º 3 do art. 126.º do CPP).”


Pequena nótula à alteração legislativa:
O art. 187.º, n.º 4 limita as escutas telefónicas a determinadas pessoas, arguido, suspeito ou pessoa que recebe ou transmite mensagem destinada ou proveniente do arguido e a vítima –se consentir.
O art. 187.º, n.º 6 passa a determinar que o juiz determina as escutas por um prazo máximo de 3 meses, mas que é renovável.
O art. 188.º, n.º3 refere que os OPC devem levar o auto e as fitas de 15 em 15 dias ao MP.





BIBLIOGRAFIA:

Medidas de combate à criminalidade organizada e económico financeira, CEJ, Coimbra Ed., 2004, pág. 77 e ss;
Sobre as proibições de prova em processo penal, Costa Andrade, Coimbra Ed., pág. 237 e ss.;
A utilização de sistemas de vídeo pelas forças e serviços de segurança em locais públicos, Amadeu Guerra, in Revista do MP, n.º 103, Jul/Set. 2005, pag. 39 e ss.
Comentário Conimbricense ao Código Penal, vol. I, art. 199.º, anotação do Dr. Costa Andrade, pag. ;
Deliberação n.º 61/2004 da Comissão Nacional da Protecção de Dados, in http://www.cnpd.pt/;
Parecer n.º 95/2003 da PGR, in DR – II, de 04-03-2004;
Ac do TR Porto, de 22-03-06, in CJ, t. II, pág. 198 e ss., relator Guerra Banha;
Ac. do STJ, proc. 05s3139, de 08-02-2006, relator Fernandes Cadilha, in http://www.dgsi.pt/;
Ac do TR Lisboa, proc. 83/2006-3, de 03-05-2006, relator Carlos Sousa, in http://www.dgsi.pt/;
Ac. do TR Guimarães, proc. 263/05-1, de 14-03-2005, Relator Miguez Garcia, in http://www.dgsi.pt/;
Ac. TR Porto, proc. 0414638, de 27-04-2005, relator Élia São Pedro, in http://www.dgsi.pt/;
Ac do TR Guimarães, proc. 1680/03-2, de 29-03-2004, relator Maria Augusta, in http://www.dgsi.pt/;
Ac. do TR Coimbra de 23-04-2003, in CJ, t. II, pág. 43 e ss, relator João Trindade;
Ac. do Tribunal Constitucional n.º 255/2002, in http://www.tribunalconstitucional.pt/.

Nota: a bibliografia tem carácter meramente indicativo e a sua ordem é totalmente aleatória.
Refiro apenas as mais relevantes, mas também consultei o CP e CPP anotados quer de Simas Santos e Leal Henriques, quer de Maia Gonçalves.