domingo, março 25, 2007

Reconhecimento de pessoas

(texto de Susana Matos Rocha para a sessão de 9 de Janeiro de 2007)

ART. 147.º CPP

O reconhecimento de pessoas é um dos meios de prova previstos no CPP.
Quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa, solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, indicando todos os pormenores de que se recorda. Seguidamente é-lhe perguntado se já a tinha visto e em que condições. Por fim, é interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação. Não sendo a identificação cabal, afasta-se quem a ela deve proceder e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é posicionada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual. Havendo razão para crer que a pessoa chamada a fazer a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento e este não tiver lugar em audiência, deve o mesmo efectuar-se, se possível, sem que aquela pessoa seja vista pelo identificado.
O reconhecimento que não obedecer a este formalismo não tem valor como meio de prova. Maia Gonçalves considera que o desrespeito por tal formalismo constitui um vício de inexistência.

A descrição preventiva da pessoa a reconhecer efectuada pelo sujeito activo visa um certo controlo da credibilidade do reconhecimento e consequentemente da sua efectiva atendibilidade.
Já o formalismo prescrito no n.º 2 do normativo legal em análise, procura garantir, na medida do possível, a “neutralidade psíquica” do sujeito activo, tentando reduzir, segundo Medina de Seiça, “um dos maiores factores de distorção dos actos recognitivos que decorre do facto de quem é chamado a reconhecer, sobretudo num ambiente de tensão, sentir-se constrangido a identificar positivamente alguém – o chamado yes effect”.

Este meio de prova não pode ser confundido com a prova testemunhal e com o juízo de imputação subjectiva que neste domínio seja efectuado., apesar dos diversos pontos de contacto entre tais meios de prova.

O cuidado que o legislador pôs na regulação do acto de reconhecimento evidencia a importância, a relevância prática para a formação da convicção probatória e a falibilidade deste meio de prova, quando não forem tomadas as devidas preocupações. Daí que o legislador tenha cominado o desrespeito das regras estabelecidas na lei com a invalidade do reconhecimento – n.º 4 do art. 147.º.
“A rigorosa ritualidade do procedimento é destinada a assegurar a atendibilidade do resultado e a impedir que o reconhecimento seja o fruto de sugestões, da intimidação ou de convencimentos pré-formados”, chegando mesmo a afirmar-se na doutrina italiana que há, da parte do legislador, uma certa desconfiança quanto a este meio de prova.
De facto, o modus operandi tabelar do acto de reconhecimento foi pormenorizadamente regulado pelo legislador, só tendo valia probatória se substancial e formalmente respeitadas tais regras de procedimento.
O acto de reconhecimento é de extrema importância pois do que se trata é de reconhecer o verdadeiro culpado do crime.
Nas palavras de Medina de Seiça atenta a sua “elevada eficácia de convencimento” ou “intensa eficácia persuasiva” o acto de reconhecimento pode assumir na concreta valoração do probatório disponível, um peso determinante do juízo penal.
O auto de reconhecimento da identidade tende a merecer na prática judiciária um valor reforçado, funcionado quase como uma presunção de culpabilidade do suspeito, pelo menos na sua fase indiciária.
O contexto normal do acto de reconhecimento verifica-se durante a investigação.

Várias são as problemáticas suscitadas por este meio de prova:

1) A validade do reconhecimento efectuado na sequência da declaração de nulidade de um anterior reconhecimento relativo ao mesmo arguido.
O Ac. N.º 199/04, de 24.03.04 do TC, reflecte que, quando “antecedido de um reconhecimento inválido, um reconhecimento regular não beneficiará já de todas as condições de genuinidade do acto, sendo igualmente possível que um eventual erro cometido no primeiro reconhecimento se converta numa realidade psicológica para quem procedeu a esse reconhecimento”. Acrescentando que “será aí que, pode funcionar a livre convicção do julgador na apreciação da prova, tendo em conta não só o resultado do reconhecimento em causa como todo o material probatório que lhe é presente em julgamento, já que é em julgamento que o arguido tem todas as possibilidades de exercer o contraditório perante esse material, visando, designadamente, instalar, no mínimo, a dúvida sobre os reconhecimentos (válidos) efectuados”.
O TC concluiu assim, que a norma do art. 147.º, nº4, interpretada no sentido de que a nulidade ali cominada só se aplica ao acto processual em que se verificou, e já não se estende ao reconhecimento posterior, feito na sequência daquela declaração de nulidade, não viola o art. 32.º, n.º’s 1 e 2 da CRP.

2) Reconhecimento do arguido efectuado em audiência de julgamento.
O STJ tem entendido que o reconhecimento do arguido efectuado em audiência de julgamento não está sujeito aos requisitos estipulados no art. 147.º, só se aplicando tal formalismo à prova por reconhecimento nas fases de inquérito e da instrução, atenta a incompatibilidade entre as regras de reconhecimento naquelas e no julgamento.
O Supremo justifica a valoração de tais reconhecimentos efectuados em audiência, com base na ideia de não estarem abrangidos por uma proibição directa da lei e de se integrarem no contexto de um meio de prova expressamente previsto – a prova testemunhal – onde é possível o contraditório.

O TC, no seu Ac. Nº 137/2001, julgou ser claramente lesivo do direito de defesa do arguido (art. 37.º, nº.1 da CRP), a interpretação do art. 127.º CPP, no sentido de que o princípio da livre apreciação da prova permite valorar, em julgamento, um acto de reconhecimento realizado sem a observância de nenhuma das regras previstas no art. 147.ºCPP quando o reconhecimento se faça em inquérito ou instrução.

De facto, o que tem sido entendido pela jurisprudência do Supremo e do TC, é que se a testemunha que depõe em audiência de julgamento, tendo na sua pessoa certa pessoa na posição de arguido, a este atribui a prática de determinados factos, a questão que é colocada ao tribunal é a de saber se aquela subjectivação que faz quanto ao arguido se revela capaz de fundar a convicção do tribunal, na apreciação crítica do conjunto de provas produzidas em julgamento. Não estando pois em causa saber qual é a pessoa, dentre várias, a quem os factos constantes da acusação ou pronúncia podem ser atribuídos, mas sim saber se a imputação feita em tal depoimento àquela concreta pessoa pode ser valorado segundo o princípio da livre apreciação da prova.
Diferente será a situação em que pressuposta que seja a necessidade de reconhecimento da pessoa, considerada como possível autora dos factos, se coloca o identificante na posição de ter de precisar, entre várias pessoas colocadas anonimamente na sua presença, quem é que corresponde ao retrato mnemónico por ele retido.
É que neste caso, a finalidade do acto descrito reside no apuramento da identidade da pessoa que corresponde àquele retrato. Trata-se aqui de um específico meio de conhecimento de factos, onde o reconhecimento assume um valor autónomo de prova, não sendo legítimo conduzir o seu valor probatório ao domínio da prova testemunhal, libertando a prova por reconhecimento do rígido formalismo estabelecido no art. 147.º do CPP, ainda que produzido em sede de julgamento.

3) Será obrigatória a presença de defensor no acto de reconhecimento?
O art. 147.º do CPP não impõe que na realização dos autos de reconhecimento o indiciário agente do crime tenha de ser assistido por um defensor.
Também não é uma situação em que a lei exige a presença do defensor do arguido, não constituindo, por isso, a nulidade a que alude a al. c) do art. 119.º do CPP.

“Perigos” do Reconhecimento
A credibilidade conferida ao reconhecimento positivo tem sido contrariada pelos inúmeros estudos que nos últimos anos têm vindo a ser realizados em diversos países.
O reconhecimento tem vindo a ser considerado como um dos meios de prova mais problemáticos e de resultados menos fiáveis, ainda que se tenham cumprido escrupulosamente o formalismo estabelecido na nossa ou noutras legislações, o qual visa precisamente reduzir a margem de erro deste meio de prova.
Tais trabalhos têm revelado nomeadamente:
§ Que a testemunha ocular tende a fazer um julgamento relativo, mesmo quando avisada de que o suspeito pode não se encontrar entre as pessoas que compõem o painel, pois procura localizar a pessoa que mais semelhanças apresenta com o agente do crime por ela visualizado.
§ O fácil sugestionamento de que pode ser vítima a pessoa que deve realizar o reconhecimento, como através do comportamento da pessoa que orienta a diligência.
O próprio grau de confiança que a testemunha ocular tem na precisão da identificação efectuada, segundo tais estudos, depende as mais das vezes do comportamento corroborante do investigador que dirigiu as operações e da própria confirmação da sua identificação por outras testemunhas, do que da nitidez das sua recordações.

Referem tais estudos que mais importante do que conhecer o grau de confiança manifestado pela testemunha é averiguar as condições em que ela observou o agente do crime e o tempo de que dispôs para o fazer.

Por tudo isto aconselham muitos psicólogos que, para se incrementar a fiabilidade deste meio de prova, sobretudo quando seja o único ou o decisivo elemento da identificação de um suspeito, se adoptem especiais cautelas, designadamente:
§ Alargamento do número de pessoas que integram o painel de reconhecimento;
§ Prévia apresentação ao identificante de um painel de reconhecimento em que o suspeito se não encontra para verificar se a mesma tem a propensão para efectuar um julgamento relativo;
§ Exigência de que a pessoa que conduz o reconhecimento pessoal não tenha conhecimento da identidade do suspeito;
§ Exigência de que o identificante seja previamente informado de que o suspeito pode não se encontrar entre as pessoas que compõem o painel de reconhecimento;
§ Exigência de que todas as pessoas que compõem o painel reúnam as características indicadas previamente pela testemunha, não devendo nenhuma delas apresentar, quanto a tais aspectos nenhuma característica dissonante (v.g, cumprimento e cor do cabelo, etnia, estatura, etc…).

RECONHECIMENTOS FOTOGRÁFICOS

Os reconhecimentos fotográficos são uma diligência policial de investigação válida para identificar o possível agente do crime, se bem que de natureza subsidiária e de resultados ainda mais duvidosos do que os que resultam de um reconhecimento presencial. Porém, para ter valor como prova, o reconhecimento fotográfico deve ser seguido de um reconhecimento pessoal, efectuado nos termos previstos no Código de Processo Penal. A rigorosa ritualidade do procedimento previsto na lei é destinada a assegurar a atendibilidade do resultado e a impedir que o reconhecimento seja o fruto de sugestões, da intimidação ou de convencimentos pré-formados.

O RECONHECIMENTO DE OBJECTOS (art. 148.º CPP) faz-se por referência ao método do reconhecimento de pessoas.

O art. 149.º CPP regula a PLURALIDADE DE RECONHECIMENTO: reconhecimento da mesma pessoa ou do mesmo objecto por várias pessoas e o reconhecimento pela mesma pessoa de várias pessoas ou vários objectos, sendo aplicável o estatuído nos arts. 147.º e 148.º.

Relembrando ainda que pelo facto do CPP não impor meios de prova taxativos, consentindo que possam ser produzidas provas atípicas, cabe referir o RECONHECIMENTO VOCAL. Este meio de prova tem interesse em casos de ameaças, reivindicação de atentados, pedidos de resgate, ou unicamente para desestabilizar psicologicamente alguém. “ A descrição acústica dos sons e das palavras pode efectuar-se através de técnicas variadas que consistem em detectar, visualizar e quantificar certos parâmetros duma assinatura vocal” (Alain Buquet, p. 190).É deste modo que a Lei n.º 5/2002 de 11 de Janeiro, que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, prevê, no capítulo designado como “outros meios de prova”, a admissibilidade do registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado.

1 Comments:

Blogger Nuno said...

É válido o reconhecimento do agente do crime, efectuado por um dos co-arguidos do mesmo processo?

06 dezembro, 2008 15:31  

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