quarta-feira, julho 09, 2008

Regime actual do segredo de justiça

(texto de Sandra Serra de Carvalho para a sessão de 28 de Abril de 2008)

A versão do Código de Processo Penal anterior à revisão operada pela Lei nº 48/2007, dispunha que o processo estava sujeito a segredo de justiça até ao momento em que a instrução já não podia ser requerida ou, caso o fosse, até à decisão instrutória (artigo 86º/1). Todavia, a autoridade judiciária que presidisse à fase processual em causa, podia «dar ou ordenar ou permitir que seja dado conhecimento a determinadas pessoas do conteúdo de acto ou de documento em segredo de justiça, se tal se afigurar conveniente ao esclarecimento da verdade.» (artigo 86º/5).
A Proposta de Lei nº 109/X apresentada pelo Governo à Assembleia da República, na linha do Anteprojecto elaborado pela Unidade de Missão para a Reforma Penal, apesar de introduzir algumas importantes inovações em relação ao regime do segredo de justiça ora enunciado, mantinha a regra de que o processo estava sujeito a segredo de justiça até ao termo do prazo para requerer a abertura de instrução (artigo 86º/2), mas previa o afastamento dessa regra quando o Ministério Público determinasse a publicidade do inquérito, ou quando o arguido o pedisse ao JIC e este concordasse.
Contudo, a Lei nº 48/2007, de 29-08, foi muito para além da Proposta de Lei nº 109/X na temática do segredo de justiça, tendo consagrado 4 novas regras fundamentais:
i. a regra da publicidade – interna e externa – do inquérito, salvo decisão irrecorrível do juiz de instrução que ordena o segredo externo do processo;
ii. a regra da publicidade – interna e externa – da instrução;
iii. a definição da publicidade externa como incluindo a assistência do público aos actos processuais, mesmo aos praticados no inquérito e na instrução; e
iv. a vinculação ao segredo de justiça de todos os que contactam com o processo ou têm conhecimento de elementos do processo, incluindo jornalistas.

O C.P.P. revisto apenas prevê que o inquérito fique sujeito a segredo interno e externo
[1], quando se verifiquem as hipóteses contidas nos artigos 86.º, n.ºs 2 e 3, do C.P.P.
Preceitua o n.º 2 do artigo 86.º do C.P.P., que o arguido, o assistente e o ofendido, podem requerer que o Juiz de Instrução, ouvido o Ministério Público, por despacho irrecorrível, determine a sujeição do processo, durante a fase do inquérito, a segredo de justiça, quando entenda que a publicidade prejudica os direitos daqueles sujeitos ou participantes processuais.
Por seu turno, o artigo 86.º, n.º 3, do C.P.P., estabelece que o Ministério Público, quando entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase do inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas.
Uma vez determinada a colocação do processo sob segredo de justiça, este implica as proibições de:
a) Assistência à prática ou tomada de conhecimento do conteúdo de acto processual a que não tenham o direito ou o dever de assistir;
b) Divulgação da ocorrência de acto processual ou dos seus termos, independentemente do motivo que presidir a tal divulgação – cfr. artigo 86.º, n.º 8, do C.P.P..

No entanto, a necessidade de salvaguardar o conteúdo essencial de outros direitos merecedores de tutela, conflituantes com os interesses que justificam a sujeição do processo a segredo, leva a que o legislador tenha previsto várias situações em que se permite o acesso ao conteúdo de actos ou documentos constantes dos autos, não obstante vigorar o regime de segredo, mormente nos artigos 86.º, n.ºs 9, 10, 11, 12 e 13, 89.º, n.ºs 1, 2 e 3, 141.º, n.º 4 e 194.º, n.ºs 3, 4, 5 e 6, do C.P.P..

Parece-nos que a regra da publicidade interna e externa do inquérito viola a estrutura acusatória do processo penal português.
Mais acresce que a estrutura acusatória do processo penal português é incompatível com a regra da publicidade, na medida em que supõe uma fase de investigação, secreta, sem contraditório, dominada pelo Ministério Público, e uma fase de julgamento, pública, com contraditório, dominada pelo juiz, bem como uma separação orgânica e funcional entre estas duas fases.
Refira-se, ainda, que o art. 86º subalterniza o Ministério Público em relação ao JIC, a quem são atribuídos poderes próprios duma instância de controlo definitivo da decisão do Ministério Público sobre o segredo interno do inquérito, sobretudo quando se atende ao facto de a decisão do Juiz de Instrução Criminal, no enquadramento dos nºs 2 e 5 do artigo 86º, ser irrecorrível. Este poder do JIC parece contender com a direcção do inquérito que, por força da estrutura acusatória do processo penal português, incumbe exclusivamente ao Ministério Público.
Por imperativo constitucional, o Ministério Público não está limitado a qualquer juízo do JIC sobre a oportunidade dos actos de investigação realizados no inquérito (vide Ac. TC nº 395/2004). Por isso, o exercício da direcção do inquérito pelo Ministério Público não pode estar limitado por um juízo absoluto do JIC sobre o que prejudica a investigação.
Sendo o objectivo da publicidade interna do processo permitir o contraditório pleno sobre a prova dos autos, e dispondo o art. 32º/5, “in fine” da CRP que só há contraditório no julgamento e nos actos instrutórios que a lei determinar, então, segundo a nossa Constituição, a lei ordinária não tem de determinar os actos instrutórios que não estão subordinados ao princípio do contraditório, mas sim aqueles que o estão.
Concomitantemente, face à irrecorribilidade do despacho que determina a publicidade interna do inquérito, não só o destino do inquérito, mas também a segurança das vítimas (em determinados tipos de crimes) fica inteiramente dependente da vontade de um juiz de primeira instância, sem qualquer possibilidade de recurso. Será esta solução conforme com um Estado de Direito e os seus direitos de acesso aos tribunais e de participação no processo penal? A CRP também não parece admitir uma tamanha desprotecção das vítimas.
Particularmente quanto à regra da publicidade externa, para além dos argumentos expostos, ela também viola a protecção constitucional devida ao segredo de justiça (art. 20º/3 da CRP) e a presunção de inocência do arguido (art. 32º/2, da CRP).
Salvo melhor interpretação, o regime do segredo de justiça pretendido pelo legislador da Lei nº 48/2007 viola os limites essenciais ou constitutivos do conceito de segredo de justiça previsto no art. 20º/3 da CRP. Tal violação é mesmo gritante no caso da instrução requerida pelo arguido, o qual, como é evidente, não tem qualquer interesse na publicidade externa do processo em que está envolvido.
Muito para além da protecção, constitucionalmente consagrada, do segredo de justiça está a nova possibilidade de qualquer cidadão poder assistir às diligências do inquérito (artigo 86º/6/a, Código de Processo Penal), salvo decisão que determine o segredo externo (artigo 87º, Código Penal).
Face a isto, consideramos, como o faz Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica Editora, 2007, p. 244) que «as normas do artigo 86, n.ºs 2, 3, 4 e 5, do Código de Processo Penal são inconstitucionais por violarem os artigos 2º, 20º, nºs 1 e 3, 32, n.º 5 e 7, e 219, n.º 1, da Constituição da República, ao fixar a regra da publicidade externa do inquérito e ao conferir ao juiz o poder de decidir oficiosamente e por despacho irrecorrível a publicidade externa do inquérito contra a vontade do Ministério Público, bem como ao vedar o segredo da instrução a requerimento do arguido.
Pelos mesmos motivos, é inconstitucional o artigo 86, n.º 6, al. a, do CPP, na parte em que não exclui os actos de inquérito e de instrução.»

Consulta e confiança dos autos de inquérito

Em decorrência das alterações produzidas no regime do segredo de justiça, o novo regime jurídico da consulta e confiança dos autos de inquérito, apresenta algumas particularidades a que importa atender:
a) nos serviços do Ministério Público deverá estar um translado/processo-gémeo/processo de tramitação (consoante o método adoptado) o mais actualizado possível face ao que consta dos autos de inquérito na posse do OPC que desenvolve a investigação, de forma a não obviar ao exercício do direito de consulta dos autos e obtenção de cópias, pelos sujeitos processuais, consagrado no artigo 89º/1;
b) a exclusão da publicidade no caso dos crimes referidos no art. 87º/3 deve implicar a proibição de exame dos autos fora da secretaria (se o público não pode assistir ao julgamento desses crimes, também não deve poder aceder aos autos por se encontrarem na posse de um dos sujeitos processuais);
c) enquanto se mantiver a exclusão de publicidade do inquérito, o Ministério Público deve ter um cuidado especial na autorização da obtenção de cópias, extractos ou certidões pelos sujeitos processuais, quer no caso do nº 2, quer do nº 3 do art. 87º. A emissão de certidão só deve ser autorizada quando se destine a processo criminal, disciplinar ou civil (por aplicação analógica do art. 86º/11). A emissão de cópias e extractos dos autos só pode ter lugar quando não ponha em causa os valores que a exclusão da publicidade visou proteger;

Em razão dos argumentos de direito supra articulados, o art. 89º, nº 2 do CPP – que consagra uma apreciação, pelo Juiz de Instrução Criminal, por despacho irrecorrível, do despacho do Ministério Público que se oponha à consulta ou obtenção de elementos pelos sujeitos processuais - também deverá ser julgado como inconstitucional, por violação dos arts. 2º, 20º/1, 32º/5/7, e 219º/1 da Constituição da República Portuguesa, nos termos já explanados.
[1] O segredo interno é encarado pela doutrina como a “limitação de acesso dos sujeitos e participantes processuais aos elementos probatórios e de outro tipo constantes dos autos, bem como a assistência pelos mesmos a certos actos e sua narração”. Por seu turno, o segredo externo refere-se a todas aquelas pessoas, que não sendo sujeitos ou participantes processuais, por qualquer título, tomam contacto com o processo ou adquirem conhecimento de elementos a ele pertencentes - cfr. André Lamas Leite, ob. cit., págs. 540-541.