sábado, março 24, 2007

O Ministério Público na Constituição

O Ministério Público na Constituição – algumas questões
(Breves apontamentos de Anabela Pedroso – Guião para a apresentação do dia 26.09.2006)

NOTA: As presentes notas foram organizadas a partir das referências contidas no site do Sr. Dr. Pedro Verdelho e noutras, sem que tivesse havido da minha parte preocupação com a realização de citações ou com a indicação das fontes, uma vez que se trata de um mero guião para uma apresentação oral.


I. Introdução
A Constituição (CRP) trata o Ministério Publico (MP) no título V, reservado aos Tribunais, mais precisamente, no capítulo IV.

Foi com a CRP de 1976 que o MP se aproximou da imagem que hoje reveste. De facto, em 1974, o MP apresentava-se, na Base do Estatuto Judiciário de 1962, como uma magistratura amovível, responsável e hierarquizada, organizada na dependência do Ministro da Justiça[1] e directamente chefiada pelo Procurador-Geral da República. E se o MP estava mais próximo de ser um órgão da Administração, apresentava-se, igualmente, como uma antecâmara da magistratura judicial, como uma magistratura vestibular.
E isto, ainda que o enquadramento legal fosse favorável a uma imagem do MP como uma magistratura paralela à magistratura judicial e dela independente.

II. A magistratura do Ministério Público como uma magistratura polifuncional

Nos termos da CRP, ao MP compete representar o Estado, exercer a acção penal e defender a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar – artigo 219.º da CRP. A CRP estabelece igualmente que o MP goza de estatuto próprio (autonomia e auto-governo) e que os agentes do MP são magistrados responsáveis e hierarquicamente subordinados, ainda que esta seja uma magistratura estável/inamovível.

Se quisermos situar o MP no contexto das tarefas fundamentais do Estado e dos princípios de organização democrática, poderemos dizer que o MP é uma instituição que tem por finalidade garantir o direito à igualdade e à segurança, bem como à protecção jurídica e ao acesso à via judiciária.

III. O MP como órgão do poder judicial

O MP é tratado pela CRP no capítulo relativo aos Tribunais. Daqui, não podemos retirar a conclusão de que o MP é órgão de soberania, mas podemos descortinar na intenção do legislador constituinte o intuito de ligar o MP ao poder judicial. Não por um mero argumento de ordem sistemático-formal – pois o elemento sistemático é apenas um dos factores hermenêuticos, sem ser, sequer, o decisivo –, mas pela consideração de que há uma identidade de desígnios e uma complementaridade de funções entre a magistratura judicial e a magistratura do MP. Quando este exerce a acção penal e defende a legalidade democrática, está a assegurar a realização dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, que é incumbência do Tribunais. E, ao actuar desta forma, o MP pratica actos em conexão, em relação necessária com actos jurisdicionais, podendo dizer-se que pratica actos judiciais, segundo princípios, fins, objecto, organização e estatuto próprios. No âmbito da acção penal, o MP não age como parte, no sentido de interessado em que uma determinada pretensão tenha provimento, mas como verdadeiro e próprio órgão de justiça, no encalço da descoberta da verdade material.
Embora não seja um órgão jurisdicional em sentido estrito, faz parte do poder judicial sendo ele, MP, enquanto magistratura de impulso processual, activa, que confere iniciativa aos Tribunais para que cumpram, com independência as suas funções.
Pode dizer-se, pois, que, por detrás das funções do MP, está uma actuação de interesse público.

IV. A autonomia do Ministério Público

A autonomia do MP é o reflexo de uma opção constitucional e manifesta-se num duplo sentido:
a) Autonomia externa. Por um lado, em termos funcionais, o MP é autónomo em relação à magistratura judicial, o que se exprime, particularmente, na competência para o exercício da acção penal (Princípio da divisão de poderes e processo de estrutura acusatória). É, por outro lado, autónomo ante o Governo.

b) Autonomia interna. Independência técnica dos magistrados do MP, no contexto da hierarquia… ver infra V.

Note-se que este modelo traduz uma opção constitucional. Historicamente, temos duas escolas antagónicas:
Francesa – os agentes do MP como representantes do poder executivo, hierarquicamente subordinados ao Ministro da Justiça;
Italiana – a magistratura do MP como uma magistratura inamovível e independente, quer do poder executivo, quer da magistratura judicante.

Em Portugal, ainda que pudéssemos ter tido um Estado historicamente de influência napoleónica, o MP sempre se pautou, na sua actuação, por critérios de legalidade e nunca de oportunidade. A nossa CRP adoptou o modelo italiano, articulando esse modelo com uma rigorosa separação de funções, embora no seu texto originário inexistisse referência expressa à autonomia.

Sendo os Tribunais órgãos passivos, cuja actuação depende da iniciativa ou do estímulo de outros agentes, faz todo o sentido que o MP seja estruturado por forma a que a intervenção dos juízes não esteja dependente de quaisquer pressões indirectas que o governo pudesse fazer através do MP.

A autonomia do MP foi reforçada na revisão constitucional de 1989 com a inclusão, no Conselho Superior do Ministério Público, de membros eleitos pela AR e pelos magistrados do MP.

V. Autonomia vs. Hierarquia

O artigo 219.º, n.º 4 da CRP estabelece que os agentes do MP são hierarquicamente subordinados. Como compatibilizar hierarquia e autonomia?
Se antes o problema da hierarquia do MP era uma questão de interferência externa, hoje é um problema que se deslocou para o interior desta magistratura. Contudo, a questão colocada não é mais do que uma falsa questão. A hierarquia do MP em nada contende com a sua autonomia. Não devemos esquecer-nos de que o MP é uma magistratura de iniciativa, acção e controlo, incumbindo-lhe promover a igualdade perante a lei. O magistrado do MP, contrariamente ao juiz, actua como membro de um corpo (unidade e indivisibilidade do MP), o que reclama coordenação, sob pena de, em termos práticos, se proceder a uma pré-definição do interesse em agir.
Uma concepção atomística do MP não asseguraria isenção, igualdade, celeridade, eficácia, que são condições de legitimação da justiça.
Neste contexto, hierarquia significa subordinação dos magistrados de grau inferior aos de grau superior e o dever de acatamento de directivas, ordens e instruções, salvo se as mesmas forem ilegais ou estiverem em causa motivos de consciência para o seu não cumprimento.
Como se vê, a hierarquia do MP não participa de todas as características definidoras da hierarquia administrativa: no que se refere ao poder disciplinar, há um regime próprio, o mesmo se dizendo do poder de supervisão, no sentido de faculdade de revogação/modificação de actos praticados.

VI. O artigo 220.º da CRP e as alterações constitucionais relevantes

Em 1982, constitucionalizou-se o pluralismo da Procuradoria-Geral da República, enquanto órgão superior do MP. Na verdade, passou a fazer-se referência à composição plural da PGR, ao contrário do que resultava da versão anterior onde se dizia que a PGR “é o órgão superior do Ministério Público e é presidida pelo Procurador – Geral da República”.
Em 1997, constitucionalizou-se o Conselho Superior do Ministério Público.
Para além deste aspecto, a principal inovação da revisão constitucional de 1997, traduziu-se numa nova atribuição constitucional ao MP: a participação na execução da política criminal, definida pelos órgãos de soberania, ainda que essa participação fique na dependência da observância do Estatuo do Ministério Público e da sua autonomia e deva ser realizada nos termos da lei. Trata-se, pois, de constitucionalização parcial da função, dada a necessidade de mediação legislativa. A nova atribuição foi acompanhada da prescrição expressa de que o exercício da acção penal é orientado pelo princípio da legalidade.

VII. Conclusão

NOTAS:
[1] Era ao Ministro da Justiça que competia v.g. nomear, promover, colocar os Magistrados do MP; era o Ministro da Justiça que tinha competência para aplicar sanções disciplinares; era o Ministro da Justiça que ditava normas de procedimento.