quarta-feira, julho 09, 2008

Exames

(texto de Sílvia Martins, elaborado para a sessão de 23-05-2008)

Como todos sabem, o regime legal dos exames está consagrado nos art. 171.º a 173.º do C.P.P. E a única alteração ocorrida consiste no aditamento do n.º 2 ao art. 172.º do CPP, que prevê agora:
“É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 2 do art. 154.º e nos n.ºs 5 e 6 do artigo 156.º.”.
O anterior n.º 2 passou a n.º 3, sem que se verificasse qualquer alteração na redacção.
Vista a alteração nestes termos, parece que não ter ocorrido nada de muito relevante em sede de exames. Porém, na verdade, não é bem assim…pois, esta remissão para os art. 154.º, n.º 2 e 156.º, n.º 5 e 6 tem grandes implicações no regime legal dos exames.

Esta alteração consubstancia uma remissão para o regime das perícias e introduz três alterações no regime dos exames:
1. Cria um regime específico quanto à competência para ordenar a realização dos exames sobre as características físicas ou psíquicas da pessoa que não preste o seu consentimento;
2. Prevê especificamente a competência para a realização do exame;
3. Prevê o âmbito de utilização dos exames e das amostras e o destino a dar aos mesmos.

Assim, refere o n.º 2 do art. 154.º que “Quando se tratar de perícia sobre as características físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado consentimento, o despacho previsto no número anterior é da competência do juiz, que pondera da necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado.”

Uma vez que o regime das perícias se aplica aos exames por via da remissão referida, existem actualmente dois regimes legais quanto à efectivação/realização de exames. Existem:
1. Os exames sobre as características físicas ou psíquicas das pessoas; e
2. Os outros exames…

Começando pelos outros exames…, ou seja, aqueles que não incidem sobre as características físicas ou psíquicas das pessoas, e que podem, ainda assim, ser exames sobre as pessoas, mas também exames sobre coisas ou locais.
Se houver o consentimento das pessoas, os exames podem ser ordenados pela autoridade judiciária ou pelo órgão de polícia criminal – cfr art 270.º, n.º 1 e 249.º, n.º 2, al. a) conjugados com o art. 172.º, n.º 1, a contrario.
Se a pessoa não consentir na realização do exame, então, só a autoridade judiciária pode ordenar a sua realização – cfr. art. 172.º, n.º1 do CPP – “compelir”.

Por outro lado, quanto aos exames sobre as características físicas ou psíquicas das pessoas, cumpre referir que são usualmente designados como “exames intrusivos”, e referem-se à colheita de saliva, cabelo, sangue, etc. com vista a determinar o seu perfil genético e posteriormente comparar com outros vestígios biológicos encontrados no local do crime, e assim compreender se trata da mesma pessoa.
Mas podem também ser os exames susceptíveis de ofender o pudor das pessoas.

Assim, no que concerne aos exames sobre as características físicas ou psíquicas da pessoa, podem também levantar-se duas situações:
a) A pessoa presta o seu consentimento à realização do exame;
b) A pessoa não presta o seu consentimento.

Quando a pessoa presta o seu consentimento à realização do exame, o Ministério Público pode ordenar a sua realização (cfr. art. 154.º, n.º 2 a contrario, ex vi art. 172.º, n.º 2).
Já quando a pessoa não dá o seu consentimento à realização do mesmo, então, o exame terá de ser ordenado pelo juiz (cfr. art. 154.º, n.º 2 do CPP). Agora consta igualmente do art. 269.º, n.º 1, al. b) do CPP que durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução ordenar ou autorizar, a efectivação de exames, nos termos do n.º 2 do art. 172.º.
De acordo com o art. 154.º, n.º 2 do CPP, o Juiz, oficiosamente ou a requerimento, ordena a realização de exame, ponderando por um lado, a necessidade da sua realização e por outro o direito à integridade pessoal e a reserva da intimidade do visado.

Esta solução legal relativa à necessidade de despacho judicial e que impõe ao Juiz a necessária ponderação a fazer entre a necessidade de realização do exame e o direito à integridade pessoal e reserva da intimidade do visado, vem resolver uma discussão doutrinal e jurisprudencial que existia à luz do direito anterior.

- Alguns AA., tais como Costa Andrade, Mário Ferreira Monte (mas admitindo a possibilidade de poder vir a ser autorizado de iure condendo), Maria do Carmo Silva Dias e Carlos Pinto de Abreu não admitiam a possibilidade de ordenar a realização de exames contra a vontade do arguido.
Porém, AA. como Costa Andrade e Mário Monte não se opunham, em definitivo, à realização deste tipo de exames, apenas consideravam que não existia uma lei específica que o permitisse.
- Já na jurisprudência de alguns tribunais superiores, tal como o T.R. Porto, haviam quem defendesse que podia ser o próprio Ministério Público a ordenar a realização do exame enquanto dominus do inquérito.
Lembrem-se do Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 13 de Setembro de 2006, relatado por Luís Gominho, já referido nas sessões de Penal II da 1.ª fase.
O referido acórdão incidia sobre uma decisão do Ministério Público, em inquérito, de sujeitar o(s) arguido(s) a “exame”, traduzida na realização de zaragatoa bucal para recolha de saliva e posterior comparação com vestígios que tinham sido encontrados no local do crime num processo por duplo homicídio onde não havia qualquer prova testemunhal. O arguido sempre declarou que não era sua vontade sujeitar-se a tal exame, apesar de afirmar estar disposto a submeter-se à prova do ADN.
Tal acórdão, na senda do que havia sido decidido pelo JIC do Tribunal de Instrução do Porto decidiu que o Ministério Público era competente para ordenar a realização de zaragatoa bucal, mesmo contra a vontade do arguido, que ao mesmo se opôs.
- Havia ainda uma terceira orientação jurisprudencial, que entendia que era possível ordenar a realização de tais exames, mas isso seria competência do JIC, uma vez que os mesmos contendiam com direitos fundamentais da pessoa em causa e que o JIC é o garante dos direitos fundamentais (posição defendida pelo Tribunal Constitucional e pelo TEDH).
Esta posição do TC resulta do Ac. do TC n.º 155/2007, relatado por Gil Galvão que se pronunciou sobre o referido acórdão do T. R. Porto. Tal acórdão declarou que a interpretação realizada pelo JIC do Porto e pelo T.R. Porto era inconstitucional na medida em que permitia que fosse o Ministério Público a ordenar a realização do exame, atendendo a que o mesmo punha em causa direitos fundamentais do arguido.
No mencionado acórdão conclui-se que contendendo a zaragatoa bucal, de forma relevante, com direitos, liberdades e garantias fundamentais do arguido, a sua admissibilidade no decurso da fase de inquérito depende de prévia autorização do juiz de instrução (cfr. art. 32.º, n.º 4 da CRP).

Parece-me assim que esta alteração legislativa veio tomar posição acerca das divergências que existiam à luz da lei anterior.

E face à nova redacção legal, na fase de inquérito, é o Juiz de Instrução quem tem competência para ordenar a realização de exames intrusivos. O MP pretendendo compelir alguém (porque se opõe) à realização de um exame, terá de o requerer ao Juiz.
Mas a alteração legislativa veio também introduzir uma ideia de ponderação, de concordância prática entre a necessidade de realização do exame (a realização da justiça e da procura da verdade material) e os direitos à integridade pessoal e à reserva da intimidade do arguido. Sendo que se verifica esta necessidade de realização do exame quando não possa alcançar-se a realização da justiça através de outras diligências.
Deste modo, e face à actual redacção do CPP, no caso que consta do acórdão do TRP e do TC, ponderada a necessidade de realização do exame – no caso não havia qualquer testemunha dos factos – duplo homicídio – bem como os direitos do arguido, será de admitir que o JIC, a requerimento do MP, ordenasse a sua efectivação.

O despacho que ordena a realização do exame deve conter o nome do médico (???) que vai realizá-la, o seu objecto, bem como o dia, hora e local em que se efectivará.

Por último, cumpre referir que o despacho que ordena (ou que indefere o requerimento) este tipo de perícia deve ser fundamentado (art. 97.º, n.º 1 do CPP), e deve fazer a referida ponderação entre a necessidade de realização do exame e os direitos da pessoa visada, porquanto é um despacho susceptível de recurso – art. 399.º do CPP.

Em conclusão, face à actual redacção legal, é possível impor coercivamente a realização de exames (cfr. art. 172.º, n.º 1 do CPP).

Quanto ao procedimento
De acordo com o art. 156.º, n.º 5, a pessoa que realiza o exame tem de ser médico ou outra pessoa legalmente autorizada (como parece óbvio) e este (exame) não pode o mesmo criar perigo para a saúde do visado (quer o exame tenha sido realizado com consentimento, quer não).

Por outro lado, o n.º 6 do mencionado art. 156.º determina que, quando se tratar de análises de sangue ou de outras células corporais, os exames efectuados e as amostras recolhidas só podem ser utilizados no processo em curso ou em outro já instaurado e o Juiz deve ordenar a sua destruição, quando já não se mostrarem necessárias.
Paulo Pinto de Albuquerque refere que uma vez que tais amostras só podem ser utilizadas no processo em curso ou em outro já instaurado, pelo que esta norma acrescentou uma nova proibição de prova!
Refere que estas amostras não podem fundamentar a abertura de outro processo e, designadamente, não podem ser comparadas com bases de dados.

Por outro lado, é necessário atender ainda à Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro que criou uma base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal.
De acordo com o art. 8.º da referida Lei a recolha de amostras pode ser efectuada nos termos do art. 172.º do CPP, oficiosamente ou a requerimento, por despacho do juiz, a partir da constituição de arguido.
Porém, esta lei no art. 8.º, n.º 2 cria uma outra situação de recolha de amostras: caso não se tenha procedido à recolha da amostra nos termos referidos, e caso o arguido seja condenado (com trânsito em julgado) por crime doloso com pena de prisão concreta superior a três anos (mesmo que suspensa na sua execução), o juiz ordena a recolha de amostras do condenado.

Agora e concretamente no que se refere ao art. 156.º, n.º 6 do CPP é necessário atender ao disposto no n.º 6 do art. 8.º que prevê que “Quando se trate de arguido em vários processos, simultâneos ou sucessivos, pode ser dispensada a recolha da amostra sempre que não tenham decorrido cinco anos desde a primeira recolha e em qualquer caso, quando a amostra se mostre desnecessária ou inviável.”
Estas duas normas não se compaginam muito bem…por isso, considero que o n.º 6 apenas se aplica à recolha prevista no n.º 2 do art. 8.º, ou seja, à recolha depois da condenação.
Pois, quanto à recolha durante o inquérito existe a norma do CPP. Mas parece que doravante, sendo o arguido condenado em pena de prisão igual ou superior a três anso, é possível comparar com bases de dados…

Por outro lado, o art. 156.º, n.º 6 do CPP refere que o juiz ordena a destruição quando deixem de ser necessárias. E quando é que as amostras já não se mostram necessárias? Parece-me que será de analisar caso a caso.
Por exemplo:
- Arquivamento do inquérito – atendendo a que pode ser reaberto, parece-me que só poderá ser ordenada a destruição quando ocorrer a prescrição do procedimento.
- Decisão de absolvição transitada em julgado - parece-me que logo após o trânsito, poderá ser ordenada a destruição.
- Decisão condenatória transitada – atendendo à nova norma de aplicação da lei mais favorável, bem como ao recurso de revisão… parece que só poderá ser ordenada a destruição quando já não existir possibilidade de reapreciação… Concordando com o Dr. Pedro Verdelho parece que só podem ser destruídas quando ocorrer a prescrição ou do procedimento criminal ou da pena.

Porém, lançando novamente mão da Lei 5/2008, e dos art. 8.º, 15.º e 26.º vemos que:
d) Os perfis de ADN e os correspondentes dados pessoais são eliminados, quando a amostra for identificada com o arguido, no termo do processo crime ou no fim do prazo máximo de prescrição do procedimento criminal, previsto no Código Penal, quando integrados no ficheiro criado ao abrigo do disposto na al. d) do art. 15.º, n.º 1;
Neste caso, quando no termo do processo o arguido seja condenado, por decisão transitada em julgado, numa pena de prisão igual ou superior a três anos, o perfil de ADN e os dados passam para o ficheiro previsto no art. 15.º, n.º 1, al. e) – ficheiro contendo informações para pessoas condenadas por sentença transitada em julgado
e) Os perfis de ADN e os correspondentes dados pessoais são eliminados, quando a amostra não for identificada com o arguido, passados 20 anos após a recolha, quando integrados no ficheiro criado ao abrigo do disposto na al. d) do art. 15.º, n.º 1;
É um prazo de prescrição superior ao próprio prazo de prescrição do procedimento criminal.
Refiram-se ainda os exames susceptíveis de ofender o pudor das pessoas (art. 172.º, n.º 2 do CPP), que serão de considerar exames sobre as características físicas das pessoas, pelo que não havendo o consentimento do visado, será necessária a intervenção do Juiz, proferindo despacho que ordene a sua realização.