domingo, março 25, 2007

Declarações do assistente e das partes civis

(texto de Marisa Ribeiro, para a sessão de 19 de Dezembro de 2006)

Antes de mais, será importante delimitar conceitos: o conceito de lesado, partes civis, ofendido e assistente. Assim:

O lesado, enquanto tal, sendo aquele que sofreu danos com o crime não pode constituir-se como assistente, mas apenas como parte civil para efeitos de deduzir pedido de indemnização civil (art. 74º, nº 1 do CPP).

Com a dedução do pedido de indemnização civil, surgem as partes civis que assumem a posição de partes na acção civil conexa com a criminal, e são:
- o lesado, que ainda não se tenha constituído ou não possa constituir-se assistente, e que equivale ao autor na acção de condenação correspondente no processo civil (ex. o hospital que tenham socorrido a vítima do crime), e
- os demandados, contra os quais é deduzido o pedido, e que são os réus e os terceiros intervenientes na acção civil correspondente (ex. a seguradora para a qual o arguido tenha transferido a sua responsabilidade civil) – art. 73º do CPP

Só se coincidentemente o lesado também for ofendido, é que se poderá constituir como assistente.

O ofendido, enquanto titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (art. 113º, nº 1 do CP) é mero participante processual, não é sujeito processual enquanto não se constituir assistente.

No entanto, o ofendido com direito a constituir-se assistente não é qualquer pessoa prejudicada ou lesada pelo crime, mas somente o titular do interesse violado ou posto em perigo pelo crime, atento o bem jurídico protegido (o qual deverá ser identificado a partir da interpretação do tipo legal em causa).
Atento o artigo 68º, nº 1 do CPP, o conceito de assistente passa, naturalmente, pelo de ofendido, mas vai mais além, pois além do ofendido maior de 16 anos (al. a), estão legitimadas para obter o estatuto de assistente:

- as pessoas de cuja queixa ou acusação particular depende o procedimento (al.b)

- as pessoas com “legitimidade substitutiva”, no caso de morte do ofendido sem que este tenha renunciado à queixa (al. c)

- as pessoas com “legitimidade representativa”, no caso de o ofendido ser menor de 16 anos (al. d)

- qualquer pessoa, inclusivamente pessoas colectivas, em determinados tipos de crime: acção penal popular (al. e).
Quanto às declarações do assistente e das partes civis propriamente ditas

As declarações do assistente e das partes civis ficam condicionadas aos factos de que tenham conhecimento directo e que constituam objecto ou tema da prova, e só excepcionalmente sobre factos de que tenham apenas conhecimento indirecto (arts. 128º, nº 1 e 129º, ex vi 145º, nº 3 do CPP).
Assim, a inquirição só poderá recair sobre factos que, sendo do conhecimento directo do assistente ou das partes civis, se perfilem como juridicamente relevantes para o determinar da existência ou não do crime, da punibilidade ou não do agente, do seu grau de culpabilidade e, a haver pedido cível formulado, para a fixação do quantum indemnizatório.
Podem ser tomadas declarações ao assistente e às partes civis (art. 145º, nº 1 do CPP):
∗ a requerimento próprio
∗ a requerimento do arguido
∗ oficiosamente, sempre que a autoridade judiciária o entender conveniente

Em inquérito e na instrução

Há que formalizar por escrito as declarações prestadas (em texto claro e fidedigno), respeitando os formalismos dos arts. 94º, 95º, 99º e 100º do CPP).
Se houver recusa da assinatura, deve ser feita indicação dessa recusa e dos seus motivos (art. 95º, nº 3 do CPP).
Nota: As partes civis não podem participar no debate instrutório, mas os assistentes podem (art. 289º, nº 1 do CPP).

Na fase de julgamento (art. 346º e 347º do CPP)

As perguntas só podem ser feitas directamente pelos membros do tribunal (qualquer dos juízes e dos jurados), daí que:
∗ ao MP
∗ ao defensor do arguido
∗ aos advogados das partes civis
∗ ao advogado do assistente

não resta outra possibilidade que não seja a de requerer ao presidente a formulação de perguntas.

Podem ser mostrados ao assistente e às partes civis quaisquer pessoas, documentos ou objectos relacionados com o tema da prova, bem como peças anteriores do processo, desde que sejam respeitados os artigos 356º e 357º referentes à leitura permitida de autos e declarações (produzidos anteriormente) na audiência de julgamento (art. 345º, nº 3, “ex vi” art. 346º, nº 2 e 347º, nº 2 do CPP).

De notar que a presença em audiência das partes civis não constituirá uma regra, pois nos termos do art. 80º do CPP apenas são obrigados a comparecer no julgamento quando tiverem de prestar declarações a que não puderem recusar-se.
Independentemente da fase processual

Mesmo perante autoridade judiciária, a prestação de declarações pelo assistente e pelas partes civis não é precedida de juramento (art.145, nº 4 do CPP), ao contrário das testemunhas (art. 91, nº 1, 132º, nº 1, al. b) do CPP).

Tais declarações serão sempre livremente apreciadas e valoradas, nos termos e no quadro do princípio genérico da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do CPP.

No entanto, nos termos do artigo 145º, nº 2 do CPP, o assistente e as partes civis estão sujeitos ao dever de verdade material, e a responsabilidade penal pela sua violação, podendo incorrer no crime de falsidade de declarações, previsto no art. 359º, nº 2 do CP e punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

Ao serem ouvidos como declarantes sem serem advertidos de que ficam sujeitos ao dever de verdade e a responsabilidade penal pela sua violação é cometida mera irregularidade processual, a arguir na audiência em que se verificou (art. 118º e 123º do CPP), porquanto tal vício não está configurado na lei como nulidade, nem faz parte do elenco das nulidades insanáveis (art. 119º do CPP) ou sanáveis (art. 120º do CPP).

Quanto ao mais, a prestação de declarações pelo assistente e pelas partes civis fica sujeita ao regime de prestação da prova testemunhal (nomeadamente, quanto às regras da inquirição previstas no art. 138º do CPP), salvo no que lhe for manifestamente inaplicável e no que a lei dispuser diferentemente.

O que o artigo 145º, nº 3 do CPP prevê é que não se aplique ao assistente e às partes civis o que, por o serem, não deva aplicar-se o que é aplicável às testemunhas. Isto é, que se distingam as suas qualidades ou posições processuais.

Na mesma linha de pensamento se explica o impedimento do assistente e das partes civis para poderem depor como testemunhas no âmbito do processo concreto em que tenham aquela qualidade (art. 133º, nº 1, al. b) e c) do CPP).

O assistente está impedido de depor como testemunha por ser interessado no desfecho concreto do processo. É, pois, esta posição interessada que dita o impedimento, dado o seu estatuto especial.

O impedimento do assistente deriva, assim, da sua qualidade de sujeito processual, incompatível em alguns aspectos com o estatuto de testemunha, uma vez que representando um interesse particular no processo, não pode ser equiparado a quem, em princípio, é alheio a ele.

Após a constituição formal de uma pessoa como assistente, as suas declarações não são consideradas, em termos de regime processual, do mesmo modo que as declarações prestadas por uma testemunha.

Daí que o art. 133º, nº 1, al. b) do CPP estabeleça que estão impedidos de depor como testemunhas as pessoas que se tiverem constituído assistentes, a partir do momento da sua constituição.

No que toca às declarações prestadas em audiência de julgamento, estas, no modo de produção, não estão submetidas ao mesmo regime processual da prestação de testemunho, não estão submetidas ao chamado “interrogatório cruzado”.
A constituição formal de uma pessoa como sujeito processual implica, por um lado, o reconhecimento de um interesse na causa e consequentemente o reconhecimento de um interesse na prova produzida. Pelo que não pode ser um objecto do contraditório, mas sim um sujeito, processualmente interessado, do debate contraditório.
Daqui decorre que, em princípio, o conhecimento de declarações prestadas pelo assistente em fase processual anterior só pode, em audiência de julgamento, resultar de uma leitura, se admissível (nos termos que falaremos de seguida), e não de prestação de testemunho.

A jurisprudência tem entendido que a audição de um assistente como testemunha não constitui nulidade, mas unicamente uma irregularidade, que fica sanada se não for arguida em devido tempo. (Ac. STJ de 10/12/1997, Proc. nº 1038º/97 e Ac. STJ de 15/01/1997, Proc. nº 1123/97)

Quanto às partes civis, também devido ao seu especial posicionamento no processo em razão de interesses imediatos e pessoais no respectivo desenvolvimento, encontram-se igualmente impedidas de depor como testemunhas, pelo que também em relação a elas não é permitido o contra-interrogatório.

No entanto, o alcance desse impedimento, previsto no art. 133º, nº 1, al. c), é discutido na jurisprudência:

- Por um lado, o Ac. STJ de 10/10/2001 (Proc. 1949/01-3ª Secção): Considera que a proibição do 133º, nº 1, al. c) só pode ser entendida com o alcance de se limitar às situações em que as partes civis se apresentam a deduzir pedido contra o próprio arguido a que os factos respeitam, ou seja, as partes civis, só porque o são, não estão impedidas de testemunhar, mas apenas o estão relativamente aos factos que tenham a ver com o arguido visado, pois as declarações das partes civis não assumem relevo processual penal.

- Por outro lado, os Acórdãos do STJ de 15/02/1995 (CJ 1995, Tomo III, p. 205 ss) e de 11/12/1996 (BMJ 462, p. 299 ss.): Consideram que quando no artigo 133º, nº 1, al. c) do CPP se fala em “partes civis”, não pode deixar de referir-se aos lesados meramente civis, àqueles que não são os ofendidos nos crimes imputados ao arguido, os que não são titulares dos bens jurídicos afectados pela conduta do agente.
Ainda que tenha formulado pedido cível e, por isso, seja “parte civil”, o ofendido não fica impedido de depor como testemunha por o referido preceito abranger os casos em que se está perante lesados meramente civis.

Concordamos com esta posição, pois se não se entendesse assim, se o ofendido não deduzisse pedido cível, poderia depor como testemunha, mas tal já não poderia ocorrer se viesse a deduzir o pedido de indemnização. A lei não pode permitir este tipo de interpretação.
Recusa de parentes e afins

O artigo 134º do CPP parece ser também um artigo previsto para a prova testemunhal que se aplica ao assistente e às partes civis.
Pelo que se a entidade competente não fizer a advertência que lhes é lícito recusar a prestação de declarações, ou não a fizer constar da acta, ficam as declarações prestadas feridas de nulidade sanável, dependente de arguição em momento determinado – arts. 134º, nº 2 e 120º nº 1 e nº 3 do CPP. (Ac. STJ de 20/11/1996, Proc. nº 47171)

Não queria deixar de tecer algumas considerações quanto à possibilidade recusa do assistente por ter uma relação familiar com o arguido:
Quando estamos perante um crime que está ligado a especiais relações pessoais (entre agente e vítima, por exemplo), este especial tipo de relacionamento pode fundamentar uma recusa de prestação de declarações.

Se estivermos, como muitas vezes acontece, perante crimes em que o ofendido assume uma primordial relevância para a prova dos factos, dificilmente poderá o MP provar os factos contra (ou sem) a vontade do ofendido.

Se este se constituir assistente, deixa de poder ser testemunha, tornando-se um sujeito processual activo e interessado no desenvolvimento concreto do processo.

Depois desse momento não fará muito sentido que o assistente não queira intervir, ou que a “principal testemunha” não queira assumir tal qualidade, recusando-se a depor ao abrigo do art. 134º do CPP, contrariando a sua função no próprio processo que é a de colaborador do MP.

Poderia esta situação configurar-se num caso em que a equiparação ao regime de prestação da prova testemunhal lhe é manifestamente inaplicável?

Não nos parece, uma vez que os valores familiares tutelados com essa possibilidade de recusa não deverão ter de ceder face à finalidade do processo, enquanto busca da verdade material.

Sem dúvida que dessa recusa poderá resultar uma dificuldade acrescida para o MP na recolha da prova, mas este não actua exclusivamente no interesse do assistente (que entretanto deixou de colaborar) porquanto no processo penal se pretendem realizar interesses supra-individuais.

Consideramos, por isso, que o art. 134º do CPP tem plena aplicação quanto aos assistentes.

Mesmo quando estão em causa as partes civis será este o artigo que deverá ser observado. Não tem aplicação o artigo 618º do CPC porque quanto ao âmbito processual rege o processo penal, não o processo civil.

Do que ficou dito decorre que na audiência de julgamento não são permitidas leituras de declarações de assistente ou partes civis que se tenham validamente recusado a depor (art. 356º nº 6, “ex vi” art. 145º, nº 3 do CPP).
Leitura de declarações na audiência de julgamento (art. 356º do CPP)

Atento o art. 355º do CPP, a produção da prova que deva servir para fundar a convicção do julgador tem de ser a prova realizada na audiência e segundo os princípios próprios de um processo de estrutura acusatória (consagrado no art. 32º, nº 5 da CRP): os princípios da imediação, da oralidade e do contraditório na produção dessa prova.

O que significa que toda a derrogação de qualquer um destes princípios só pode ser afirmada como excepção, justificada por um determinado circunstancialismo e regulada segundo um princípio de concordância prática.

O regime de leitura de declarações do assistente e das partes civis está previsto no art. 356º do CPP, segundo o qual a leitura de declarações destes participantes processuais é admitida:

1) Para suprir a ausência da pessoa declarante na audiência de julgamento
(art.356º, nos 1, 2 e 4 do CPP)

Podemos estar perante três tipos de circunstâncias:

1.1. Leitura de declarações recolhidas segundo um Princípio de aquisição antecipada de prova (art. 356º, nº 1, al. a) e nº 2, al. a) do CPP)

Neste âmbito, cabem as chamadas declarações para memória futura (arts. 271º, 294º e 320º do CPP) e também, sendo embora mais excepcionais, os casos de precatórias legalmente admitidas (art. 318º do CPP) e de tomada de declarações no domicílio (art. 319º do CPP).
Para que seja admitido o recurso a esta forma de produção antecipada de prova é essencial a existência de um juízo de prognose (de previsibilidade) quanto a uma impossibilidade (futura) de o declarante estar presente na audiência de julgamento ou, eventualmente, subsistir receio de o declarante não ter as faculdades necessárias para prestar declarações, no momento da audiência de julgamento.

Esta antecipação de prestação de depoimento pode ser realizada:

Dentro da fase de julgamento (após o início formal desta fase, mas antes da audiência)
No caso de as declarações deverem ser tomadas após o despacho que designa a data da audiência de julgamento, a prestação de declarações para ser tida em conta na audiência, é realizada exactamente nos mesmos termos em que se procederia se se estivesse naquela audiência (cfr. art. 318º, nº 2 a 5 do CPP), existindo obrigatoriamente contraditório no momento em que são recolhidas as declarações.

Em fase anterior à do julgamento (em inquérito ou na instrução)
A produção de prova é feita segundo regras muito semelhantes às regras de produção de prova que valem para a audiência de julgamento, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta em julgamento.
No entanto, nestas fases não há uma obrigatoriedade de contraditório, mas uma possibilidade de o exercer.
O STJ (BMJ 435, p. 626 ss.) veio já admitir a leitura, na audiência de julgamento de declarações recolhidas sem ter havido prévia convocação de outros sujeitos processuais, aceitando um regime de contraditório diferido.

O Dr. Damião da Cunha (in “O regime processual de leitura de declarações na audiência de julgamento”, RPCC 7 (1997), p. 403 ss.) critica esta decisão, defendendo que a não convocação deveria ter levado à nulidade de tal aquisição antecipada de prova, pois que uma coisa é haver uma possibilidade de contraditório, de que um sujeito processual não faz uso, por sua responsabilidade, outra coisa é o contraditório ser, de antemão negado no próprio momento em que a prova pessoal está a ser produzida, e porventura onde o contraditório é mais eficaz.
E nessa medida tem de ser, necessariamente, dada a possibilidade de participação contraditória aos sujeitos processuais.

O regime de aquisição destas declarações, independentemente da fase processual em que se verifique, tem aspectos comuns:

a) A produção de prova é realizada, sob a direcção de um juiz;

b) O modo de produção de prova rege-se pelo princípio da contraditoriedade, com necessidade de indicação prévia a todos os sujeitos processuais, do objecto e finalidade da diligência e possibilidade de presença e intervenção dos mesmos;

c) As declarações prestadas com as formalidades descritas são depois reduzidas a escrito.

Esta aquisição antecipada de prova não é uma mera forma de conservação da prova que estaria em riscos de se perder, mas um verdadeiro direito que aos sujeitos processuais é conferido de garantir aquela prova.

No entanto, como a finalidade desta diligência visa a audiência de julgamento, parece que o MP não poderá a ela recorrer, através de requerimento, se não existir já um arguido constituído no processo.

Com base nestes pressupostos é possível equacionar a leitura deste tipo de declarações. No entanto, o facto de ter sido admitida a antecipação da prova, não significa necessariamente que seja admitida a sua leitura na audiência de julgamento.

Isto porque, como já se referiu, a decisão de admissão da sua produção assenta num juízo de prognose quanto à impossibilidade de produção oral de declarações na audiência e ainda num juízo de prognose de tais declarações poderem configurar-se como relevantes para a descoberta da verdade.

Falhando, pois, a prognose, e verificando-se a possibilidade de presença do declarante, aquela produção antecipada perderá sentido por desnecessidade.

A admissão da leitura deverá ainda obedecer às regras gerais de produção de prova em audiência de julgamento, podendo estar sujeita a regras de admissibilidade (art. 340º, nº 3 e nº 4, als. a) e c) do CPP) e devendo a leitura corresponder à ordem de produção de prova prevista no art. 341º do CPP.
1.2. Leitura de declarações em homenagem a um Princípio de conservação de prova (art. 356º, nº 4 do CPP)

É admitida a leitura de declarações prestadas por pessoa que não compareça em audiência de julgamento, em razão de falecimento, anomalia psíquica ou impossibilidade duradoura, desde que aquelas declarações tenham sido prestadas perante um juiz ou perante o MP.

Se na hipótese anterior eram visíveis alguns desvios aos princípios da produção de prova, maiores o serão no presente caso.

Num processo de estrutura acusatória como o nosso, é na audiência de julgamento que se deverá concretizar um contraditório pela prova. Há por isso uma maior necessidade de valoração crítica da leitura destas declarações, sobretudo quando prestadas perante o MP, pois corre-se o risco de a concessão deste poder ao MP poder consubstanciar uma quebra na paridade face ao arguido.

Pois, desta forma, o MP pode introduzir em audiência de julgamento tais declarações (prestadas só perante ele), além de o arguido só poder contraditar o conteúdo dessas declarações, e não a pessoa que as prestou, ou as circunstâncias em que a declaração foi prestada. O mesmo já não se verifica quando tenham sido prestadas perante um juiz, pois nesse caso, arguido e MP dispõem exactamente de um poder idêntico (o de provocar um contraditório sobre a prova).

O Dr. Damião da Cunha (idem) sugere dois elementos que poderão contribuir para atenuar o eventual desequilíbrio que, desta faculdade concedida ao MP, pode decorrer:
– este poder só estar à disposição do MP no caso de impossibilidade absoluta de a prova poder ser adquirida por outra via.
Não se deve aceitar a leitura de declarações deste tipo quando a tomada de declarações poderia ter sido obtida por via de um contraditório directo, através da aquisição antecipada de prova, referida há pouco.
– não haver possibilidade de “delegação” da tomada de declarações.

A permissão de leitura deste tipo de declarações não se basta com a impossibilidade de presença física dos declarantes, acresce a necessidade de tais declarações terem sido produzidas perante uma autoridade judiciária e, por isso, produzidas segundo uma forma solene e cautelosa.

Quanto à concretização do conceito “impossibilidade duradoura”:

- Ac. STJ de 23/03/2000 (CJ 2000, Tomo II, p. 230): a impossibilidade duradoura não pode identificar-se com a ausência em parte incerta, pois esta pode representar não uma impossibilidade, mas apenas uma dificuldade de notificação e comparência.
- Aparentemente, em sentido contrário, Simas Santos (CPP anotado, em anotação ao art. 356, p. 319) refere que a noção de impossibilidade duradoura deve ser preenchida atendendo às regras e prazos da realização do julgamento, devendo certamente ser havida como duradoura a impossibilidade de comparência em tempo útil, considerando tais regras e tempos.
1.3. Leitura de declarações em resultado da aceitação de um Princípio de consenso entre os sujeitos processuais (art. 356º, nº 2, al. b) e nº 5 do CPP)

O acordo entre os sujeitos processuais visa permitir uma leitura que seria proibida, e não derrogar os princípios indisponíveis referentes à prova, que não podem ser preteridos por consenso.
Esta possibilidade é dirigida a uma ideia de celeridade e economia processual.
Admitida e, consequentemente, realizada a leitura das declarações (realizadas perante juiz, MP ou OPC), não pode haver retractação do consentimento, como também a valoração que venha a ser feita daquele depoimento não está na disponibilidade dos sujeitos processuais.
É também exigida a realização do contraditório quanto ao conteúdo daquelas declarações.
O Tribunal Constitucional (Ac. nº 1052/96 de 10/10/96) já se pronunciou sobre os artigos 356º nos 2, al. b) e 5 considerando que não existe qualquer inconstitucionalidade na necessidade deste acordo (entre MP, arguido e assistente), por não implicar uma restrição inadmissível das garantias de defesa do arguido, traduzindo-se, ao contrário, numa linha de concretização do Princípio geral sobre a produção de prova em audiência constante do artigo 355º, nº 1 do CPP, o qual visa essencialmente a garantia da posição processual do arguido.

2) Quando a pessoa declarante está presente na audiência de julgamento
(art. 356º, nos 3, 2, al. b) e 5 do CPP)

Nos termos do art. 356º, nº 3 do CPP, podem ser lidas, a requerimento de um dos sujeitos processuais ou oficiosamente, as declarações anteriormente prestadas perante juiz (e não perante o MP):
a) na parte necessária ao avivamento da memória, para suprir lacunas por parte da pessoa que preste declarações;
b) quando existirem contradições ou discrepâncias sensíveis entre as realizadas anteriormente e as prestadas em audiência, para averiguar da credibilidade das declarações prestadas em audiência de julgamento.

Por acordo entre os sujeitos processuais, e mesmo que os declarantes estejam presentes na audiência de julgamento, podem ser lidas as declarações anteriormente prestadas perante qualquer entidade processual penal (juiz, MP, ou OPC) – art. 356 nos 2, al. b) e 5 do CPP.

Independentemente de qual o motivo que legitime a leitura das declarações, é necessário que as declarações sejam efectivamente lidas na audiência e, consequentemente, sejam submetidas ao debate contraditório. O CPP exige que se verifique um verdadeiro exame das provas.
A jurisprudência vem sancionando com a nulidade, na fundamentação da prova, o processo em que não se verifique a efectiva leitura em audiência de julgamento (Ac. STJ de 11/03/93, Proc. nº 42994).
Designadamente, quando estejam em causa declarações para memória futura, há acórdãos que penalizam a decisão que utilizou esta prova proibida com nulidade insanável por violação dos princípios do contraditório, da oralidade, da imediação e da publicidade – arts. 32º, nº 5 CRP e 125º e 355º do CPP. (Ac. STJ de 05/06/1991, BMJ 408, p. 405 e Ac. RC de 06/04/2005, CJ 2005, Tomo II, p. 44)

Para além disso, o art. 356º, nº 8 do CPP exige, sob pena de nulidade (sanável, ao abrigo do art. 120º, nº 1 e 3 do CPP) que qualquer leitura de declarações seja consignada em acta, não só no que se refere à permissão de leitura, mas também do fundamento legal em que assentou tal permissão (Ac. STJ de 11/12/1997, CJ 1997, Tomo III, p. 255). O que permite um controlo, por parte do tribunal de recurso dos fundamentos da leitura e da valoração que pode decorrer da mesma.

As prerrogativas de inquirição

Como articular a prerrogativa do assistente prestar declarações por escrito com a acareação? O assistente, porque não é testemunha, tem de estar presente? Será que a natureza da acareação impede a aplicação daquela prerrogativa?

É certo que a acareação consiste no confronto entre as pessoas que prestaram declarações contraditórias, tendo por finalidade esclarecer depoimentos divergentes sobre o mesmo facto.
No entanto a finalidade das prerrogativas previstas no art. 624º do CPC é subtrair as pessoas referidas, dada a sua qualidade, ao incómodo, encargo, ou mesmo à humilhação de um interrogatório na presença de outros intervenientes processuais. Ora, será numa acareação em que isso mais facilmente poderá acontecer. Não faria sentido que se retirasse deste meio de prova aquela prerrogativa em toda a sua extensão.
A Relação de Coimbra já decidiu que devem ser especificados os factos sobre os quais se pretende o depoimento, dando-lhe a possibilidade de primeiro depor por escrito, depois pedir, se for caso disso, um primeiro esclarecimento ou, se se entendesse tal necessário, justificando tal necessidade, decidir pela sua presença.
Daí que tendo o assistente a prerrogativa de prestar declarações por escrito, só deve admitir-se a sua admissão em audiência no tribunal se se mostrar necessário para completo esclarecimento do caso e se decida pela sua presença, justificando-se devidamente essa necessidade.
(Ac. RC de 17/02/1999, CJ 1999, Tomo I, p. 52 ss.)

Concordamos pois, caso contrário, ficaria ao arbítrio de quem dirige o processo, ou mesmo de qualquer interveniente processual, a possibilidade ultrapassar aquela prerrogativa legalmente consagrada, designando ou requerendo uma acareação, tanto mais que o artigo 146 do CPP apenas exige que esta se afigure útil à descoberta da verdade.
Se ao assistente em processo penal, é aplicável o regime de prestação da prova testemunhal (art. 145º, nº 3 do CPP) e se a esta se aplicam todas as prerrogativas estabelecidas na lei (art. 139º do CPP), não haverá dúvidas de que a prerrogativa estabelecida no art. 624º do CPC é aplicável ao assistente.
Não se vê, pois, qualquer razão válida para que ao assistente não se aplique tal prerrogativa só porque não é testemunha.
Quando as declarações do assistente são o único meio de prova?

Como já se referiu ao assistente é reconhecido um interesse processual próprio na definição do direito no caso concreto, pelo que a sua possível falta de isenção e distanciamento em relação à causa deve ser tida em consideração.

A Relação de Lisboa (Ac. de 05/11/2003, Proc. 4459/03-3 3ª Secção), por exemplo, já decidiu que a condenação por crime de injúrias feitas pelo telefone não pode assentar apenas na credibilidade que merece ao julgador as declarações da assistente, face ao silêncio do arguido perante as perguntas do mandatário daquela, não podendo este comportamento prejudicá-lo, o que constitui uma excepção à regra da livre apreciação da prova fixada no art. 127º do CPP.

Mas e o que dizer dos casos em que o único ofendido/assistente é igualmente a única testemunha presencial dos factos? Se admitirmos a solução daquele acórdão em todos os casos, corre-se o risco de ficarem sem punição muitos factos ilícitos praticados por agentes quando estes não deixam outras provas, e/ou o praticam em locais isolados ou privados, o que redundaria na inutilidade da incriminação.

Quando pode ser indeferido o pedido do assistente para ser ouvido em julgamento?

O tribunal deve oficiosamente ou a requerimento das partes ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure essencial à descoberta da verdade e à boa decisão da causa. O que significa que no art. 340º, nº 1 está expresso um poder vinculado do tribunal, de exercício obrigatório.

Assim, deve ser anulado o julgamento em que se indeferir o pedido formulado pelo assistente para aí ser ouvido, se a decisão se fundou em causas diferentes das que figuram no art. 340º, nº 3 e 4 do CPP, excepção àquele dever legal. (Ac. de 04/12/1996, BMJ 462, p. 286)

Podem as partes civis prestar depoimento de parte?

A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil quantitativamente e nos seus pressupostos, porém, processualmente é regulada pela lei processual penal. (Ac. STJ de 12/01/1995, CJ 1995, Tomo I, p. 181)

Por isso não há fundamento legal para ser requerido que demandante ou demandado prestem depoimento de parte, pois o CPP apenas prevê a figura da confissão do arguido, nomeadamente no art. 344º do CPP. Podem-lhes ser tomadas declarações, nos termos do art. 145º e 347º do CPP.

Quanto ao âmbito do depoimento indirecto

O assistente ou as partes civis não podem ser “testemunhas-de-ouvir-dizer” (testemunha que ouviu dizer a outra testemunha), pois, de facto, não são testemunhas. Se, nas suas declarações se referirem ao que ouviram dizer a outra pessoa, o mecanismo que dispõem é indicar a pessoa em causa como testemunha.

Sendo certo que o art. 129º, nº 1 do CPP admite a prestação de depoimento indirecto sobre o que se ouviu dizer a pessoa que por falecimento, anomalia psíquica ou impossibilidade duradoura não tenha comparecido na audiência de julgamento.

Por outro lado, não parece ser configurável um testemunho sobre o que se ouviu dizer ao assistente, enquanto sujeito processual, pois quanto a este decisivas são as declarações prestadas na audiência de julgamento.

Quanto às partes civis, a Relação de Coimbra (Ac. RC de 25/05/1994, CJ 1994, Tomo III, p. 52 ss.) já decidiu que se a pessoa através da qual a testemunha teve conhecimento de factos da parte penal era o lesado/parte civil, em princípio, nada impede a requisição do mesmo pois os impedimentos para depor como testemunha (art. 133º, nº 1, al. c) do CPP), não estão incluídos no artigo 129º do CPP, o qual permite ao juiz chamar as pessoas de quem se ouviu dizer.

Isto porque o processo penal visa a verdade material e o depoimento da pessoa que disse tem como finalidade o apuramento da credibilidade do depoimento da pessoa que ouviu dizer.
Questão final

Sobre esta matéria queria destacar uma questão que me parece interessante e é por isso com ela que termino esta exposição, para que “querendo” os colegas possam manifestar a solução que lhes pareça mais correcta, e que é a seguinte:

Que dizer quando admitido o ofendido e demandante civil a prestar declarações em julgamento, estes disserem o que ouviram directamente da boca do arguido estando este presente, assistido pelo seu defensor, e tendo optado pelo silêncio, no uso de um direito legalmente reconhecido?

Pensamos num caso em que o arguido lhes contou factos que o incriminam por exemplo, e não num caso em que quem está a prestar as declarações ouviu o arguido a injuriar o ofendido, por exemplo, pois que aqui não há dúvida que têm conhecimento directo dos factos criminosos.

O Ac. do STJ de 30/07/1998 (Proc. nº 366/98) considera que não estamos neste caso perante depoimento indirecto proibido.

O Tribunal Constitucional no Ac. 440/99 de 08/07/1999, a propósito da valoração dada a depoimentos de testemunhas que relataram conversas informais que tiveram com um co-arguido que, chamado a depor em audiência se remeteu ao silêncio, no uso de legal direito, deliberou: "Há, assim, que concluir que o art. 129.º, n.º 1 (conjugado com o art. 128.º, n.º 1), do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas, que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no uso do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido. Não o atinge, ao menos na dimensão em que essa norma foi aplicada ao caso.

Neste sentido vai o Ac. do STJ de 20/04/2006 (Proc. nº 363-06-5ªSecção) que defende o seguinte: “Se a impossibilidade de ouvir a fonte citada pelas testemunhas de ouvir dizer resultar do direito ao silêncio a que se remeteram os arguidos, que assim nada declararam sobre os factos versados nos depoimentos, estando presentes na audiência, essa impossibilidade não é substancialmente diferente da situação prevista na lei de impossibilidade de a pessoa indicada ser encontrada; e se a isso acrescer que a prova dos factos não resultou em exclusivo dos referidos depoimentos indirectos, pois foi mais um elemento (não decisivo) no conjunto das provas produzidas, e que o tribunal agiu com a prudência que a impossibilidade de ouvir a fonte impunha e de acordo com as regras da lógica e da experiência, será de concluir que a valoração dos depoimentos nesses termos relativos não ofendeu o disposto no art. 129.º do CPP, em correlação com os direitos dos arguidos, nomeadamente o direito de defesa consignado no art. 32 , nos 1 e 5 da CRP”.

À primeira vista parece descabido admitir solução diferente, e que o assistente e as partes civis não possam prestar declarações sobre todos os factos que viram e ouviram.

No entanto, esta admissibilidade plasmada nos acórdãos anteriores suscitou-nos algumas dúvidas (se bem que não a afastamos), porquanto o artigo 129º do CPP exige que para que o depoimento de ouvir dizer possa servir como meio de prova, há que chamar a testemunha fonte a depor na audiência, e:
- o arguido não é uma testemunha, é um sujeito processual com direitos de defesa constitucionalmente consagrados (mormente no art. 32º da CRP);
- não pode depor, por estar impedido de o fazer, nos termos do 133º, nº 1, al. a) do CPP (excepto no caso do art.133º, nº 2 do CPP);
- pode quanto muito prestar declarações (o que é uma faculdade / um direito) – arts. 61º, nº 1, al. b), 343º do CPP, inter alia;
- e o facto de as não prestar não o pode desfavorecer (tem dto ao silêncio – art. 61º, nº 1, al. c), 343º, nº 1 e 345º, nº 1 do CPP).
Pelo que equiparar o silêncio do arguido nestes casos, à situação prevista de “impossibilidade de a pessoa indicada ser encontrada” (art. 129º, nº 1, in fine do CPP), para podermos recorrer àquelas declarações podemos estar a fazer uma analogia proibida pelo Princípio da Legalidade.

Se não estivéssemos a falar do que o assistente e das partes civis declararam ouvir do arguido, mas sim de OPC ou pessoas que tivessem participado na recolha das declarações, estaríamos a falar muito provavelmente das famosas “conversas informais”, mas neste caso, quid juris?