domingo, março 25, 2007

Escutas telefónicas

NOTAS SOBRE O REGIME LEGAL (AINDA) VIGENTE

(texto de Cláudia Jesus, para a sessão de 19 de Janeiro de 2007)

A intercepção e gravação de conversações, sejam elas telefónicas, sejam elas por qualquer outro meio, são sem dúvida uma restrição a direitos fundamentais dos cidadãos, mormente do direito à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar (art. 26.º n.º 1 da CRP) e à inviolabilidade do domicílio, da correspondência e das telecomunicações (art. 34.º, n.º 1 da CRP).
Certo é que a própria Constituição (art. 18.º n.º2) admite restrições a direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, nos casos expressamente nela previstos, tendo para tanto presente o princípio da proporcionalidade (em sentido amplo).
Neste âmbito, o artigo 34.º n.º 4 da Constituição, pese embora proíba a interferência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e em outros meios de comunicação, salvaguarda os casos previstos em matéria e processo criminal, nos quais se impõe, todavia, que a ingerência se coadune com o referido princípio da proporcionalidade.
Com efeito, dada a tensão entre interesses e direitos fundamentais tão relevantes – por um lado, os citados direitos fundamentais dos cidadãos, por outro, o interesse da eficácia da investigação criminal e o interesse comunitário de garantir o ius puniendi do Estado – tal ingerência, além de assumir um carácter excepcional, deve limitar-se ao estritamente necessário à salvaguarda do interesse constitucional na descoberta de um concreto crime e punição do seu agente (neste sentido, vide Ac. TC n.º 347/2001 – DR de 9/11/2001).
Apesar da reconhecida natureza lesiva (“danosidade social”) deste meio de obtenção de prova, é de salientar a sua importância no âmbito do processo penal. Na realidade, não podemos descurar a sua eficácia no combate a uma criminalidade cada vez mais organizada e complexa, cuja actividade é pautada por dispersão territorial e grande mobilidade e é, muitas vezes, suportada por recursos financeiros elevados. Também, por isso, exige-se que o recurso a este meio de obtenção de prova se restrinja à investigação de crimes mais graves e que o processo de prova não se sustente, apenas, nas declarações obtidas através deste meio, mas antes numa actividade de investigação criminal complementar que suporte um efectivo contraditório em audiência.

REGIME LEGAL:
Nos arts. 187.º a 190.º do CPP consagra-se a única forma de as autoridades poderem interferir, de forma lícita, nas comunicações dos particulares.
As escutas telefónicas são um meio de obtenção de prova, isto é, não são elementos probatórios, mas uma “actividade que visa obter declarações dotadas de aptidão probatória – fonte de conhecimentos de factos”[1], e só são admissíveis relativamente aos designados “crimes de catálogo”. Trata-se de uma enumeração taxativa onde se procura positivar o princípio da proporcionalidade[2].
Da sua inserção no capítulo IV do título III do CPP decorre que, sendo um meio de obtenção de prova, as escutas telefónicas só podem ser autorizadas depois de iniciado um inquérito[3] (vide Circular n.º 7/92, de 27.04, da PGR). Não podem as mesmas ser realizadas no âmbito de uma investigação pré ou extra processual, nem configurarem uma medida cautelar e de polícia.
Por outro lado, o sistema de catálogo de crimes ínsito no CPP tem subjacente a necessidade de existirem já nos autos elementos que tornam verosímil a prática do crime incluído no catálogo. Não bastam meras suspeitas: as investigações têm de assentar em “factos determinados”[4]. O legislador evitou usar a palavra “indícios” ou “suspeitas” em todo o capítulo das escutas telefónicas, referindo-se, ao invés, a “razões”. É um requisito que exige menos do que forte indícios, mas mais que “meras suspeitas ou boatos não confirmados” (Meyer[5]). Tal não impede, porém, o recurso às escutas telefónicas quando a investigação decorre contra agente indeterminado.
Acresce que a intercepção e gravação de conversações têm de ser ordenadas por despacho judicial (arts. 187.º n.º 1 e 269.º n.º 1 al. c), ambos do CPP).
Ao Juiz de Instrução Criminal caberá fazer a ponderação dos direitos e interesses envolvidos, determinando a realização das escutas apenas quando as mesmas revistam um “grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova”[6], o que acarreta que as mesmas sejam, essenciais e idóneas. Assim, esta diligência de aquisição de prova apenas deverá ser realizada quando o recurso a outra menos gravosa não se revele adequada[7], tendo em consideração factores como a natureza do crime, a qualidade dos agentes ou o modus operandi ultilizado.
O Anteprojecto, apresentado ao Governo pela Unidade de Missão para a Reforma Penal, no n.º 1 do artigo 187.º prevê que, a “intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razão para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível, ou muito difícil de obter” (os sublinhados são nossos). Esta nova formulação parece ser literalmente mais exigente do que a actual, embora a ponderação que está subjacente à nova redacção, na prática, é aquela que hoje é de perfilhar (princípios da subsidiariedade e proporcionalidade).

O nosso CPP não define quem são as pessoas que podem ser alvo de escutas, embora do n.º 5 do artigo 188.º resulte que poderão ser escutados o arguido, o assistente e outras pessoas. No Anteprojecto consagra-se o núcleo de pessoas que podem ser alvo de uma intercepção e gravação:
a) Suspeito ou arguido;
b) Pessoa relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido; ou
c) Vítima de crime, mediante o respectivo consentimento, efectivo ou presumido.
Esta delimitação do âmbito subjectivo das escutas telefónicas, atento aos princípios supra referidos, traz mais segurança ao regime e facilita a tarefa ao intérprete no momento da ponderação dos direitos e interesses em causa.

O n.º 3 do art. 187.º do CPP estabelece a proibição de intercepção e gravação de conversações ou comunicações entre o arguido e o seu defensor[8], salvo se o juiz tiver fundadas razões para crer que elas constituem objecto ou elemento de crime. A ratio do preceito é a tutela da esfera do segredo da defesa, a privacidade do defensor e da própria liberdade do exercício da profissão (veja-se nesta matéria as Circulares n.ºs 13/94, de 21/07/94 e 15/94[9], de 14/10/94).
E entre o arguido e as entidades abrangidas pelo dever de segredo profissional (v. art. 135.º CPP) ou entre aquele e as pessoas que com ele têm um laço de parentesco, afinidade ou convivência comunitária (v. art.134.º CPP)?
Podemos enunciar dois entendimentos opostos entre si: um em que se afirma que a lei apenas restringe as escutas às conversações entre o arguido e o defensor, logo, todas as demais são de admitir; outro, na qual se postula que a todas as escutas que contendam com factos em segredo deverá ser aplicado, por analogia, ou interpretação analógica, o regime previsto para as conversações com o defensor.
Costa Andrade[10] apenas admite a realização de escutas telefónicas a portadores de segredo profissional nas situações em que haja indícios de que as suas conversações configurem elas próprias a prática de um qualquer ilícito criminal, o qual não tem de ser um dos crimes previstos no n.º 1 do art. 187.º do CPP, bastando que seja um ilícito penal relacionado com o crime de catálogo objecto de investigação (v.g. favorecimento pessoal, auxílio material, receptação).
Cristina Ribeiro[11] defende uma forma de tentar conjugar a realização de escutas telefónicas com os mecanismos já estabelecidos na lei, com a qual concordamos, e que consiste na possibilidade de serem autorizadas intercepções e gravações de pessoas eventualmente conhecedoras de factos em segredo por decisão da primeira instância e no controlo a posteriori dessas escutas por aplicação desses mecanismos. Isto é, realizada a escuta, e verificando que os factos conhecidos por seu intermédio são relevantes para o esclarecimento da verdade processual, factos esses que colidem com uma esfera de segredo, a sua transcrição ficaria dependente de um incidente de quebra desse dever de segredo nos termos legais – arts. 135.º, 136.º, 137.º, 181.º e 182.º do CPP.
Situação diversa é aquela que se refere à compatibilização do regime das escutas telefónicas com a possibilidade de recusa de prestar depoimento por parte das pessoas referidas no art. 134.º do CPP, sendo certo que o regime vigente não consagra expressamente qualquer restrição à possibilidade de se proceder à intercepção e gravação de comunicações relativamente a essas pessoas.
Ao contrário do que sucede com os portadores de segredo profissional, o direito a não prestar declarações destas pessoas existe em homenagem ao interesse pessoal de não incriminar um familiar, que não poderá prevalecer sobre o interesse da comunidade em garantir os bens jurídicos tutelados pelas normas criminais. É por isso também que sobre estas pessoas não impende um dever de silêncio, contrariamente ao que acontece com os aqueles profissionais.
Idêntico raciocínio se pode fazer em relação ao arguido: a lei concede-lhe o direito ao silêncio, contudo, é pacífico que as declarações produzidas pelo arguido no âmbito das escutas telefónicas podem ser valoradas como meio de prova.
As declarações poderão ser, desta forma, valoradas[12], sendo certo que, o juízo de ponderação a fazer no momento em que se determina a transcrição de tais conversações deverá ser rodeado de maiores cautelas, dada a possibilidade de afectarem de forma mais gravosa a esfera de intimidade da vida privada.
No Anteprojecto prevê-se no art. 188.º n.º 6 al. b) que, “o juiz determina a destruição imediata dos suportes técnicos e relatórios manifestamente estranhos ao processo que:” (…) “Abranjam matérias cobertas pelo segredo profissional (…)”. Todavia, esta norma não esclarece definitivamente a questão, pelo que continua-se a deixar margem de actuação à doutrina e jurisprudência neste domínio.

Outra reflexão a fazer nesta matéria é aquela que se refere ao aproveitamento de “conhecimentos fortuitos” resultantes de escutas telefónicas. São conhecimentos fortuitos ou casuais os que a autoridade judiciária ou agente de investigação policial adquire no decurso da realização dos meios de obtenção de prova, acerca da prática de crime ou crimes que não constituíam, até aí, objecto da investigação[13].
A doutrina[14] e a jurisprudência[15] apontam para a admissibilidade de valoração de tais conhecimentos se:
- a recolha tiver obedecido aos requisitos legais referidos no art. 187.º;
- tais conhecimentos forem relativos a crimes contidos no catálogo do art. 187.º n.º 1 do CPP;
- o aproveitamento de tais conhecimentos tiver também interesse para a descoberta da verdade ou para a prova no processo para onde são transportados;
- o arguido tenha a possibilidade de controlar e contraditar os resultados de tal escolha.
Se forem relativos a crimes não incluídos no catálogo do art. 187.º n.º 1 do CPP, pelo contrário, tudo indica que não devem ser valoradas as escutas, já que tal implicaria um grave entorse ao princípio da legalidade. Neste caso, apenas podem (e devem) implicar para os órgãos de polícia criminal, a abertura de um inquérito, correspondendo à notícia do crime (arts. 241.º e 242.º do CPP)[16].
O n.º 7 do art. 187.º do Anteprojecto parece sufragar este entendimento.

Relativamente às formalidades das operações, é de salientar que deve ser lavrado auto de intercepção e gravação das comunicações telefónicas. Tal auto deverá conter[17]:
- a menção do despacho judicial que autorizou a diligência;
- a identidade da pessoa que a ela procedeu;
- a identificação do telefone interceptado;
- o tempo, modo e lugar da intercepção;
- o conteúdo da gravação necessário à decisão judicial, com referência/indicação das passagens consideradas relevantes para a prova[18].

O auto, juntamente com os registos das gravações, deve ser imediatamente levado ao conhecimento do juiz que tiver determinado a diligência (art. 188.º n.º 1 CPP). O conceito de “imediatamente” não se encontra concretizado na lei, por isso tem havido abundante jurisprudência[19] que tem por objecto a definição do prazo para submeter o auto e as respectivas gravações ao juiz.
Sobre esta exigência legal, vide o Ac. TC n.º 407/97, de 21/05/97, onde se julga inconstitucional a interpretação do artº188º “que não imponha que o auto de intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas seja, de imediato, levado ao conhecimento do juiz, de modo a este poder decidir atempadamente sobre a junção ao processo ou a destruição dos elementos recolhidos, ou de alguns deles, e, bem assim, também atempadamente, a decidir, antes da junção ao processo de novo auto de escutas posteriormente efectuadas, sobre a manutenção ou alteração da decisão que ordenou as escutas”.
O mesmo TC, no Ac. n.º 379/2004 de 01.06.04, publicado no DR, II série, n.º 170, de 21/07/04, declarou inconstitucional a norma constante do artº188º, 1, quando interpretada no sentido de uma intercepção telefónica, inicialmente autorizada por 60 dias, poder continuar a processar-se, sendo prorrogada por novos períodos, ainda que de menor duração, sem que previamente o juiz de instrução tome conhecimento do conteúdo das conversações. Declarou, ainda, inconstitucional a mesma norma numa interpretação que permita que a primeira audição do juiz das fitas gravadas possa ocorrer três meses depois do início das gravações.
Em regra, tal advérbio de tempo tem sido entendido na praxe judiciária como o período de 30 dias a contar da intercepção[20].
No Anteprojecto, prevê-se no nº 6 do art. 187.º que a intercepção e gravação de conversações ou comunicações são autorizadas pelo prazo máximo de três meses, renovável por períodos sujeitos ao mesmo limite, desde que se verifiquem os respectivos requisitos de admissibilidade. E os n.ºs 3 e 4 do art. 188.º dispõe que o órgão de polícia criminal leva ao conhecimento do Ministério Público, de 15 em 15 dias, a partir do inicio da primeira intercepção efectuada no processo, os correspondentes suportes técnicos, bem como os respectivos autos e relatórios. O MP deverá, em 48h, submeter tais elementos ao conhecimento do juiz.
Tal alteração mostra-se positiva na medida em que a estipulação de prazos poderá dar mais segurança e permitir efectuar, em todos os casos, o desejável controlo efectivo, contínuo e próximo temporal e materialmente da fonte. Ademais, vem esclarecer que Ministério Público tem acesso ao teor das gravações antes de determinadas e realizadas as transcrições pelo Juiz de Instrução[21], o que é consentâneo com o facto de ser esta a entidade que promove a realização das escutas e tutela toda a actividade investigatória.

Os OPC podem, antes de remeter o auto ao juiz, tomar conhecimento do conteúdo das gravações ou comunicações a fim de poder praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova (art. 188.º n.º2).

O Juiz, consulta o auto e ouve as gravações[22] e, por despacho, ordena a transcrição[23] em auto e a junção ao processo[24] dos elementos relevantes para a prova e a destruição dos irrelevantes (art. 188.º n.º 3).
Nesta matéria, é de salientar o AC. n.º 426/2005 do Tribunal Constitucional, publicado no DR em 5/12/2005, no qual se entendeu não julgar inconstitucional a norma do artigo 188.º, n.ºs 1, 3 e 4 do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que são válidas as provas obtidas por escutas telefónicas cuja transcrição foi, em parte, determinada pelo juiz de instrução, não com base em prévia audição pessoal das mesmas, mas por leitura de textos contendo a sua reprodução, que lhe foram espontaneamente apresentados pela Polícia Judiciária, acompanhados das fitas gravadas ou elementos análogos[25].
No que toca à destruição dos elementos considerados não relevantes e dos respectivos registos magnéticos, é fundamental ter-se em consideração o Ac. TC n.º 4/2006, publicado no DR de 14/12/2006, que cita a jurisprudência do TC constante do Ac. n.º 462/2005, publicado no DR de 5/12/2005 e a jurisprudência do TEDH, no qual se perfilha o entendimento que deverá ser facultado à defesa a possibilidade de pedir a transcrição de outras passagens das gravações, nomeadamente, para se contextualizar as declarações proferidas noutras passagens. Mais recentemente, o Ac. n.º 660/2006 do TC julga inconstitucional - por violação do Artigo 32º, nº 1, da CRP -, a norma do art. 188º, nº 3, do CPP, na interpretação segundo a qual permite a destruição de elementos de prova obtidos mediante intercepção de telecomunicações, que o órgão de polícia criminal e o Ministério Público conheceram e que são considerados irrelevantes pelo juiz de instrução, sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a sua relevância.
Do n.º 6 do art. 188.º do supra referido Anteprojecto, parece resultar que o Juiz não deverá ordenar a destruição de outros elementos que não se integram aí. O n.º 12 do mesmo artigo determina que os elementos não transcritos são guardados em envelope lacrado, à ordem do tribunal, e apenas serão destruídos após o trânsito em julgado da decisão. Os elementos transcritos, determina o n.º 13, não são destruídos e são de igual forma guardados à ordem do tribunal.
Desta forma, o arguido, o assistente e o MP, se entenderem que devem ser transcritas mais passagens deverão socorrer-se dos ns.º 8 e 9 do mesmo artigo.
Entendemos que tal alteração é de saudar, tendo em consideração que, no regime actual, só ao Juiz de Instrução cabe decidir o que é relevante e, por isso, deve ser transcrito e o que não o é, e, logo, deve ser destruído. O princípio do contraditório relativamente à selecção da prova, parece sustentar a possibilidade do Ministério Público, enquanto entidade que lidera a investigação, bem como os demais intervenientes – o arguido e o assistente – poderem requerer aditamentos ou restrições às transcrições[26]. A exigência de controlo da escuta pela defesa inscreve-se, por outro lado, como escreve Cristina Máximo dos Santos[27], no princípio da lealdade processual – “a due processo of law” – e na igualdade de armas

A transcrição do conteúdo do material interceptado e gravado deve ocorrer, sempre que possível, em discurso directo[28], com indicação dos intervenientes[29].

Os participantes nas operações de intercepção, gravação, transcrição e destruição dos elementos recolhidos ficam vinculados ao dever de sigilo (arts. 188.º n.º 3, 86.º e 101.º, todos do CPP).

O arguido, o assistente a as pessoas escutadas podem examinar o auto, conforme decorre do n.º 5 do art. 188.º do CPP e obter cópias. Tal possibilidade não poderá deixar de ser compatibilizada com o regime geral instituído pelos arts. 86.º a 89.º do CPP. O n.º 8 do artigo 188.º, no Anteprojecto, esclarece que esse exame pode ser realizado a partir do encerramento do inquérito.

EXTENSÃO:
O disposto nos artigos 187.º, 188.º e 189.º do CPP é correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente:
- correio electrónico;
- outras formas de transmissão de dados por via telemática,
- bem como à intercepção das comunicações entre presentes

Sendo as mensagens de correio electrónico interceptadas em tempo real, enquanto percorrem as redes de comunicação, terão de ser consideradas como “comunicações electrónicas”.
O conceito de comunicação electrónica vem definido no art. 2.º n.º 1 a) da Lei n.º 41/2004 de 18/8 que transpõe para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2002/58/CE, do parlamento Europeu e do Conselho, de 12/07, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas.
Assim, enquanto circulam pelas redes comunicacionais, do computador de origem, através dos servidores, até ao computador do destino, as mensagens são “comunicação electrónica” e estão sujeitas ao regime da intercepção de comunicações telefónicas (art. 190.º do CPP)[30].
A extensão prevista no art. 190.º do CPP engloba ainda:
- a intercepção realizada a grupos de contacto (“chat[31]”) e;
- a intercepção de videoconferências.
O Anteprojecto (artigo 189.º n.º 1), no entanto, parece sujeitar ao regime das intercepções todas as conversações e comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, mesmo que estas se encontrem guardadas em suporte digital, parecendo significar, incompreensivelmente, que é possível existirem registos de conversações e comunicações, armazenadas em suporte digital, antes de uma autorização judicial. Todavia, na primeira parte do n.º 1, remete-se para o disposto no n.º 1 do art. 187.º que estipula a necessidade da intercepção ou gravação ser precedida do despacho de autorização do Juiz de Instrução.

Por outro lado, tendo em vista o disposto nos arts. 26.º n.º 1 e 34.º n.º 1 e 4 da CRP, entende-se que a facturação detalhada das comunicações é matéria de reserva da intimidade do cidadão[32].
Esse tipo de informação tem de ser obtido ao abrigo do art. 269.º n.º 1 al c) do CPP, põe despacho judicial, dado que se trata de “registo de conversação”.
Se essa listagem telefónica for obtida pelo Ministério Público, sem o consentimento do titular sem despacho judicial, constitui prova ilícita e nula, que não pode ser valorada, atento o disposto no art. 126.º n.º 3 do CPP[33] (vide arts. 4.º e 8.º da Lei n.º 41/2004 de 18/08, “onde se equipara os dados de tráfego aos dados de conteúdo para efeitos da garantia da inviolabilidade das comunicações”). Tal não se aplica aos denominados dados de base (por exemplo, identificação do titular do posto, o n.º de telefone e o local onde o mesmo está instalado). Relativamente a estes, nenhum interesse público justifica que se lhes assegure a protecção própria dos segredos profissionais ou do sigilo das comunicações, estando abrangidos, quanto muito, por uma relação de confidencialidade estabelecida numa base contratual entre o utente e a operadora de telecomunicações.
A Directiva 5/2000 dispõe que, na fase de inquérito os dados de tráfego e de conteúdo apenas poderão ser fornecidos às autoridades judiciárias, pelos operadores de telecomunicações, nos termos e pelo modo em que a lei do processo penal permite a intercepção das comunicações. Em relação aos dados de base, ainda que cobertos pelo sistema de confidencialidade a solicitação do assinante, poderão ser comunicados, a pedido de qualquer autoridade judiciária, para fins de investigação criminal, “em ordem ao prevalecente dever de colaboração com a administração da justiça”.
No Anteprojecto (n.º 2 do art. 189.º), prevê-se que a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz.
No entanto, e relativamente a esta matéria, já na Proposta de Lei n.º 109/X (v. em www.mj.gov.pt, acedido em 17 de Janeiro de 2007), o legislador acrescentou o artigo 252.º-A, cuja norma prevê que as autoridades judiciárias e as autoridades de polícia criminal podem obter dados sobre a localização celular quando forem necessários para afastar perigo para a vida ou ofensa à integridade física grave.

Uma última nota, apenas para fazer referência à possibilidade existente de, em matéria de cooperação judiciária internacional em matéria penal, poder ser autorizada a intercepção de telecomunicações realizadas em Portugal, a pedido das autoridades competentes de Estado estrangeiro, desde que se verifiquem os respectivos pressupostos – cfr. art.s 160-C e 146 da Lei n.º 144/99 de 31/8 (alterada pela Lei 104/2001 de 25/8 e pela Lei 48/2003 de 22/8).
É a PJ que recebe os pedidos de intercepção e os apresenta ao JIC de Lisboa para autorização. O despacho do JIC, se for caso disso, inclui a autorização para a transmissão imediata da comunicação para o Estado requerente.


intercepção e gravação de comunicações telefónicas em sede de inquérito:

Consoante o teor da informação policial e, se tal se justificar e for admissível, o Magistrado do Ministério Público, apontando, ainda que de forma sucinta, as razões concretas da imprescindibilidade do recurso a tal meio de obtenção de prova, solicita ao Juiz:
- a intercepção e gravação das comunicações telefónicas efectuadas de e para o telemóvel
[34] n.º ……., da rede …., por um prazo de X dias;
- a facturação detalhada e, bem assim, o “trace-back” das efectuadas pelo telemóvel acima identificado;
- a localização celular dos referidos telemóveis;
- a identificação dos IMEI’s que se encontram a ser utilizados por este telemóvel.

Iniciada a escuta, a PJ lavrará um auto de intercepção e gravação por cada telefone escutado, sendo que do auto deverá constar:
a) menção do despacho judicial que autorizou a diligência;
b) identidade do inspector da PJ que a ela procedeu;
c) identificação do telefone interceptado;
d) tempo
[35], modo e lugar da intercepção;

Findo o prazo concedido para a intercepção ou decorridos X dias (no Anteprojecto faz-se a referência a 15 dias) sobre a data do início efectivo da intercepção, a PJ deverá apresentar o inquérito ao magistrado do Ministério Público, contendo o auto referido no ponto anterior, juntamente com os CD’s contendo a totalidade das gravações efectuadas, indicando as passagens consideradas relevantes para a prova.
O magistrado do Ministério Público deverá examinar esses elementos e enviá-los ao Juiz de Instrução, promovendo:
- a validação e transcrição dos elementos que considere relevantes para a prova;
- a manutenção da intercepção, caso se entenda que ela se continua a justificar, indicando-se, de forma breve, as razões de ser de tal pedido.

Se por conhecimentos obtidos através de uma escuta que se encontre pendente se vier a revelar necessária a intercepção de outro telefone, a PJ deverá apresentar o inquérito ao Ministério Público formulando essa proposta e:
a) indicando as passagens das gravações já efectuadas consideradas relevantes para a prova, em especial as que tornam importante a intercepção de um novo telefone, ou outra prova de onde isso resulte;
b) juntando os cd’s com a totalidade das gravações efectuadas até ao momento.
Nestas condições, deverá o magistrado do Ministério Público examinar esses elementos e enviá-los ao Juiz e instrução:
- promovendo a validação e transcrição dos elementos que considere relevantes para a prova;
- promovendo manutenção dessa intercepção, caso se entenda que ela se continua a justificar, indicando-se, de forma resumida, as razões de ser de tal procedimento;
- caso entenda adequado, quando promova nova intercepção, deverá indicar de forma sucinta, as razões concretas da imprescindibilidade do recurso a tal meio de obtenção de prova.

N.B. As sessões validadas pelo Juiz deverão ser transcritas em auto e juntas ao inquérito, com os respectivos CD’s de suporte
.

NOTAS:
[1] A expressão é de CRISTINA RIBEIRO, in Escutas Telefónicas: pontos de discussão e perspectivas de reforma, Revista do Ministério Público n.º 96, p. 68.
[2] Neste sentido, LOPES, José Mouraz, Escutas Telefónicas: seis teses e uma conclusão, RMP, n.º 104, p. 143.
[3] Cfr. Parecer Consultivo da PGR, n.º 92/1991. Também GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de processo Penal II, p 174, afirma ser necessário que um processo esteja já em curso, ainda que contra incertos.
[4] ANDRADE, Manuel da Costa, in Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, 1992, p. 290.
[5] Apud, ANDRADE, Manuel da Costa, in Sobre o regime processual penal das escutas telefónicas, RPCC 1991, p 386.
[6] Cfr. o ac. Rel. Porto, de 08.03.00, na CJ, T2, pag.227, onde se afirma que “as escutas telefónicas só são admissíveis se forem estritamente necessárias à descoberta da verdade” e que, “por isso, não podem ordenar-se tais escutas se os resultados probatórios pretendidos se puderem obter, sem dificuldades particulares, por meios menos invasivos para o direito fundamental do sigilo das comunicações”
[7] Neste sentido, ANDRADE, Manuel da Costa, in Sobre o regime…, cit., p 370.
[8] Cfr. o dito Ac. da Rel. Porto, de 08.03.00, que estende a proibição ao período em que o advogado, embora sem representação, já exerce o mandato de defender o arguido.
[9] Se, acidentalmente, forem, no âmbito de uma escuta telefónica recolhidas e posteriormente juntas aos autos conversações de advogados no exercício da profissão, deverão “os Senhores Magistrados e Agentes do MP promover o desentranhamento e destruição dos registos das conversações”.
[10] Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, 1992, p. 301 e Sobre o regime processual penal das escutas telefónicas, RPCC 1991, p 389.
[11] Op.cit, p. 82 e 83.
[12] Em sentido contrário, sustentando que as escutas telefónicas podem frustrar o âmbito de protecção do art. 134.º do CPP, VEIGA, Armando/RODRIGUES, Benjamim Silva, in Escutas Telefónicas, Rumo à Monitorização dos Fluxos Informacionais e Comunicacionais Digitais, 1ª edição, Coimbra, 2006., p. 209.
[13] Quando os factos novos constituem objecto da investigação em curso, estamos perante conhecimentos de investigação e não conhecimentos fortuitos – para mais desenvolvimentos, v. CORREIA, João Conde, Qual o sigificado de absiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações (art. 32.º, n.º 8, 2ª parte da CRP)? , RMP, n.º 79, p. 66.
[14] Cfr., designadamente, SILVA, Germano Marques, Curso de Processo Penal, edição de 1993, II volume, p. 177 e ANDRADE, Manuel da Costa, Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, 1992, p. 311.
[15]O ac. STJ de 23 de Outubro de 2002, in CJSTJ, Ano X, tomo III, p. 212 (disponível em www.dgsi.pt), concluiu que “o aproveitamento dos conhecimentos fortuitos obtidos por meio de escutas telefónicas será meio de prova válido e admissível se: a) as escutas de onde provêm tais conhecimentos tiverem obedecido aos requisitos legais contidos no artº187; b) o crime em investigação e para cujo processo se transportam os conhecimentos fortuitos constituir crime de catálogo; c) o aproveitamento desses conhecimentos tiver igualmente interesse para a descoberta da verdade ou para a prova no processo para onde são transportados; d) o arguido tiver tido a possibilidade de controlar e contraditar os resultados obtidos por essa via.
O Ac. Relação de Lisboa de 6 de Maio de 2003, in CJ 2003, tomo III, p. 124, entendeu, por outro lado, que, se em resultado de escuta realizada e autorizada para obtenção de prova de crime de catálogo (os crimes previstos no artº187º, 1), se colherem informações marginais que denunciem o conhecimento de outro crime não constante do artigo 187º, não poderão tais informações fortuitas ser usadas para instruir crimes de gravidade inferior aos aí elencados.
[16] Neste sentido, LEITE, André Lamas, in As escutas telefónicas – algumas reflexões em redor do seu regime e das consequências processuais derivadas da respectiva violação, Separata da Revista da Faculdade de Direito do Porto, ano I, 2004.
[17] Vide Parecer Consultivo da PGR n.º 92/91
[18] No Anteprojecto para a revisão do CPP (n.º 1 art. 188) especifica-se que o auto não tem de conter uma reprodução integral do conteúdo das conversas, bastando uma súmula desse mesmo conteúdo.
[19] De salientar o Ac. TC n.º 407/97, publicado no DR, II série, de 18/06/1997, o qual sublinha que a intervenção do juiz tem de ser substancial e não meramente formal, isto é, o acompanhamento das escutas telefónicas deve ser efectivo, contínuo e próximo temporal e materialmente da fonte. De facto só assim parece ser possível ao juiz controlar se as escutas se mantêm dentro do âmbito para o qual foi obtida a autorização e a garantia do mínimo de restrições dos direitos fundamentais em jogo. Também os ACs. ns.º 347/01 e 379/2004, publicados no DR, II série, de 9/11/2001 e de 21/07/2004, respectivamente, fazem referência às situações de prorrogação/manutenção da intercepção e gravação telefónicas, entendendo-se que aquele acompanhamento efectivo e contínuo não se coaduna com uma autorização de prorrogação da diligência sem antes o juiz proceder à audição das gravações já realizadas. Com efeito, parece que só através do conhecimento acerca do que já foi feito nos autos poderá o juiz fundamentar a sua decisão de manter ou não as escutas telefónicas. Nesta matéria podem ainda ser analisados os ACs. TC ns.º 528/2003 e 4/2006, publicados no DR, II série, de 17/12/2003 e de 14/02/2006, respectivamente. Nas Relações, vide Ac. RL de 20/12/2001, CJ 2001, tomo V, p. 148, Ac. RC de 16/09/2001, CJ 2001, tomo IV, p. 246, Ac. RG de 27/09/2004, CJ 2004, tomo IV, p. 290 e Ac. RL de 7/04/2006 CJ 2006 tomo II p. 138, entre outros.
[20] Embora não seja unânime na doutrina e a jurisprudência, tem sido entendido que a contagem do prazo se inicia na data da efectiva ingerência nas comunicações e não na data do despacho de autorização.
[21] A doutrina e a jurisprudência estão divididas. Existe o entendimento que o MP não tem acesso ao teor das gravações antes de determinadas e realizadas as transcrições pelo Juiz de Instrução, havendo, nesta matéria uma relação de coadjuvação directa as polícias ao juiz – neste sentido, Ac. RL, processo n.º 119, de 7/02/2002.
[22] Podendo ser coadjuvado por um polícia ou nomear um tradutor.
[23] À transcrição aplica-se o disposto no art. 101 n.ºs 2 e 3 do CPP, com as devidas adaptações, o que significa que, o juiz tem de certificar se o auto de transcrição está em conformidade com o conteúdo da gravação, antes de assinar, ficando esses autos de transcrição apensos ao processo principal.
[24] Com a junção do auto de transcrição ao processo o mesmo passa a ser prova documental – cfr. Ac. STJ, de 21.01.98, Ac. RL, de 12.01.2000 e Ac. STJ, de 13.07.20006, disponíveis em www.pgdlisboa.pt.
[25] Neste sentido, vide também, entre outros, o Ac. RC de 15/02/2006, CJ 2006, Tomo I, p. 46.
[26] Vejam-se, no entanto, as declarações de voto de Benjamim Rodrigues e Maria Fernanda Palma no citado Ac. n.º 660/2006.
[27] “As novas tecnologias de informação e o sigilo das comunicações”, RMP, n.º 99, p. 112.
[28] No Ac. RC de 12/06/2000, BMJ, 499, p. 391 entendeu-se que a transcrição se pode fazer em discurso indirecto, desde que não haja intervenção da pessoa que transcreveu.
[29] Se a identificação ainda não for possível, deverá ser atribuído um nome fictício o qual, posteriormente, será substituído pelo nome verdadeiro.
[30] Assim, VERDELHO, Pedro, A obtenção de prova no ambiente digital, RMP n.º 99, p. 117 ss. e, do mesmo Autor, Apreensão de correio electrónico em processo penal, RMP n.º 100, p 153 ss..
[31] Na sua opção fechada, isto é, num circuito fechado de intervenientes.
[32] Cfr. Parecer do Conselho Consultivo da PGR n.º 16/94, de 02/05/96, e DIRECTIVA 5/2000, publicada no DR, II série, de 28/08/2000.
[33] Neste sentido, Ac. RL de 10/12/2003, CJ, V, 199; Ac. RC de 7/03/2001, CJ 2001, II, 44.
V., ainda, Parecer do Conselho Consultivo da PGR n.º 21/2000 de 16/06.
[34] Cfr., a propósito, o ac. Rel. Lxª, de 10.12.03, na CJ, T5, pag.147, onde se considerou admissível a intercepção de todos os números telefónicos utilizados pelo mesmo IMEI
[35] Do auto deverá constar a data de início da intercepção. No final do período interceptado, deverá ser lavrado auto de encerramento da diligência, onde se fará menção da data em que terminou a escuta.