sábado, março 24, 2007

Declarações do assistente e das partes civis

(texto de Sara Costa, para a sessão de 19 de Dezembro de 2006)

1- Distinção entre Assistente e Ofendido e o Lesado

Devemos distinguir, introdutoriamente, a figura do Assistente das de Ofendido e Lesado.
O ofendido não é sujeito processual, a não ser que se constitua assistente, enquanto não o fizer tratar-se-á apenas de um mero participante processual. Nos termos do art. 68.º n.º 1 al. a) considera-se ofendido o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
O lesado é aquele que sofreu danos ocasionados pelo crime (art.º 74.º n.1 do CPP), podendo, nestes termos, coincidir ou não com a pessoa do ofendido. Coincidindo poderá, também, constituir-se assistente. Não coincidindo, apenas, poderá intervir no processo como parte civil, no âmbito do pedido de indemnização civil, em conformidade com o disposto no art.º 74.º n.º2 do CPP em que se pode ler que a intervenção processual do lesado se restringe à sustentação e à prova do pedido de indemnização civil.
Quanto ao Assistente o código não nos dá qualquer definição, limitando-se a indicar a sua posição processual e atribuições. Assim, o art.º 69.º, do CPP, dispõe que os assistentes têm a posição processual de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei.
Podemos vislumbrar, assim, a existência por parte destes intervenientes de um interesse na causa, tratando-se de verdadeiros sujeitos do processo, partes interessadas que sustentam uma posição no litígio.

2 – A prova testemunhal e o impedimento de testemunhar do Assistente e das Partes Civis

A prova testemunhal é, fundamentalmente, aquela que resulta dos depoimentos em que se procede à narração de factos juridicamente relevantes de que tem conhecimento por meio da visão ou audição, podendo, contudo, também resultar dos demais sentidos, desde que se mostre apropriado para a prova dos factos litigiosos. A prova testemunhal incide, ainda, sobre os factos considerados relevantes para valorar a credibilidade do testemunho, nomeadamente circunstâncias pessoais da testemunha.

O art.º 133, do CPP, estabelece impedimentos de depor de certas pessoas, relativamente a um concreto processo. Estes impedimentos resultam do especial posicionamento desses intervenientes devido aos seus interesses imediatos e pessoais no desenvolvimento da acção penal naquele caso em concreto.
Estão assim impedidos de depor como testemunhas, além do arguido e do co-arguido no mesmo processo ou em processos conexos, a pessoa que se tiver constituído assistente (e a partir da sua constituição) e as partes civis (quando se constituem como tais).

O actual CPP não faz qualquer distinção entre declarante e testemunhas, contrariamente ao que sucedia no CPP/29 que distinguia no elenco das pessoas que não podiam ser testemunhas:
- aquelas cujo depoimento era absolutamente proibido (os interditos por demência);
- e as que , embora incapazes para serem testemunhas, podia depor como declarantes, sendo que estes eram aquelas pessoas, relativamente às quais, existia razão de suspeição quanto à credibilidade dos seus depoimentos.
O Dr. Germano Marques da Silva vê com bons olhos a extinção desta diferenciação uma vez que a credibilidade da testemunha há-de ser apreciada em livremente pelo tribunal, tendo em conta todas as circunstâncias que podem contribuir para a sua maior ou menor credibilidade.[1] Questão que abordaremos infra mais pormenorizadamente.
Terminologicamente, também são feitas diferenças, assim, a expressão “tomar declarações” ou “prestar declarações” é algo que a lei reserva para os arguidos, os assistentes e as partes civis, enquanto que as testemunhas são alvo de “inquirição” a qual se traduz em “depoimentos”.

O Supremo Tribunal de Justiça já entendeu [2]que quando na al c)do art.º133 do CPP se fala em «partes civis», não pode deixar de referir-se aos lesados meramente civis, àqueles que não são ofendidos pelos crimes imputados ao arguido, os que não são titulares dos bens jurídicos afectados pela conduta do agente. Assim, segundo esta orientação do STJ, ainda que tenha formulado o pedido cível, o ofendido não fica impedido de depor como testemunha, por o referido preceito apenas abranger os casos em que se está perante lesados meramente civis.
Esta interpretação não faz sentido, uma vez que, ao deduzir o PIC o ofendido torna-se interessado na condenação, encabeçando um interesse nitidamente pessoal que o torna suspeito e deve importar uma especial valoração das suas declarações.

O Ac. do STJ de 10 de Outubro de 2001[3], por sua vez, diz que a proibição prevista na al. c) don.º1 do art. 133 do CPP só pode ser entendida com o alcance desse limitar às situações que as partes civis se apresentam a deduzir pedido contra os próprios arguidos a que os factos respeitam, ou seja, as partes civis, só porque o são, não estão impedidas de testemunhar, mas apenas o estão relativamente aos factos que tenham a ver com o arguido ou arguidos visados.

3 – Declarações dos Assistentes e das Partes Civis

Apesar de não poderem depor como testemunhas o Assistente e as Partes Civis podem prestar declarações em qualquer fase do processo, consubstanciando as mesmas um meio de prova, genericamente intitulado “das declarações do arguido, do assistente e das partes civis”.
Este meio de prova é equiparável à prova testemunhal, não tendo especialidades de relevo, esgotando-se o seu tratamento na norma do art. 145º, que se passará a transcrever:

“1. Ao assistente e às partes civis podem ser tomadas declarações a requerimento seu ou do arguido ou sempre que a autoridade judiciária o entender conveniente.[4]

2. O assistente e as partes civis ficam sujeitos ao dever de verdade e a responsabilidade penal pela sua violação.[5]

3. A prestação de declarações pelo assistente e pelas partes civis fica sujeita ao regime de prestação da prova testemunhal, salvo no que lhe for manifestamente inaplicável[6] e no que a lei dispuser diferentemente.[7]

4. A prestação de declarações pelo assistente e palas partes civis não é precedida de juramento.[8]

5. Para o efeito de serem notificados, o assistente ou as partes civis indicarão a sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha.

6. A indicação de local para efeitos de notificação, nos termos do número anterior, é acompanhada da advertência ao assistente ou às partes civis de que a mudança da morada indicada deve ser comunicada através da entrega de requerimento ou a sua remessa por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrarem a correr nesse momento.”

A única excepção relativamente ao regime geral da prova testemunhal diz respeito ao facto de tais declarações não serem precedidas de juramento, estando, no entanto, igualmente sujeitos ao dever de verdade material, sob pena de responsabilização criminal em caso de violação desse dever.[9]

A especificidade da regulamentação deste meio de prova na fase do julgamento:

Na fase de julgamento esta matéria aparece regulamentada no art.º 346.º e 347.º do CPP, estipulando-se nos mesmos que as perguntas só podem ser feitas pelos juizes ou jurados ou pelo presidente. Restando ao MP, ao defensor e aos advogados a possibilidade de requerer a formulação de perguntas e de esclarecimentos, contrariamente ao que sucede com as testemunhas.[10] Aplica-se nesta fase processual o exposto no art. 145.º n.º4: não prestam juramento, estando, apesar disso, sujeitos ao dever de verdade.
Relativamente às partes civis, diremos, ainda, que a sua presença na audiência de julgamento não constitui uma regra. Estando, em princípio, ausentes, só estando obrigadas a comparecer quando tiverem de prestar declarações que não possam recusar-se.[11]

4- Qual o vício que resulta da violação destes impedimentos em concreto?

O art.º 125 do CPP dispõe que «São admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei», e a prova testemunhal e por declarações é prova permitida por lei, mas por vezes existem impedimentos – art.º 133.ºCPP – ou certas declarações só podem ter lugar a requerimento e não oficiosamente – art.º 347, n.º 1.
Como o código não comina estas violações da lei como nulidade estamos perante uma irregularidade – art.º 118.º, n.º 1 e 2,e 123.º do CPP- devendo era arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos 3 dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo nalgum acto nele praticado.[12]

6- A questão do valor probatório das declarações do assistente e das partes civis.

Os Assistentes e as Partes Civis incorrem no crime de falsidade de depoimento ou declaração, tipificado no art.º 359.º do CPP, se faltarem à obrigação de verdade que sobre os mesmos impende. Este crime é punido com uma pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Por outro lado crime praticado pela testemunha que preste falsas declarações é punido com uma pena de prisão de seis meses a três anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias. Sendo o testemunho ajuramentado a pena de prisão aplicável poderá ir até aos 5 anos ou 600 dias de multa, nos termos do art.º 360 do CP.
Não se pode retirar da sensível agravação das penas do art.º360 do CP que, por os assistentes ou partes civis, terem um particular interesse na causa, a possibilidade de uma menor valoração dos seus depoimentos. Esta ideia iria contra o princípio da livre valoração probatória, e implicaria um juízo de suspeição sobre estes declarantes.[13]
A valoração normativa do juramento parece posta em causa pelo n.º1 do art.º 359 do CP, que aplica a mesma moldura penal a duas situações distintas quanto à existência deste. O Dr. Medina Seiça refere que esta circunstância parece evidenciar uma antinomia normativa.[14]
Por outro lado é de referir e de estranhar que o mesmo depoente (ofendido), consoante assuma o estatuto processual de testemunha ou de assistente, esteja submetido a dois regimes punitivos diversos.
Para concluir, dir-se-á, que “esta diversidade de regimes é indiciadora de uma maior dignidade probatória da prova testemunhal em relação à prova por declarações. Tal não significa, porém, que na apreciação destes meios de prova vigore um sistema de prova legal, por força do qual o juiz esteja vinculado ao depoimento da testemunha. Pelo contrário, vigora aqui inteiramente o princípio da livre apreciação da prova, nada impedindo o juiz de formar a sua convicção com base no relato de um declarante, que lhe oferecer maior credibilidade, em oposição com o depoimento contrário de uma testemunha”.[15]

NOTAS:
[1] GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de processo Penal, vol. II, Verbo, 2002, p. 144.
[2] Cfr. Acórdão do STJ, de 11-12-96, BMJ 426-299.
[3] Cit in MANUEL LOPES MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal, anotado, Almedina, 2002, p. 353.
[4] conf. arts. 283º, n.º 3, al. f) e 285º, n.º 2 do Código Processo Penal.
[5] Vejam-se os artigos 91º, 138º, n.º 3, in fine, 270º, n.º 2, al. a) e 346º, n.º 2 do Código Processo Penal; e, ainda, o art. 359º, n.º 2, do Código Penal.
[6] Sublinhado nosso.
[7] Tenham-se em conta a este propósito, muito especialmente as disciplinas decorrentes dos artigos 128º, nº 1 — “...prestará declarações sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto de prova” — e 124º, nº 1 — “constituem objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis”, ou seja, em regra, os factos que integrem o objecto do processo.
[8] Sublinhado nosso.
[9] Cfr. Art.º 358.º n.º 2 do Código Penal.
[10] Cfr. Art.º 348.º do Código Processo Penal.
[11] Cfr. Art.º 80.º do Código Processo Penal.
[12] Neste sentido vide Ac RC de 25/05/1994 in CJ, 1994, T. III, p. 52; e Ac. STJ de 15/01/98 e Ac. RC de 17/02/99 in www.dgsi.pt.
[13] Cfr. Art.º 127.º do Código Processo Penal.
[14] Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, p. 458.
[15] CASTRO SOUSA, A tramitação do processo penal, Biblioteca Jurídica, Coimbra Editora, 1983, p. 206 e ss. Sublinhado nosso. Neste mesmo sentido, FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, I, Coimbra Editora, 1974, p.207.