sábado, março 24, 2007

Delegação de Competência

(texto de Mariana Fonseca Couto, para a sessão de 7 de Novembro de 2006)

NOTÍCIA DO CRIME
A aquisição da notícia de um crime por parte dos Órgãos de Polícia Criminal (OPC) determina para estes a obrigação de a comunicar ao Ministério Público (MP) no mais curto prazo, conforme o disposto no art. 248º/1 do Código de Processo Penal (CPP). Por seu lado, a notícia do crime acarreta para o MP a obrigação de, ressalvadas as devidas excepções, abrir o inquérito. Cfr. art. 262º/2 do CPP.

COMUNICAÇÃO AO MP
Tem-se entendido que a realização desta comunicação “no mais curto prazo”, e considerando-se os meios técnicos hoje em dia existentes, deve ocorrer sem mais delonga. Pois só com esta comunicação pode o MP valorar a notícia do crime, declarar aberto o processo, responsabilizar-se pela investigação e, como tal, dirigir o inquérito, cumprindo assim o imperativo constitucional do exercício da acção penal (art.219º da Constituição da República Portuguesa) concretizado na norma do art. 263º/1 do CPP.
No entanto, o Anteprojecto para a revisão do Código de Processo Penal (ver arts. 243º/3, 245º e 248º/1) prevê expressamente a concretização da expressão “no mais curto prazo”, fixando que tal «não pode exceder 10 dias». Podemos questionar, por um lado, se este prazo se configura ou não como um prazo demasiado alargado, tendo em conta a necessidade de efectiva manutenção da direcção do inquérito, e do controle sobre a actividade dos OPC por parte do MP. Por outro lado, a existência de um prazo pré-fixado pode suscitar a questão da sua violação. Ora, a norma em causa é uma norma legal imperfeita, não estabelecendo qualquer sanção para a ocorrência da sua violação. Ainda assim, note-se que, enquanto não for comunicada a notícia do crime e consequentemente aberto o inquérito, os OPC não poderão praticar qualquer acto, com excepção das medidas cautelares e de polícia previstas nos art. 248ºss do CPP. Acresce que, a prática destes actos pelos OPC, em nada se confunde com uma fase processual, pois o inquérito só se inicia por impulso do Ministério Público, não tendo qualquer enquadramento jurídico-legal os assim designados actos de “pré-inquérito”. Em suma, fora do quadro destas medidas, sempre provisórias e temporárias, os OPC carecem de competência para intervir por iniciativa própria.

C. DESPACHO:
Seguindo a bipartição apresentada por Paulo Dá Mesquita[1], o inquérito enquanto fase processual inicia e termina com um acto do MP, já o inquérito enquanto actividade pode comportar a intervenção directa do Magistrado do MP ou a delegação.
Exige-se, desta forma, a prolação de um despacho do MP que determine a abertura do inquérito - enquanto fase processual. Assim, de acordo com a análise preliminar do circunstancialismo fáctico-jurídico da notícia do crime, este despacho pode consubstanciar uma de várias tomadas de posição por parte do MP:

i) intervenção directa, nos inquéritos relativos a crimes puníveis com pena de prisão superior a 5 anos;
Cfr. Directiva 1/2002, I-1.
e
intervenção directa nos inquéritos relativos a crimes puníveis com pena de prisão inferior a 5 anos, quando se justifique pela qualidade do agente, da vítima ou por particulares circunstâncias que rodeiam a prática do crime;
Cfr. Directiva 1/2002, I-2.

ii) delegação:
A delegação surge na economia do CPP como o encargo de proceder a quaisquer diligências e investigações relativas ao inquérito, conforme consta do disposto no art.270º/1. A delegação pode, assim, configurar o encargo relativo a um acto específico de um processo concreto, ou à actividade investigatória de um processo concreto, sempre com respeito pelos limites impostos pelo nº 2 do art.270º do CPP – Cfr. Directiva 1/2002, I-3. Pode ainda conceber-se a delegação genérica, relativa a uma categoria de processos por referência a tipos de crimes ou limites das penas dos crimes cometidos numa determinada circunscrição, prevista no nº4 deste mesmo art.270º.
Tal ocorre, nomeadamente, nos casos de competência reservada da Polícia Judiciária (PJ)[2]. Mas perde, destarte, o MP a efectiva direcção do inquérito?
I - Quando o MP usa da faculdade de conferir a órgãos de polícia criminal o encargo de procederem a diligências e investigações, continua a deter a direcção do inquérito, actuando os órgãos da polícia criminal sempre sob a sua orientação e na sua dependência funcional, relativamente ao processo (artigos 53º e 263º nº 2 do CPP). II - O poder-dever do MP de dirigir o inquérito não implica, necessariamente, que os actos de investigação tenham de ser por ele materialmente realizados ou presididos, salvo os referidos no artigo 270º nº 2 do CPP. III - A lei não impõe uma delegação específica ou caso a caso, podendo a coadjuvação dessas polícias resultar de um despacho genérico do MP para um determinado tipo de delitos, ou para os delitos praticados em determinada área territorial. Acórdão da Relação de Lisboa, 9 de Janeiro de 1991, in www.dgsi.pt.
Mesmo procedendo esta delegação genérica de uma Directiva do Procurador-Geral da República (PGR)[3], tal não pode ser interpretado como implicando o esvaziamento de uma competência inalienável do MP. Acompanhando o Acórdão da Relação de Lisboa, de 16 de Outubro de 1990:
O deferimento de competência à Polícia Judiciária, pelo Procurador-Geral da República, para a investigação de determinados tipos de crime, não pode derrogar preceitos e princípios jurídicos fundamentais do CPP. A direcção do inquérito por Órgão de Polícia Criminal configura nulidade insanável. - in www.dgsi.pt. Num outro aresto do STJ, refere-se o vício de inexistência decorrente de usurpação de funções investigatórias por parte dos OPC.[4]
Mas vejamos, a Directiva 1/2002 II-1 delega genericamente na PJ a competência para a investigação dos crimes previstos no catálogo do artigo 4º da Lei da Organização da Investigação Criminal (Lei 21/2000, de 10 de Agosto). No ponto II-2 daquela Directiva refere-se que tal delegação abrange os actos permitidos pelo nº3 do art. 270º do CPP, bem como a competência processual para a prática dos actos previstos no art. 11ºA da Lei da PJ[5].
Estão aqui em causa actos da competência do MP, na direcção do inquérito enquanto actividade, cuja legalidade terá que ser apreciada pelo Magistrado responsável pelo processo na sua primeira intervenção, nomeadamente logo após a comunicação da prática de tais actos, prevista no nº 2 do art. 11ºA da Lei da PJ[6]. Mas a direcção efectiva do inquérito enquanto actividade, mesmo nos casos de delegação genérica, exige mais da Magistratura do MP do que a intervenção neste acto de validação ex post[7]. Na verdade, o MP tem sempre uma intervenção ex ante aquando da comunicação da notícia do crime. Acresce ainda, in media res, a possibilidade de condicionar o exercício ou avocar competências, conforme o disposto no art. 11ºA/3 da Lei da PJ. Tomando de empréstimo as palavras de Paulo Dá Mesquita, trata-se aqui de um “poder de específico condicionamento”.
Quanto aos crimes que não se enquadram no catálogo do art. 4º da Lei da Organização da Investigação Criminal pode ocorrer:
- delegação genérica a outros OPC de competência genérica, PSP e GNR, nos termos do disposto na Directiva 1/2002, IV-1;
- delegação genérica a outros OPC de competência específica, conforme o disposto no ponto IV-2 daquela Directiva;
- possibilidade de deferimento pelo PGR de competência à PJ por requerimento do magistrado responsável pelo processo, conforme as disposições conjugadas da Directiva 1/2002, III e art. 5º da Lei da Organização da Investigação Criminal.

É de salientar ainda, mas agora dentro da unidade orgânica do MP, o deferimento da competência de direcção do inquérito para o DCIAP, conforme as disposições conjugadas do art.47º/3 b) do EMP e da Directiva 1/2002, VI-1:
Âmbito temporal: processos instaurados por factos praticados a partir de 15 Set. 1999. Cfr. Circular 10/99.
Âmbito material: crimes de manifesta gravidade, especial complexidade ou dispersão territorial.
Esta competência por deferimento do DCIAP para dirigir o inquérito e exercer a acção penal ocorre a par com a competência automática e exclusiva para aquele mesmo fim relativamente aos crimes previstos no nº1 e no circunstancialismo previsto no nº 3 do art. 47º do EMP.

iii) revogação da delegação genérica
Quando ocorra motivo ponderoso, pode o Magistrado responsável pelo processo revogar ab initio, no despacho que versa sobre a notícia do crime, a delegação genérica e prévia nos OPC. Cfr. Directiva 1/2002, I-4.
Seguindo o ensinamento de Souto Moura, a direcção do inquérito implica “ a responsabilização pela conclusão da fase processual em questão, pelos resultados obtidos, e portanto pela prossecução ou não, dos fins a que o inquérito se propõe. É fundamentalmente, uma tarefa de planificação, de eventual delegação de investigações ou diligências nos OPC, e neste caso de fiscalização e controle da actividade de tais órgãos.”[8]

NOTAS:
[1]Paulo Dá Mesquita in “A Direcção de Inquérito Penal e a Garantia Judiciária”, Coimbra Editora, 2003.
[2] Cfr. art.4º da Lei da Organização da Investigação Criminal, Lei 21/2000, 10 de Agosto, e Directiva 1/2002, II-1.
[3] a que deve obedecer a actuação dos respectivos Magistrados, conforme o disposto no art. 12º/2 b) do Estatuto do MP.
[4] Ac. STJ 1 de Abril de 1998, in www.dgsi.pt.
[5] DL n.º 275-A/2000, de 9/11, sucessivamente alterado pela Lei 103/2001, de 25/08, pelo DL n.º 323/2001, de 17/02, pelo DL n.º 304/2002 de 13/02 e, por fim, pelo DL n.º 43/2003 de 13/03.
[6] Por remissão expressa da Directiva 1/2002, II-3.
[7] Voltando ao supra citado Acórdão da Relação de Lisboa de 16 de Outubro de 1990: I - A direcção do inquérito pelo MP não é delegável nos Órgãos de Polícia Criminal.II - A direcção de recolha de provas pelo M.P. tem de ser efectiva, o que se não compadece com a aceitação tácita, "a posteriori", da recolha, feita administrativamente, por um Órgão de Polícia Criminal.
[8] In Jornadas de Direito Processual Penal, O novo CPP, Centro de Estudos Judiciários, Almedina, 1997, pp. 101 ss.