terça-feira, março 13, 2007

Crime de Falsificação de Documentos

(trabalho realizado por Catarina Alexandra Amaral da Costa, auditora de justiça, no âmbito do XXIV Curso de Formação de Magistrados, para a área de Penal II - 1ª fase de formação)


CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTOS
ARTIGO 256º CP



Os crimes de falsificação estão inseridos no” LIVRO II – Parte Especial”, no “TÍTULO IV – Dos crimes contra a vida em sociedade” e no “CAPÍTULO II – Dos crimes de falsificação”.

BEM JURÍDICO PROTEGIDO

O interesse comunitário que esta previsão legal visa proteger é a segurança no tráfico jurídico, mais do que o interesse de assegurar a veracidade dos documentos. Quando o documento que foi falsificado é utilizado no mundo das relações jurídicas viola-se o bem jurídico da segurança e credibilidade no tráfico jurídico. Este é o entendimento da Dra. Helena Moniz. Em sentido contrário temos Dr. Figueiredo Dias e Dr. Costa Andrade, que entendem que o bem jurídico protegido é a verdade intrínseca do documento enquanto tal.

TIPO OBJECTIVO DE ILÍCITO

O tipo objectivo do crime de falsificação comporta várias modalidades de conduta:
- fabricar documento falso – o agente fabrica um documento que não existia;
- falsificar ou alterar documento – o agente vicia o documento, alterando o seu conteúdo;
- abusar de assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso – utiliza-se assinatura mecânica abusivamente ou folha em branco assinada;
- fazer constar falsamente facto juridicamente relevante – forma de falsificação intelectual em que é introduzido um facto que não é real no documento;
- usar documento falso fabricado ou falsificado por outra pessoa.


Importa agora analisar alguns destes conceitos.


1. Noção legal de documento - Artigo 255º/a

Documento é uma declaração. A noção do Código Penal não fala no suporte do documento, mas numa declaração de um pensamento humano que, ainda assim, deve estar corporizada num escrito, em disco ou em fita gravada. Enquanto que no Direito Civil (artigo 362º do Código Civil) o documento é o objecto no qual se incorpora uma declaração, no Direito Penal o documento é a própria declaração.
No entanto, para que haja incriminação é necessário que a declaração seja idónea a provar “facto juridicamente relevante” (artigo 255º/a). Mas o que é facto juridicamente relevante?
Podemos dizer que facto juridicamente relevante é todo o facto que cria, modifica ou extingue uma relação jurídica. A declaração deve ser “idónea a provar”, pelo que, desde o início ou posteriormente deve constituir um meio de prova. Uma simples carta não tem, à partida, valor de prova, pelo que, se uma carta que contenha factos falsos nunca for usada com a finalidade de meio de prova, não se pode dizer que o seu autor tenha praticado um crime de falsificação de documentos. No entanto, se tal carta for integrada num processo como meio de prova, dado que para a noção do 255º/a é indiferente o destino da declaração desde a sua formação, e integrando ela factos juridicamente relevantes, mas falsos, então podemos concluir que o seu autor cometeu um crime de falsificação de documentos (aquando da integração do documento no processo, o seu autor colocou em perigo de lesão o bem jurídico protegido por este tipo legal de crime) – ex: Carta particular em que alguém relata minuciosamente a actividade de outrem num determinado período de tempo, provando assim o adultério por ela cometido – a carta integra facto susceptível de vir a causar a extinção de uma relação jurídica. Dada a solenidade dos documentos e a confiança que a comunidade neles deposita pratica crime de falsificação aquele que põe em causa a força probatória de tais documentos.
O nosso conceito não se restringe à noção de documento escrito, consagrando uma noção ampla de documento, pelo que nele também podemos incluir a chapa de matrícula de um veículo automóvel. De facto, o artigo 255º/a refere, na parte final da noção de documento, o “sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante”. Este entendimento foi consagrado no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 3/98 (publicado no Diário da República, I-A, de 2 Dezembro de 1998), que estabeleceu, como entendimento uniforme, que “na vigência do Código Penal de 1982, redacção original, a chapa de matrícula de um veículo automóvel, nele aposta, é um documento com igual força à de um documento autêntico, pelo que a sua alteração dolosa consubstancia um crime de falsificação de documento previsto e punível pelas disposições combinadas dos artigos 228º, nº1, alínea a) e 2, e 229º, nº3 daquele diploma.”.
Depois de aposta no veículo de forma inamovível, a chapa de matrícula cumpre o seu papel identificador para a generalidade das pessoas, na medida em que, de outra forma, a declaração que materializa apenas constava do livrete, cujo conhecimento apenas ocorreria após a sua solicitação. Servindo a chapa para provar o registo e a matrícula, esta tem igual força probatória à do documento autêntico.
Também podemos incluir nesta noção a falsificação no âmbito da criminalidade informática, desde logo, ao nível dos programas ou do resultado extraído do sistema. No entanto, dado que se trata de uma actividade em grande expansão, na medida em que o papel vai sendo substituído pelo equipamento informático, o legislador português sentiu necessidade de criar uma regulamentação própria, que respondesse de forma mais adequada a estas necessidades – Lei nº 109/91, de 17 de Agosto.
Podemos também fazer uma breve referência ao facto de saber se podemos incluir no âmbito da noção de documento a fotocópia. Desde logo, temos de distinguir entre a falsificação de documento através de fotocópia e a falsificação de fotocópia. Quando se utiliza a fotocópia como meio que permite o objectivo que é a falsificação estamos perante um crime de falsificação, na medida em que a fotocópia foi produzida a partir do original e tem a aparência de original. Nos casos em que é a fotocópia que é falsificada e não o documento original não estamos perante um crime de falsificação, uma vez que relevante para o crime de falsificação é a declaração e não o suporte material da declaração. Na simples falsificação de fotocópia não se verifica a falsificação de um documento enquanto declaração.


2. Acto de falsificar ou alterar documento

Para efeitos da noção legal importa a declaração enquanto documento, pelo que é importante distinguir as formas que o acto de falsificação pode assumir: falsificação material e intelectual.
Na falsificação material existe uma alteração, total ou parcial do documento, ou seja, o agente altera uma coisa que já está feita segundo uma certa forma, pelo que a autoria passa a ser aparente (ex: substituição da fotografia de um Bilhete de Identidade – neste caso, a declaração dos Serviços de Identificação civil deixa de ser feita por estes. A declaração, corporizada no Bilhete de Identidade, é destes serviços, mas quando a foto é substituída a declaração já não é dos serviços, apesar de aparentemente o ser).
Na falsificação intelectual temos os casos em que no documento é incorporada uma declaração falsa, distinta da declaração que foi prestada. Aqui altera-se logo, aquando da formação do documento que incorpora a declaração, fazendo constar do documento declaração que não foi realizada ou diferente da que foi realizada. Esta modalidade de falsificação é abrangida pela expressão “falsificar ou alterar documento” – artigo 256º/1/a. É importante não confundir estas situações com aquelas em que o documento contém uma falsidade, ou seja, a declaração não corresponde à realidade mas foi a declaração que o autor quis que constasse no suporte físico. Esta situação, à partida, parece não consubstanciar um crime de falsificação porque o documento representa exactamente aquilo que foi declarado. Este é um problema que deve ser resolvido pelo direito civil (declaração feita com erro, reserva mental, simulação) e não pelo direito penal, que é sempre a ultima ratio. As falsas declarações apenas terão relevo para o efeito do crime de falsas declarações. No entanto, sempre que se esteja perante uma declaração falsa de facto juridicamente relevante (aquele que é apto a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica) estamos perante um crime de falsificação de documento porque se encontram preenchidos todos os elementos do tipo legal de crime, quer estejamos perante um documento particular ou autêntico (ex: declaração falsa do estado civil, de um nascimento ou nos casos de carta particular que atesta falsamente da paternidade de uma pessoa quando inserida numa acção de investigação de paternidade).


3. Abuso de assinatura

A assinatura é um meio idóneo a efectuar a prova da autoria da declaração, que é um facto juridicamente relevante. A declaração que integra o documento pode não ter sofrido qualquer alteração mas, no entanto, a declaração não foi proferida pela pessoa que o escrito aparenta, ou seja, o autor real não foi o autor aparente.
Trata-se de uma situação diferente daquela em que o autor real é o autor aparente mas a declaração constante no documento não corresponde à realidade. Aqui estamos perante uma falsidade em documento e não perante abuso de assinatura.


4. Uso de documento falso

No âmbito da alínea c) do nº1 do artigo 256º, apenas se incluem os casos em que a pessoa que utiliza o documento é diversa daquela que o falsificou. A pessoa que falsifica o documento e o utiliza é punida pela alínea a) ou b). No entanto, se existir acordo entre aquele que falsifica e aquele que utiliza estamos perante um caso de co-autoria.



TIPO SUBJECTIVO DE ILÍCITO

Estamos perante um crime intencional, exigindo-se que o agente actue com o propósito de causar prejuízo ou obter benefício ilegítimo, ou seja, uma vantagem (patrimonial ou não) que se obtenha através a falsificação ou da sua utilização.
É também um crime doloso, pelo que o agente deve ter conhecimento de todos os elementos que constituem o tipo objectivo do crime e vontade na sua realização. Ou seja, o agente deve ter conhecimento de que o objecto que falsifica é um “documento que produz uma certa fé no mundo jurídico” (Eduardo Correia, Direito Criminal, I, 374).



FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTOS

Estamos perante um crime de perigo abstracto, em que o resultado material não faz parte do tipo legal de crime. Não se espera que alguém use o documento para punir, pois pune-se logo que haja falsificação. Para que o tipo legal de crime esteja preenchido basta que se conclua, a nível abstracto, que a falsificação do documento é uma conduta passível de lesar o bem jurídico-criminal protegido. Basta que exista uma probabilidade de lesão da confiança e segurança que a sociedade deposita nos documentos, ou seja, no tráfico jurídico.
Mas, coloca-se agora o problema de saber quando existe a consumação deste crime. O crime de falsificação preenche-se com o simples preenchimento de todos de todos os elementos que constituem o seu tipo legal de crime (consumação formal), independentemente de se dar a sua consumação material (exaurimento). A partir do momento em que o documento está falsificado já se verifica o perigo de lesão do bem jurídico. A consumação material verifica-se quando o agente utiliza o documento falsificado e o coloca no tráfico jurídico, apesar de este momento não ter relevo ao nível do tipo legal de crime, excepto no caso de quem usa o documento falsificado é um terceiro (nº1, alínea c).
Outro problema a resolver, será o de saber quando existe tentativa de um crime de perigo abstracto. Para que haja tentativa é necessário que o agente pratique actos de execução do crime que decidiu cometer – artigo 22º/1, ou seja, é a partir do momento em que o agente inicia a falsificação do documento que se pode falar de tentativa de falsificação de documentos (ex: A apresentou-se em vez de B a fazer um exame com o Bilhete de Identidade deste. Escreve uma ou duas linhas e desiste ou nada escreve. Há tentativa porque, apesar de haver resultado material, desistiu da consumação do crime, que se dava quando concluísse a prova. Iniciou actos de execução do crime de falsificação porque compareceu ao exame e apresentou Bilhete de Identidade que não lhe pertencia para falsificar a prova (alínea c) mas não a realizou).
Importa agora falar da desistência de um crime de falsificação de documento quando já se verificou uma tentativa acabada. Nestes casos temos de recorrer ao artigo 24º do Código Penal. Quando o documento está falsificado, o crime está formalmente consumado, pelo que a desistência do agente será relevante se impedir a consumação material, ou seja, se impedir a verificação do resultado, por decisão autónoma (ex: O A acaba a prova mas quando a vai entregar arrepende-se e diz que não é o candidato. O crime do artigo 256º é um crime de perigo abstracto, de mera actividade. Não exige um resultado mas supõe a concretização da falsificação num escrito – não é necessária a entrega. Como não há um resultado descrito no tipo, pode haver desistência, ainda que a falsificação esteja consumada pelo artigo 24º/1, última parte.). O legislador antecipa a punição da consumação, não esperando que se use o documento para punir. Esta punição antecipada significa que estamos perante um crime de tentativa, pelo que é possível a aplicação do artigo 24º. Apesar de estar consumado, o crime é de tentativa, pelo que o agente pode impedir o uso final da prova falsificada (ex: pode rasgá-la)
Um outro problema importante é o da tentativa impossível, que acontece quando está em causa uma falsificação grosseira, ou seja, quando se trata de uma falsificação que é imediata e facilmente reconhecível por qualquer pessoa medianamente conhecedora e informada. Neste caso, e de acordo com o artigo 23º/3, esta tentativa não será punível por ser inepto o meio utilizado pelo agente para falsificar o documento (ex: caso em que o jogador de futebol Mantorras rasurou a data de validade do passaporte e escreveu outra).



QUALIFICAÇÃO – nº3 e 4 do 256º

Existe um agravamento da pena nos casos em que estamos perante documentos autênticos ou com igual força, na medida em que estes documentos oferecem uma grande segurança e credibilidade no tráfico jurídico-probatório, constituindo a sua falsificação num perigo mais acentuado para o bem jurídico (os documentos autênticos têm força probatória plena – artigo 371º do Código Civil).
No caso dos documentos com igual força à dos documentos autênticos temos uma definição no artigo 363º/2 do Código Civil (“os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividades que lhe é atribuído pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares”) - ex: livrete de automóvel emanado da Direcção Geral de Viação.
O nº 3 equipara ao documento autêntico para efeitos de agravamento da pena, nomeadamente, o vale de correio, a letra de câmbio e o cheque. Nestes casos pode existir uma falsificação material, um abuso de assinatura ou uma falsificação intelectual.
Do nº4 consta agravamento de pena quando os actos que conduzem à falsificação da declaração sejam praticados por funcionário (art. 386º), desde que no exercício das suas funções.



CONCURSO

Neste campo levantam-se muitos problemas quanto ao concurso com o crime de burla. Na burla o agente induz propositadamente em erro outrem, causando-lhe prejuízos patrimoniais e obtendo para si benefícios ilegítimos. Como resolver os casos em que para perpetrar o crime de burla o agente utiliza documento falsificado?
O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 8/2000 veio consagrar o entendimento que “no caso e a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do art. 256, nº1, alínea a), e do art. 217º, nº1, respectivamente, do CP,.., verifica-se concurso real e efectivo de crimes”. O TC já se pronunciou quanto à constitucionalidade deste Acórdão, afirmando a sua constitucionalidade nos Acórdãos nº 303/2005, DR, II, 5/08/05 e nº 375/2005, DR, II, 21/09/05, os quais invocam, essencialmente, que os bens jurídicos tutelados são diferentes nos crimes em presença.
Entendo que não podemos simplesmente dizer que há concurso real sem analisar o caso concreto e o seu circunstancialismo. Entendo ser a melhor posição a explanada no voto de vencido a que outros Conselheiros aderiram.
Nos casos em que apenas há uma resolução criminosa, ou seja, quando o agente falsifica para burlar há consunção do crime de falsificação com o crime de burla, sendo o agente punido apenas pelo crime de burla, na medida em que a penalização da burla absorve a penalização da falsificação. De facto, o crime de burla é um crime complexo, incorporando a actividade da burla mas também todas as outras actividades que constituem o meio para a sua realização, contando-se entre eles a falsificação de documento.
Nos casos em que há duas resoluções criminosas temporal e psicologicamente autónomas existe um concurso real de normas. (ex: caso em que a falsificação foi previamente realizada e só posteriormente o agente resolve praticar o crime de burla utilizando o documento anteriormente falsificado. Em meu entender a conduta teria d ser analisada casuisticamente para podermos afirmar se existe concurso real ou aparente, não vendo como um argumento forte o facto de os bens tutelados serem diferentes nos dois tipos legais de crime.
Pode acontecer que o agente falsifique o documento com a intenção de cometer um crime de burla que acaba por não cometer. Quid iuris? Pune-se só por tentativa de burla? Pune-se só por falsificação de documentos? Ou pune-se por falsificação de documentos e por tentativa de burla?
A falsificação de documento é um crime de perigo abstracto, pelo que está formalmente consumado, verificando-se já a sua punição. Será este acto passível de integrar os actos de preparação para o crime de burla, de forma a termos uma punibilidade por tentativa de burla? Não parece, na medida em que os actos devem ser idóneos para a prática do crime e a falsificação de documentos, só por si, não é idónea para a prática do crime de burla. Para isso é necessário que o agente pratique actos que conduzam outrem a uma disposição patrimonial.



BIBLIOGRAFIA

Helena Moniz, “O Crime de Falsificação de Documentos – Da Falsificação Intelectual e da Falsidade em Documento”, Coimbra Editora, 1999;

Leal Henriques e Simas Santos, “Código Penal Anotado”, Editora Rei dos Livros, 2004;

Maia Gonçalves, “Código Penal Anotado”, Almedina, 2002;

Miguez Garcia, O Risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal, I – Elementos da Parte Geral, policopiado, 2004;

Vários, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999