terça-feira, março 13, 2007

Crime de Burla e Cheque sem Provisão

(trabalho realizado por Catarina Alexandra Amaral da Costa, auditora de justiça, no âmbito do XXIV Curso de Formação de Magistrados, para a área de Penal II - 1ª fase de formação)


CRIME DE BURLA – ARTIGO 217º DO CÓDIGO PENAL

O crime de Burla está inserido no Livro II – Parte Especial, no Título II – Dos crimes contra o Património e no Capítulo III – Dos crimes contra o património em geral.


BEM JURÍDICO

O bem jurídico protegido por esta disposição legal é o património e não a propriedade. Os crimes contra o património protegem coisas com valor venal, ou seja, que tenham valor no tráfico jurídico e não apenas um valor afectivo. O crime de burla não é um crime de engano mas de prejuízo porque o relevante não é o desapossamento de uma coisa mas o prejuízo patrimonial. O que releva não é a coisa em si, mas a diminuição que se dá no património do sujeito passivo.
Daqui aferimos que a burla é um crime de dano, que se consuma quando existe um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo. Estamos, assim, perante um crime de resultado, pois apenas se consuma com a saída do valor da esfera patrimonial do sujeito passivo, consubstanciada num prejuízo efectivo, não sendo necessário que exista um enriquecimento do agente. Ou seja, a consumação da burla acontece quando existe o prejuízo na esfera patrimonial do sujeito passivo, independentemente do valor entrar na esfera patrimonial do agente.
Vamos então esclarecer estas noções.

Quanto ao conceito de prejuízo, temos um conceito jurídico-individual objectivo, verificando-se este sempre que se observe uma diminuição do valor económico por referência à posição em que o lesado se encontraria se o agente não houvesse realizado a sua conduta.

Mas temos então de saber o que é um prejuízo patrimonial e qual a noção de património.

Ex: A e B aproximam-se de C para lhe vender uma máquina de fabricar notas, que a compra por 25 mil euros mas a máquina já não fazia notas. C merece protecção penal?

Ex: A quer matar o marido e contrata C para o matar pagando-lhe 10 mil euros. C desaparece com o dinheiro. A merece protecção penal por burla de C?

Nos dois casos houve um prejuízo patrimonial, mas estaríamos a tutelar uma situação envolvida num acto ilícito. Deve o direito tutelar estes prejuízos?

No que diz respeito ao conceito de património devemos adoptar um conceito jurídico-penal. A lei penal não nos dá um conceito de património pelo que o mesmo deve ser construído casuisticamente, ao nível das decisões concretas, pela jurisprudência e pela doutrina.
Partindo de um conceito económico-jurídico de património, que reconduz o património ao conjunto de todas as “situações” e “posições” com valor económico detidas por uma pessoa, devemos introduzir ajustes por forma a que a tutela penal não abarque situações que, apesar de envolverem um prejuízo económico, são consideradas ilícitas pelo direito. Podemos concluir que o conceito jurídico-penal de património se alcança partindo da citada teoria económico-jurídica mas através da sua aplicação casuística por forma a circunscrever na tutela penal do crime de burla às posições merecedoras de tutela, à luz da particular teleologia do direito criminal.
O conceito patrimonial só abrange situações lícitas, pelo que os penalistas aceitam a noção de património em termos económicos mas desde que coberto pelo direito. Seria inaceitável que o direito penal tutelasse situações que, apesar de envolverem uma vantagem económica são ilícitas.


CONDUTA TÍPICA E NEXO DE IMPUTAÇÃO OBJECTIVA

Estamos perante crimes onde há uma total coincidência de vontades, na medida em que o agente passivo, na grande maioria dos casos, se tenta aproveitar de uma situação, que pensa verdadeira, para ganhar. Daí que o legislador tenha tido o cuidado de estabelecer um crime de realização vinculada, na medida em que só há punição se for alcançado um resultado e se for percorrido um determinado caminho. Se o resultado for alcançado mas sem percorrer o caminho definido por lei não há punição. O legislador teve assim o cuidado de cristalizar um conjunto variado de burlas, partindo do crime matricial, de forma a vincular o intérprete, dada a enorme quantidade de casos que estão na fronteira entre a burla e um bom negócio, evitando assim incertezas.
A consumação do crime de burla depende da existência de uma saída de bens ou valores da esfera jurídica do legítimo detentor dos mesmos, e que essa lesão tenha ocorrido como consequência a utilização de um meio enganoso pelo agente, idóneo a induzir o sujeito passivo em erro, o que o leva a praticar os actos que lhe causem a si o a outrem um prejuízo patrimonial. O tipo objectivo basta-se com o prejuízo. Há uma incongruência entre o tipo objectivo e subjectivo porque neste exige-se quer o dolo de prejudicar a vítima quer o de enriquecimento. No entanto, podemos ter um crime de burla consumado ainda que não tenha existido o enriquecimento do agente, pelo que o tipo subjectivo é mais abrangente que o objectivo.
Podemos, então, concluir que estamos perante um crime em que existe um duplo nexo de imputação objectiva (causalidade):
o agente, de forma intencional e astuciosa, coloca o sujeito passivo numa situação de erro ou engano;
a pessoa, porque está em erro, pratica actos que lhe vão causar um prejuízo patrimonial a si ou a terceiros.
O erro ou engano que levam o sujeito passivo à disposição patrimonial deve ser provocado astuciosamente, através das modalidades que passamos a enunciar:
1. por palavras: neste âmbito devemos incluir os códigos gestuais que, no contexto em causa, revistam um conteúdo comunicacional preciso e inequívoco (ex: levantar um braço num leilão). Há situações em que basta a simples mentira para que se preencha este tipo legal de crime. A mentira chega quando o sujeito passivo não tem a possibilidade de se esclarecer autonomamente ou quando se está num âmbito específico cujos conhecimentos a vítima não tem (ex: A vai ao dentista que lhe diz ter um grave problema tendo de fazer um tratamento caro – a simples mentira é suficiente porque a pessoa não se pode esclarecer autonomamente).
2. por actos concludentes: são condutas idóneas a criar uma falsa representação da realidade. O engano resulta de uma deficiência do esclarecimento acerca do significado ou alcance da conduta do agente, ou seja, o agente assegura ou aprofunda o engano da vítima através da sua conduta, veiculando uma visão falsa ou deturpada da realidade (ex: A, disfarçado de polícia, cobra multas; utilização de instrumentos de pesagem ou medição adulterados);
3. por omissão: aqui há um aproveitamento do estado de erro quando o agente tem o dever de informar, desde que preenchidos os requisitos gerais do artigo 10º do Código Penal. Aqui não existe o primeiro nexo de imputação, limitando-se o agente a aproveitar uma situação de erro. Este não é um entendimento pacífico.
Ex 1: A e B compram um terreno que valia 100 mil por 5 mil porque sabiam que aí ia ser construído um prédio de luxo e não informaram o vendedor.
Ex 2: A entra no escritório de um advogado por ter sido apanhado por consumo de droga e o advogado não informa que o consumo já não é crime.
Ex 3: A licencia-se e gosta muito de pintura. Os pais oferecem-lhe dinheiro e A vai a um antiquário comprar um quadro.
A questão está em saber se é aplicável o artigo 10º do Código Penal ou não. Este artigo pune as omissões que tenham um conteúdo de desvalor muito próximo das acções. A Dra. Maria Fernanda Palma e o Dr. Rui Pereira entendem que pela interpretação conjugada dos artigos 217º e 10º, ambos do Código Penal, só é de atribuir relevância à astúcia e que esta só se exprime por acção. Parece-me, no entanto, que se exige, não uma qualquer lesão, mas uma lesão provocada por erro ou engano. Ponto é que a astúcia, elemento típico imprescindível, se possa afirmar. Pelo artigo 10º/2 é possível, em minha opinião incluir a burla por omissão, quando exista um dever jurídico pessoal de o agente afastar o erro (“pessoalmente o obrigue”), incluindo-se aqui os deveres de segurança no tráfico jurídico.

Se não tivesse desaparecido o termo “aproveitou” (existente na redacção anterior do artigo), as situações dos Ex. 1 e 2 eram condutas que integravam o crime de burla. No entanto, o Ex. 1 é o dia a dia do mundo dos negócios. Os compradores não têm dever de garante; não têm a obrigação de informar. Pode haver um dever moral mas não há nenhum dever jurídico porque a relação negocial não impõe o dever de transmitir conhecimentos que, em princípio, devem estar do lado do vendedor e não do comprador. Nesse caso não há crime de burla.
No Ex. 2, o advogado tem uma obrigação de informação, pelo que é suficiente a omissão para existir um crime de burla porque há uma equiparação da acção à omissão
No Ex.3, se o quadro é falso e o antiquário sabia há claramente um crime de burla. Mas se o vendedor já tivesse sido ele enganado pela proveniência do quadro já não há burla. Se o vendedor estiver convencido da verdade da proveniência e, segundo as leis da arte, estiver convencido que o quadro é verdadeiro, não há burla porque o vendedor induz em erro mas não de forma astuciosa.
Em conclusão:
Argumentos no sentido de que, havendo omissão de esclarecimento, não há burla:
- Argumento de natureza histórica – No projecto do Código Penal dizia-se “ou aproveitou”. Como desapareceu a referência ao aproveitar o erro, isso significa que não há burla por omissão;
- Argumento dogmático – Na medida em que o crime de burla é de execução vinculada não se aplica a 1ª parte do art. 10º/1, não se equiparando a omissão à acção; “salvo se for outra a intenção da lei”,é um caso em que é outra a intenção da lei.
Argumento pela existência de crime de burla por omissão (Faria Costa e Almeida Costa):
- Argumento literal – o desaparecimento da palavra “aproveitou” teve apenas por objectivo evitar a punição daqueles que não têm dever de informação.


NOTA: O crime de burla é um crime semi-público porque o procedimento criminal depende de queixa – artigo 217º/3. No entanto, pode configurar um crime particular, passando o procedimento criminal a estar dependente de queixa e acusação particular, quando o agente do crime seja cônjuge, ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao 2º grau da vítima, ou com ela viver em condições análogas às dos cônjuges – artigos 217º/4 e 207º/a.
Quando o agente proceda à restituição da coisa apropriada ou à reparação dos prejuízos causados, poderá haver uma atenuação especial da pena – artigos 217º/4 e 206º.





CRIME DE CHEQUE SEM PROVISÃO
(Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Novembro e Lei nº 48/2005, 29 Agosto)

O Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, teve como objectivo o restabelecimento da confiança inerente à normal circulação do cheque, com a consequente dignificação deste título de crédito. O Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Novembro, teve como ideia central dar nova confiança ao uso dos cheques pré datados, que passaram a ser utilizados como instrumentos creditícios e não, como é sua função específica, como simples meio de pagamento.
Devido ao facto de o cheque ser generalizadamente utilizado como instrumento creditício, e com a tutela penal dos créditos, surgiram muitos casos de prisões por dívidas. Daí que este diploma tenha previsto, expressamente, no nº 3 do artigo 11º, que os cheques pós datados não gozam de tutela penal. Para que possa ser passível de tutela criminal, o cheque tem de reportar-se a um pagamento imediato e não a um pagamento diferido, a prazo, de uma contraprestação obrigacional. De outro modo estar-se-ia a impossibilitar o princípio civil de liberdade contratual (artigo 405º do Código Civil), ou seja, na medida em que a obrigação de pagamento nasce do contrato podem as partes convencionar que o pagamento só seja devido em data futura, só se vencendo este nessa data, não tendo sido intenção do legislador dar protecção criminal a este cumprimento diferido. Esta foi a grande alteração deste Decreto-Lei. A Lei nº 48/2005, 29 Agosto veio aumentar para 150€ o patamar em que a emissão de cheque sem provisão passa a ser considerada crime.


BEM JURÍDICO PROTEGIDO

O bem jurídico tutelado pelo tipo legal incriminador do cheque sem provisão é plúrimo: consiste nas relações de confiança do comércio jurídico, no património do portador do cheque e até na fé pública (confiança) dos cheques.


TIPO DE ILÍCITO

Tipo objectivo
a) Existência de uma obrigação válida de pagamento imediato, por parte do agente subjacente à emissão;
b) A emissão e entrega do cheque, ou seja, a sua colocação em circulação para pagamento;
c) O não pagamento integral (seja por falta ou insuficiência de provisão ou por irregularidade no saque seja por levantamento de fundos, proibição dada à instituição, encerramento da conta);
d) O prejuízo patrimonial (conceito analisado supra)- diminuição do valor económico por referência à posição em que o lesado se encontraria se o agente não houvesse realizado a sua conduta.

O Dr. Figueiredo Dias (Parecer na Colectânea de Jurisprudência, ano XVII, 1992, Tomo III, pág. 65 e seg.) defendia que o prejuízo patrimonial configurava uma condição objectiva de punibilidade. Enquanto condição objectiva de punibilidade seria exterior ao tipo, ao facto ilícito, típico e culposo. No entanto, face ao novo regime jurídico do cheque, em que não releva a obrigação cartular abstracta (que resultava da simples emissão do cheque) mas a relação material concreta subjacente à emissão e entrega do cheque, é de entender que se trata de um elemento do tipo de ilícito objectivo, pelo que o dolo tem de reportar-se também ao prejuízo patrimonial. Esta lei não pune os cheques pré-datados nem os cancelamentos lícitos. É necessário o dolo quanto ao prejuízo no momento da emissão.

Tipo subjectivo: crime doloso, revelando-se suficiente o dolo eventual, sendo, no entanto, necessário que o dolo se reporte ao momento da prática do facto. O agente tem de ter consciência que o seu comportamento é proibido e que irá causar um prejuízo patrimonial no momento em que emite o cheque.
Condições objectivas de punibilidade
a) A apresentação a pagamento no prazo legal, ou seja, em 8 dias (artigos 28º, 29º e 31º);
b) A declaração de não pagamento do Banco e dos motivos (artigos 40º e 41º);
c) Ser o cheque de montante superior a 150€;
d) A não regularização da situação no prazo de 30 dias a contar da data em que se considera feita a notificação do Banco. Nos termos do art. 1ºA a regularização da situação constitui uma causa extintiva do procedimento, conforme nos diz o nº5 deste art.11º


NATUREZA SEMI-PÚBLICA – ART. 11º- A

O procedimento criminal só se inicia se existir queixa. Caso não seja apresentada queixa pelo ofendido – titular do direito de queixa (artigos 113º do Código Penal e 49º do Código de Processo Penal) – o Ministério Público não tem legitimidade para intervir e conhecer do crime.

Conteúdo substancial da queixa
- indicação dos factos concretos constitutivos da obrigação subjacente ao cheque, ou seja, os termos da relação negocial subjacente à emissão do cheque, que esclareçam as razões da emissão e entrega deste (para analisar se estamos perante um cheque pré-datado ou se o possível cancelamento do cheque foi lícito);
- indicação da data em que foi feita a efectiva entrega do cheque ao tomador, normalmente ao queixoso (para verificar se estamos perante um cheque pré-datado);
- indicação dos elementos de prova respectivos.

Se a queixa não contiver estes elementos considera-se a queixa apresentada, para todos os efeitos legais e o Ministério Público notifica o queixoso para, em 15 dias, os indicar ou indicar os que faltam. Se, depois de notificado pelo Ministério Público, o queixoso não indicar os elementos em falta nesse prazo o processo deve ser arquivado (nos termos do artigo 277º/1 do Código de Processo Penal), por a queixa ser válida mas ineficaz, com a consequente falta de legitimidade do Ministério Público para prosseguir com o procedimento criminal.
O Professor Germano Marques da Silva defende o arquivamento, mas com base no nº 2 do artigo 277º do Código de Processo Penal o que teria como consequência o facto de o processo poder ser reaberto quando surjam esses elementos e enquanto o crime não prescrever (o que só acontece, em princípio, 5 ou 10 anos após os factos – artigo 118º/1, alínea b) ou c) do Código Penal, consoante o valor do cheque e respectiva pena).
A solução do arquivamento com base na ineficácia da queixa e consequente falta de legitimidade do Ministério Público, nos termos do nº 1 do artigo 277º do Código de Processo Penal é a mais favorável em concreto ao arguido, desde logo porque a paz jurídica fica definida, sem ter de esperar os 5 ou 10 anos da prescrição.

Competência para autorizar a desistência de queixa quando o Estado seja ofendido
Nos casos em que o Estado é ofendido compete ao departamento de Estado respectivo efectuar a apresentação da queixa. No entanto, a desistência da queixa compete ao Procurador-Geral da República, sendo essa competência delegável nos termos gerais (aditamento do nº 5 ao artigo 11º-A).


SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO

A descriminalização
Em relação às situações em que o cheque não é superior a 150€ verifica-se a despenalização das condutas anteriores, ao abrigo do disposto no artigo 2º/2 do Código Penal. Incluímos esta situação no nº 2 e não no nº 4 porque o facto que se consubstancie na emissão de um cheque de valor inferior a 150€ deixou de configurar no elenco das infracções, ou seja, deixou de ser crime. Conforme dispõe o artigo 2º/2 a descriminalização é aplicável mesmo em relação aos casos já julgados.
Nos casos em que ainda não foi deduzida acusação devem os autos ser arquivados. Nos casos em que houve acusação mas ainda não houve julgamento deve ser proferido despacho de declaração judicial de extinção do procedimento criminal, sem prejuízo de o processo prosseguir para julgamento do pedido cível, se este foi deduzido.
A acção civil por falta de pagamento pode ser instaurada no prazo da 1 ano a contar da data de notificação do arquivamento do processo ou da declaração judicial de extinção do procedimento criminal (artigo 3º/1 do Preâmbulo do Decreto-Lei nº 316/97). Não releva portanto o tempo decorrido entre a data de apresentação da queixa e a data de notificação do arquivamento. Em processo pendente que se encontre em fase de julgamento e em que tenha sido formulado pedido de indemnização civil o lesado pode requerer que o processo prossiga apenas para efeitos de julgamento do pedido civil, devendo tal requerimento ser efectuado até 15 dias após a recepção da notificação de extinção do procedimento criminal.


Mudança de natureza do crime
O crime assume agora sempre a natureza semi-pública, nos termos do nº 1 do artigo 11º, mas antes da alteração legislativa de 1997 podia ter natureza particular, semi-pública ou pública, na medida em que o Decreto-Lei nº 454/91 remetia para o regime geral de punição do crime de burla.
Têm sido controversas as situações em que um crime de natureza pública passa a ser um crime semi-público. Se um crime é de natureza pública, o direito de queixa é inexistente. No caso em que o crime se converte em semi-público, o direito de queixa só existe na ordem jurídica a partir do momento em que a norma típica o cria. Se no regime novo o queixoso tem de exercer o direito de queixa no prazo de 6 meses, o que fazer quando há muito decorreu esse prazo nos processos pendentes?
1ª solução: arquivar todos os processos por ilegitimidade superveniente do MP;
2ª solução: o queixoso tem de exercer o direito de queixa no prazo de 6 meses após a entrada em vigor da nova lei. Aqui há divergência quanto ao facto de saber se a pessoa deve ser notificada ou não. Podemos entender como razoável que é de toda a conveniência informar o ofendido da alteração legislativa e da necessidade de efectuar a queixa para o prosseguimento do procedimento criminal, mas não podemos dizer que existe um verdadeiro direito à notificação (Acórdão do tribunal da Relação de Lisboa, de 30/01/96, Colectânea de Jurisprudência, Tomo I-154 e Acórdão do Tribunal Constitucional nº 523/99, Diário da República, II série, 6 Março 2000).


CONCURSO DE CRIMES

Cheque sem provisão e burla
Ex: A pôs um anúncio no jornal para vender um Pajero por 3500 contos. Foi contactado por B e C que o queriam comprar. Encontraram-se com A e passaram um cheque pré datado, tendo recebido a chave, o livrete e o registo de propriedade.
Posteriormente contactaram A dizendo que queriam substituir o cheque. Rasgaram-no e entregaram outro cheque de uma conta que não era deles e tinha o valor errado.
B e C tinham planeado este estratagema para ficarem com o jipe sem o pagarem.
Ac. T.R.P, de 3 de Maio de 2000, CJ, III-223

Não existe um entendimento uniforme na jurisprudência no que diz respeito a saber se constitui um crime de burla a entrega de um cheque sem provisão para a obtenção de bens e serviços. A maioria da jurisprudência analisada entende que, para que exista crime de burla, para além da mera entrega do cheque sem provisão, é necessária uma conduta astuciosa que crie no tomador o convencimento sobre a existência de provisão. Exige-se que a vontade da vítima seja viciada e colocada em erro ou engano sobre factos, através de um comportamento adequado (normalmente através de uma certa encenação) destinado a conferir credibilidade a certas palavras ou situações (ex: pessoa que utiliza cheque de conta que não lhe pertence aparentando ser uma pessoa de posses através do seu vestuário e adereços que utiliza, fazendo compra de valor avultado).
Como meio de engano não basta que o sacador, no momento da entrega do cheque, guarde silêncio sobre a falta de provisão, pois quem recebe o cheque tem consciência da sua possível falta de provisão, a não ser que o sacador utilize meio astucioso para provocar o convencimento que o cheque tem cobertura. Se o cheque é utilizado com meios astuciosos temos uma situação de concurso aparente entre o crime de burla e cheque sem provisão, sendo o agente punido por rime de burla por ser este o mais amplo.
No nosso caso há um crime de burla. Há uma conduta astuciosa que coloca a vítima numa situação de erro, pensando que eles iam pagar. Os agentes criaram no vendedor uma situação de engano, conseguindo provocar um prejuízo patrimonial no vendedor porque ele lhes entregou o jipe e todos os seus documentos. O crime consumou-se no segundo momento, ou seja, quando o segundo cheque é assinado (o cheque pré datado não é penalmente protegido e a resolução criminosa dá-se quando entregam cheque que não é da sua conta).
O que é necessário analisar é a resolução criminosa do agente no momento da prática do facto. Tal é o que nos diz o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 19/01/05, no Processo 3965/04, in www.dgsi.pt.



BIBLIOGRAFIA

Figueiredo Dias, Parecer na Colectânea de Jurisprudência, ano XVII, 1992, Tomo III, pág. 65 e seg.;

Germano Marques da Silva, Regime Jurídico-Penal dos Cheques Sem Provisão, Principia, 1ª Edição;

Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, Editora Rei dos Livros, 2004;

Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, Almedina, 2002

Manuel Ferreira Antunes, Regime Jurídico do Cheque Sem Provisão, Livraria Petrony, 2005;

Miguez Garcia, O Risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal, I – Elementos da Parte Geral, policopiado, 2004;

Vários, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999