sábado, março 24, 2007

Declarações do co-arguido

(Texto de Mariana Fonseca Couto, para a sessão de 17 de Novembro de 2006)

Art. 133º CPP - Impedimentos
Estão impedidos de depor como testemunhas:
a) O arguido e os co-arguidos no mesmo processo ou em processos conexos, enquanto mantiverem aquela qualidade;
b) As pessoas que se tiverem constituído assistentes, a partir do momento da constituição;
c) As partes civis.
2. Em caso de separação de processos, os arguidos de um mesmo crime ou de um crime conexo podem depor como testemunhas, se nisso expressamente consentirem.

1ª questão: Conceito de co-arguido[1]
“co-arguidos no mesmo processo ou em processos conexos” e “arguidos de um mesmo crime ou de um crime conexo”

A norma em apreço não consagra um conceito unívoco de co-arguição. Pelo contrário, assume uma posição eclética, admitindo uma dupla definição conceptual:
Conceito formal de co-arguido- Serão co-arguidos aqueles que respondem conjuntamente num mesmo processo. Resulta, portanto, esta definição da estrita configuração processual.
Conceito material de co-arguido- Serão co-arguidos aqueles que respondem em processos onde ocorra uma ligação entre os crimes prevista no art. 24º CPP. Resulta, agora, esta definição do nexo relevante entre as imputações.

2ª questão: Finalidade do impedimento
Visa-se neste normativo impedir o depoimento de arguidos na qualidade de testemunha. Este impedimento baseia-se na incompatibilidade natural entre as duas posições processuais, designadamente porque a sujeição do arguido ao regime da prova testemunhal, constituiria um agravamento da sua posição jurídico-processual.
Senão vejamos,

ARGUIDO
- dispõe do direito ao silêncio.
art. 61.º/1 c) CPP
- não está obrigado a responder, pelo que a sua recusa não configura o crime de desobediência p. e p. art.348ºCP.
- não está obrigado a responder com verdade, não preenchendo com tal conduta a tipicidade do crime de falsas declarações p. e p. art.359º CP.

TESTEMUNHA
- não pode recusar-se a responder, a menos que alegue que da resposta pode resultar a sua responsabilidade penal. art.132º/2 CPP
- tem o dever de responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas.
art. 132.º/1d) CPP

Tomando de empréstimo as palavras do Ac. TC 304/2004:
“A justificação do impedimento de o co-arguido depor como testemunha tem como fundamento essencial uma ideia de protecção do próprio arguido, como decorrência da vertente negativa da liberdade de declaração e depoimento … que se traduz no brocado latino nemo tenetur se ipsum accusare, o também chamado privilégio contra a auto-incriminação.”

3ª questão: Delimitação material do impedimento.
- Quanto aos crimes cometidos reciprocamente
Deverá aqui manter-se o impedimento do ofendido/arguido depor na qualidade de testemunha?
Refira-se, primeiramente, que pelo facto de ser ofendido só não pode testemunhar quando se constitui assistente, conforme o disposto no art.133º/1b) CPP.
Assim, se estivermos perante uma situação de co-arguição em sentido formal o meio de prova idóneo serão as declarações de arguido. Quando não exista comunhão processual, a co-arguição material permite que o arguido deponha na qualidade de testemunha, se nisso consentir expressamente.

O STJ pronunciou-se já sobre uma questão próxima[2]:
A e B envolvem-se em confronto físico, do qual resultaram lesões corporais para ambas. C tomando partido de A, discute com B que, entretanto, se armara de espingarda e em resposta dispara sobre C causando-lhe a morte.
A e B foram julgadas pelo crime de ofensas corporais e B foi julgada ainda pelo crime de homicídio. Na produção da prova do crime de homicídio, A poderá ser ouvida como testemunha?

O STJ deu resposta afirmativa a esta questão no Ac. de 28 de Novembro de 1990. Explana-se aí que o impedimento legal “tem de ser interpretado cum grano salis, isto é, no sentido de que só existe em relação às infracções em que haja co-arguição”, o que o Tribunal entendeu não se verificar, pois “sendo A apenas acusada de ofensas corporais (recíprocas) na pessoa de B, só quanto a este delito é desta co-arguida “.
Há que atentar que esta possibilidade conjugada com as regras de produção de prova em audiência de julgamento pode conduzir a um quadro de esquizofrenia, onde se trata a mesma pessoa, ora como arguida, ora como testemunha, com todas as diferenças ao nível de estatuto processual supra mencionadas.

4ª questão: Delimitação temporal do impedimento
- “enquanto mantiverem aquela qualidade”

Deste modo, ocorre a cessação do impedimento em simultâneo com a cessação definitiva da qualidade de arguido, nomeadamente por extinção da responsabilidade criminal por morte, amnistia ou prescrição do procedimento criminal.

Nas situações de cessação não definitiva da qualidade de arguido, designadamente no arquivamento por insuficiência de prova, entende Medina Seiça[3] que deve o impedimento manter-se, mas agora com carácter relativo, podendo depor como testemunha mediante prévio consentimento, nos termos no nº2. Deixa-se, assim, o impedimento na disponibilidade do declarante, pois persiste a possibilidade de perseguição penal e a simples protecção conferida a toda a testemunha de recusar a resposta não se afigura suficiente.

- “em caso de separação de processos…”
O conceito formal de arguido deixa de verificar-se pela perda de comunhão processual, mantendo-se o conceito de co-arguição material. Mas pressupõe o nº2, ao prescrever a possibilidade de depoimento mediante consentimento que o processo, embora separado, se mantenha em curso.

E se o processo separado findar? A questão que se coloca, então, é saber “se, no caso de separação de processos, ao arguido já julgado no processo inicial é aplicável ou não o disposto no artigo 133º, nº 1 e nº 2, do CPP, quando chamado a depor no julgamento de outro co-arguido, podendo o seu depoimento ser utilizado como meio de prova na formação da convicção do tribunal. … Ora, por este (arguido) já se encontrar definitivamente julgado e sendo certo que a qualidade de arguido se conserva apenas durante o decurso do processo, em conformidade com o preceituado no artigo 57º, nº 2 CPP, pressupondo o referido nº 2 do artigo 133º a manutenção da qualidade de arguido, isto é, que o respectivo processo se mantenha em curso. Assim sendo, no caso de separação de processos, cessada a qualidade de arguido de um mesmo crime ou de um crime conexo, e à semelhança do que indiscutivelmente acontece quando se trata do mesmo processo ou de processos conexos - cfr. a alínea a) do nº 1 do citado artigo 133º - nenhuma razão existe para que não seja, obrigatoriamente, prestado o respectivo depoimento como testemunha.” Ac. TC 181/2005

Cfr. art. 133º/2 do Anteprojecto do CPP: “Em caso de separação de processos, os arguidos de um mesmo crime ou de um crime conexo, mesmo que já condenados por sentença transitada em julgado, só podem depor como testemunhas se nisso expressamente consentirem”

E se os processos sempre tramitaram separadamente?
Continuam impedidos de testemunhar, mesmo que nisso consintam, por efeito do conceito material de co-arguição?
Ou não se verifica qualquer impedimento podendo testemunhar nos termos gerais?

5ª questão: Natureza do impedimento
Em situações de comunhão processual, maxime de co-arguição formal, o impedimento assume carácter absoluto, pois mostra-se inderrogável mesmo com o consentimento do declarante.
Já em situações de co-arguição material, o impedimento reveste carácter relativo, uma vez que o consentimento expresso do co-arguido declarante é suficiente para a legalidade deste meio de prova, nos termos do disposto no art.133º/2 CPP.
Neste sentido pronuncia-se o Ac. TC 304/2004: “o Tribunal entende que a norma que estabelece o assinalado impedimento relativo visa, exclusivamente a protecção dos direitos do co-arguido, enquanto tal, no processo pertinente, em ordem a garantir o seu direito de se não auto-incriminar.”

6ª questão: Violação do impedimento
A lei não comina qualquer sanção para o facto de, em violação do comando legal, se sujeitar o co-arguido ao regime da prova testemunhal.
Germano Marques da Silva[4] sustenta que estamos perante uma mera irregularidade. Uma vez que nem os arts. 119º e 120º CPP, nem mesmo o art.º 133º/2 CPP estabelecem qualquer nulidade para esta situação.
No entanto, vendo com Costa Andrade[5] no art. 118º/3 CPP a “expressão positivada da intencionalidade do legislador de consagrar as proibições de prova” configuramos “uma disciplina que transcende o regime das nulidades.”
Na verdade, com o impedimento pretende-se proibir que advenham ao processo declarações de arguido sob a forma de depoimento testemunhal. Pelo que, consubstanciando o impedimento uma verdadeira proibição de prova, acarretaria a sua violação uma proibição de valoração de prova.

É configurável nesta violação do impedimento uma diminuição da garantias de defesa do co-arguido não declarante?
A esta questão responde o Ac. TC 304/2004 em sentido negativo, porquanto “não pode, desde logo, conceber-se que a eventual ofensa do disposto no artigo 133º n.º 2 do CPP, por o co-arguido não ter expressado o seu consentimento - implique a violação das garantias de defesa, constitucionalmente asseguradas, do arguido que está a ser julgado no processo onde o depoimento é prestado. Se violação dessas garantias de defesa ocorre, ela só pode operar relativamente ao co-arguido/depoente no processo separado, no ponto em que o depoimento funcione como prova da sua auto-incriminação.”

7ª questão: possibilidade de recusa de depoimento testemunhal por parte de parentes e afins de co-arguidos. Cfr. Art.134ºCPP
Se a testemunha não é familiar do arguido, mas os factos sobre os quais recai o depoimento constituem objecto de processo separado contra seu familiar. Adoptando o conceito material de co-arguido, deve poder recusar.

8ª questão: Valoração do conhecimento probatório das declarações de co-arguido
As declarações de co-arguido não estão sujeitas aos mecanismos processuais próprios da prova testemunhal, nem sequer se regem pelas mesmas motivações, pelo que não devem ser equiparados ao nível da valoração de prova. Desde logo,
- impossibilidade de depoimento sob juramento, art.140º/3 CPP;
- exigência legal de coerência entre declarações de diferentes co-arguidos, art. 344º/3 CPP;
- impossibilidade de submissão ao contraditório, pois ao contrário do que sucede com testemunhas e assistentes, não há previsão legal no sentido de o defensor de um arguido poder formular directamente questões ao co-arguido declarante, mas apenas por intermédio do Tribunal, art.345º/2 CPP;
- risco de arguidos desavindos.

Justifica-se, deste modo, uma exigência acrescida não só na verificação da consistência deste material probatório, que deve passar sempre pelo crivo da corroboração, como também na motivação da decisão.

Soluções apontadas pela doutrina:
- Rodrigo Santiago defende que “as declarações assim prestadas por um ou mais dos co-arguidos – na decorrência, repete-se, de co-arguição – não podem validamente ser assumidas como meio de prova relativamente aos outros; servindo tais declarações, única e exclusivamente, como meio de defesa do arguido ou arguidos que as tiverem prestado – art.º 343.º, n.º 2 do CPP”[6]
- Teresa Beleza[7] conclui que “o depoimento de co-arguido, não sendo, em abstracto, uma prova proibida em Direito português, é no entanto um meio de prova particularmente frágil, que não deve ser considerado suficiente para basear uma pronúncia; muito menos para sustentar uma acusação. Não tendo esse depoimento sido controlado pela defesa do co-arguido atingido, nem corroborado por outras provas, a sua credibilidade é nula. Na medida em que esteja totalmente subtraído ao contraditório, o depoimento de co-arguido não deve constituir prova atendível contra o(s) co-arguido(s) por ele afectado(s).A sua valoração seria ilegal e inconstitucional”.
A este propósito pode ler-se o recente Acórdão que decidiu o caso Joana, onde a mãe e o tio da vítima foram condenados, para além de outros crimes, por homicídio qualificado. Destaca-se o voto de vencido, no qual se discorda da decisão condenatória da arguida relativamente ao crime de homicídio qualificado por ter sido fundamentada “apenas” na reconstituição dos factos feita com a colaboração do outro co-arguido. Salienta o voto de vencido que, “não sendo este um meio de prova proibido no que respeita ao co-arguido, é no entanto particularmente frágil não devendo ser considerado suficiente para sustentar uma condenação, salvo se houver corroboração por outras provas, pois o arguido que colabora na diligência não presta juramento, não está impedido de mentir tem interesse em sacudir as suas responsabilidades”. E conclui “a valoração das reconstituições sem corroboração quanto à arguida, como aconteceu, é ilegal e inconstitucional e devia ter conduzido à sua absolvição pelo crime de homicídio” (Ac. STJ- Proc. 363/06-5).

Esta constante dialéctica entre o impedimento e a sua cessação, a possibilidade de valoração das declarações prestadas e as consequências da violação do impedimento, traduz a ideia que Gössel tão bem soube transmitir:

“Do princípio do Estado de Direito decorre o dever de averiguar a verdade e, ao mesmo tempo, a delimitação dessa averiguação”.

NOTAS:
[1] Seguimos de perto o ensinamento de A. MEDINA SEIÇA, O conhecimento probatório do co-arguido, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra Editora, Studia Iuridica nº42, 1999, p. 17 ss.
[2] Vide A. MEDINA SEIÇA, ob. cit., p.61.
[3] Ob.cit. p.92.
[4] Curso de Processo Penal", II, pág. 123.
[5] Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, 1992, p. 194.
[6] RODRIGO SANTIAGO, "Reflexões sobre as «declarações do arguido» como meio de prova no CPP de 1987" , in "Revista Portuguesa de Ciência Criminal", Ano 4, fascículo 1, página 27.
[7] TEREZA PIZARRO BELEZA, “Tão amigos que nós éramos: o valor probatório do depoimento de co-arguido no Processo Penal Português” , in "Revista do Ministério Público", nº 74, página 39.