segunda-feira, abril 28, 2008

O registo de voz e imagem

Marta Filipe
Notas para powerpoint, para a sessão de 11 de Dezembro de 2007

Algumas tendências securitárias da actualidade (…) trazem consigo a ideia perversa de que a vigilância permanente tudo resolve porque tudo prevê.”
Cristina Máximo dos Santos
(Assessora do Tribunal Constitucional)
As novas tecnologias de informação e o sigilo das telecomunicações”, RMP, nº99, pág.99

O Registo de voz e imagem foi introduzido no nosso ordenamento jurídico com a lei nº 5/2002 de 11 de Janeiro, tendo em vista a efectivação de um novo meio de obtenção de prova através da gravação da voz e da imagem sem o consentimento dos visados.
A gravação de voz e de imagem a efectuar pelo OPC pode ocorrer ainda antes de iniciado um qualquer inquérito.
A Lei Orgânica da PJ (DL nº275-A/2000 de 09 de Novembro), prevê, no artigo 4º, nº2 a possibilidade de realização dessas gravações no âmbito de operações de vigilância, para fins de prevenção criminal.
No entanto, vou atender apenas à recolha de voz e de imagem como meio de obtenção de prova no decurso de um processo já em curso (art. 6º Lei nº 5/2002 de 11 de Janeiro).

Dadas as crescentes preocupações securitárias geradas pelo aumento da criminalidade grave, pela própria globalização do crime e incremento de processos tecnológicos na execução de crimes, foi aprovada em 2002, após os atentados de 11 de Setembro, a Lei que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira – a Lei nº 5/2002 de 11 de Janeiro.

Esta traduz o objectivo de dotar a investigação criminal de maior eficácia e agilidade no combate às novas formas de criminalidade organizada permitindo o uso de novos meios tecnológicos de obtenção de prova.

São diversas as definições avançadas para concretizar a expressão “criminalidade organizada”:
¡ “associação ordenada de fins, meios e esforços por uma ou várias pessoas, de índole temporária ou durável, para cometer um delito ou uma série de delitos, tentando garantir a impunidade tanto quanto seja possível.” – Manuel António Ferreira Antunes, “A Criminalidade Organizada: Perspectivas”, in Polícia e Justiça nº3-4, pag.58
¡ “empresa ou grupo de pessoas organizadas para cometer crimes sem respeitar as fronteiras dos Estados, que tem por objectivo a obtenção de lucros” - Interpol

A própria maleabilidade das estruturas deste fenómeno dificulta a sua delimitação jurídica e apreensão do conceito.

Para efeitos do disposto no CPP, não prevê o artigo 1º uma definição de criminalidade organizada mas de criminalidade altamente organizada.
Porém, não concretiza o significado da expressão, indicando apenas os tipos de crime que integram esta classificação:
- associação criminosa
- tráfico de pessoas
- tráfico de armas
- tráfico de estupefacientes
- corrupção
- tráfico de influências
- branqueamento

O CPP não acolheu este meio de obtenção de prova mas a Lei nº 5/2002 de 11 de Janeiro, prevê, no capítulo designado como “outros meios de produção de prova”, a admissibilidade do registo de voz e de imagem.
No artigo 6º, tem-se como admissível, quando necessária para a investigação dos crimes indicados, classificados como criminalidade organizada ou económico-financeira, o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem o consentimento do visado.
A produção destes registos depende de prévia autorização ou ordem do juiz, sendo aplicáveis aos registos obtidos as formalidades próprias das escutas telefónicas do artigo 188º CPP (com as necessárias adaptações) .
Limita-se, no entanto, à investigação dos crimes referidos no catálogo do art. 1º que não é inteiramente coincidente com o que suporta a admissibilidade das escutas no art. 187º, nº1 CPP.

Os crimes elencados no artigo 1º, nº1 da referida Lei são:
¡ Tráfico de estupefacientes
¡ Terrorismo e organização terrorista
¡ Tráfico de armas
¡ Corrupção passiva e peculato
¡ Branqueamento de capitais
¡ Associação criminosa

podendo ainda ter lugar nos caso de:
¡ Contrabando
¡ Tráfico e viciação de veículos furtados
¡ Lenocínio e lenocínio e tráfico de menores
¡ Contrafacção de moeda e de títulos equiparados a moeda

quando praticados de forma organizada.

Por força do nº3 do mesmo artigo, fazem também parte do catálogo os crimes previstos no artigo 1º, nº1 da Lei de combate à corrupção e criminalidade económico-financeira e que são:

¡ Corrupção, peculato e participação económica em negócio

¡ Administração danosa em unidade económica do sector público

¡ Fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito

¡ Infracções económico-financeiras cometidas de forma organizada, com recurso à tecnologia informática

¡ Infracções económico-financeiras de dimensão internacional ou transnacional

No contexto da criminalidade organizada, existe a tendência para se permitir maiores restrições aos direitos fundamentais em nome da eficácia da justiça penal.
Não cuidando neste âmbito, das teorias do direito penal do inimigo ou do direito penal a duas velocidades… é necessário, porém, reflectir sobre a necessidade de uma relativização das garantias dos arguidos.
A este propósito, mantém actualidade a asserção do Prof. Costa Andrade:
“A eficácia da justiça penal não basta, só por si e enquanto tal, para legitimar a danosidade social da produção ou utilização não consentidas de gravações ou fotografias”, Costa Andrade, “Das proibições de prova em processo penal”, 1992.

Os direitos fundamentais à imagem e a palavra não se confundem com o direito à reserva da intimidade da vida privada. Embora previstos no artigo 26º CRP, tutelam bens jurídicos diversos, o que se concretiza na estatuição de tipos de crime diferentes.

A devassa da vida privada ou a violação de domicílio, previstos nos artigos 192º e 190º CP, são exemplos de crimes incluídos no capitulo dos crimes contra a reserva da vida privada enquanto que, para protecção do direito à imagem e à palavra, surge o crime de gravações e fotografias ilícitas, este estabelecido no artigo 199º CP.
Daqui decorre que estes tipos de crime não protegem bens jurídicos coincidentes e que estes direitos fundamentais têm um âmbito de aplicação distinto.
A factualidade típica descrita nesta disposição legal consiste na gravação de palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público ou na utilização destas mesmo que licitamente produzidas; bem como se tal documentação ocorrer por meio de fotografia ou filme.

Face ao que acabei de referir, na ausência do artigo 6º da Lei nº 5/2002, estas gravações por parte dos OPC não podiam ser valoradas por integrarem a prática de um crime (199º CP ou 192º CP). Tal proibição encontra-se explícita no CPP, no art. 167º CPP, referente à prova documental (proibição de valoração de reproduções fotográficas ou qualquer meio de reprodução mecânica obtidas de forma ilícita).
No entanto, a disposição legal referida consagra um caso de exclusão da ilicitude ao permitir a gravação de imagem e som sem o consentimento do visado e a sua posterior utilização como prova.
Em determinadas circunstâncias, o registo de voz e de imagem pode violar simultaneamente o direito à intimidade da vida privada e, nestes casos, estaremos ainda perante uma exclusão da ilicitude?
A resposta tem que ser, necessariamente negativa face ao disposto no artigo 126º, nº3 CPP que concretiza a proibição constitucional presente no artigo 32º, nº8 CRP, que cominam com a nulidade e consequente proibição de valoração no processo, as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada porquanto, desta forma, se violaria de forma inadmissível o núcleo essencial da personalidade e dignidade humana. Por isso, fora da autorização legal ficam as diligências tendentes a captar, fotografar, filmar a imagem de pessoas em espaços íntimos.

É este o entendimento quer da doutrina quer de alguma jurisprudência.
Isto com diversos fundamentos:
- Por um lado, estão em causa bens jurídicos diferentes
- Por outro, não existe referência legal que permita tal intromissão na privacidade
- E, por último, esta violação não pode ficar dependente de um juízo de mera necessidade para a investigação

Assim, Carlos Rodrigues de Almeida, “O Registo de voz e imagem”, RPCC (14), pág.369; no mesmo sentido: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.03.2006, CJ06-II-198
Porém, em sentido contrário, defendendo a possibilidade de recolha de voz e imagem em violação da vida privada, o Acórdão do STJ de 12.07.2007, Proc. 07P1771, in www.dgsi.pt que considera ser esta uma das excepções previstas no art. 126º, nº3 CPP.

Não obstante a expressa previsão legal, é controversa na jurisprudência a questão de saber se é sempre necessária a autorização ou ordem do juiz.
Algumas decisões encerram o entendimento de que a recolha de imagens e som em espaços públicos, por ex. um parque público, não carece de autorização do juiz uma vez que não consiste numa intromissão na vida privada. Baseia-se esta posição no argumento que não pode este regime ser mais restritivo dos direitos fundamentais que o previsto no art.126º CPP.
“só depende de prévia autorização do juiz aquele registo em que haja ofensa á integridade moral das pessoas ou constitua intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou telecomunicações.”
Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.01.2003, CJ-I-40 e de 23.04.2003, CJ-II-43; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16.11.2005, CJ-V-219.

Em sentido contrário, decidiram os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 22.03.2006, CJ-II-198; Acórdão do STJ de 12.07.2007, Proc. 07P1771, in www.dgsi.pt. Partindo do pressuposto que a recolha de som e imagem só se realiza validamente em espaços públicos, este meio de recolha de prova carece sempre de autorização do juiz pois, tendo em vista o combate à criminalidade organizada, é ao juiz que cabe a ponderação dos interesses em conflito e da necessidade de restrição de direitos fundamentais.

Pode colocar-se ainda a questão de saber se é possível a validação posterior deste meio de obtenção de prova ou se a autorização do juiz é necessariamente prévia.
Face aos dispositivos legais, e foi esta a solução defendida pelo STJ, no acordão de 12.07.2007, Proc. 07P1771, in www.dgsi.pt, o registo de voz ou de imagem não pode ser validado pelo juiz depois de obtido pelos OPC: “Na verdade, tem o julgador de previamente, e não a posteriori, fazer a ponderação dos interesses em jogo.”
Efectivamente, não há disposição legal que o sustente e que permita afastar o estabelecido no art. 6º da Lei nº 5/2002. A remessa para o regime formal das escutas telefónicas também corrobora este entendimento uma vez que estas também não são passíveis de validação posterior.

Outros dos requisitos de admissibilidade já referido é o da necessidade para a investigação.
O que devemos entender por “necessidade”?
Por um lado, atendendo ao carácter excepcional deste meio de obtenção de prova e à restrição que o mesmo acarreta para direitos fundamentais, devemos considerar que existe necessidade quando as provas obtidas são insuficientes para a investigação.
Contudo, isto não significa restringir a sua utilização a casos em que seja impossível ou extremamente difícil obter prova por outros meios, fazendo aplicação do regime das escutas telefónicas, apesar do nº 3 do art. 6º remeter para as formalidades previstas no artigo 188º.
“(…) limitar a utilização do registo de voz e de imagem aos casos em que seja impossível ou extremamente difícil obter prova por outros meios menos danosos é comprimir excessivamente o sentido e a finalidade da lei.”, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.03.2006, CJ-II-198.

Esta remissão abrange apenas os pressupostos formais e não também as formalidades substantivas.
Na verdade, o artigo 6º da lei a que nos vimos referindo, parece conter uma menor exigência quanto aos pressupostos substantivos para a utilização deste meio de obtenção de prova.
Comparando-o com o artigo 187º CPP, relativo às escutas telefónicas, verificamos que embora o catálogo de crime que permitem a utilização de escutas seja mais abrangente, o registo de imagem e voz pode ser efectuado por qualquer meio e apenas exige a verificação de necessidade para a investigação nos termos já expostos.

Escutas Telefónicas
Art. 187º CPP
Registo de voz e imagem
Catálogo mais amplo
Catálogo mais restrito
Meios: telefone, qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico
Qualquer meio
“razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter”.
“necessária para a investigação do crime”

Quanto às formalidades a adoptar, e em cumprimento da remissão para o regime do art. 188º CPP, com as necessárias adaptações, podemos concluir que:
deve ser lavrado pelo OPC um auto de registo de imagem e voz indicando as passagens relevantes para a prova (art. 188º, nº1 CPP), o qual, com os suportes técnicos, deverá ser levado ao conhecimento do Ministério Público de 15 em 15 dias (art. 188º, nº3 CPP) que o leva ao conhecimento do juiz em 48 horas (art. 188º, nº4 CPP).
O juiz ordena a junção aos autos das recolhas de voz e de imagem indispensáveis para fundamentar a aplicação das medidas de coacção, a requerimento do MP (art. 188º, nº7 CPP); caso contrário, constituindo elementos manifestamente estranhos ao processo, ordena a destruição imediata (art. 188º, nº6 CPP).
Os suportes técnicos que não forem destruídos ficarão no processo e aqueles que não forem utilizados como meio de prova serão destruídos após o trânsito em julgado da decisão (art. 188º, nº11 CPP).

No contexto da aplicação das formalidades das escutas telefónicas ao registo de voz e imagem, cabe ainda perguntar se é necessário que o juiz fixe um prazo dentro do qual tem que ter lugar a recolha de voz e de imagem, sob pena de nulidade.
Pronunciou-se o Tribunal Constitucional, no acórdão nº 4/2006, DRII de 14/2/2006, pela não inconstitucionalidade do artigo 6º Lei nº 5/2002 conjugado com os artigos 187º a 190º CPP na interpretação através da qual se entenda que “não se encontra ferida de nulidade a recolha de voz e de imagem que, apesar de ter sido judicialmente autorizada sem fixação expressa do prazo de duração, se processou e terminou sempre com efectivo acompanhamento e atempado controlo judicial da execução da operação.”
O STJ tem entendido que haverá que distinguir a omissão de formalidades substanciais, que constituirá nulidade insanável, e a falta de pressupostos formais, que integra uma nulidade sanável.
A fixação de um prazo enquadra-se nos pressupostos de forma, pelo que a sua omissão gera nulidade que pode ser sanada. Assim, o Ac. STJ de 12.07.2007, Proc. 07P1771, in www.dgsi.pt. Esta posição do Supremo é, no entanto, contrária à jurisprudência do Tribunal Constitucional, nomeadamente dos acórdãos nº 379/2004 de 1/6/2004, DRII de 21/7/2004 e nº 528/2003 de 31/10/2003, DRII de 17/12/2003 que declararam inconstitucional o entendimento que a observância dos requisitos de admissibilidade consagrados no art. 187º CPP é suficiente para satisfazer as exigências constitucionais e que as exigências previstas no art. 188º CPP são meros requisitos processuais sujeitos ao regime das nulidades sanáveis.
Com a revisão de 2007, ficou consagrada na lei esta solução de cominar com a nulidade insanável qualquer incumprimento dos arts. 187º, 188º e 189º CPP, designadamente a omissão de fixação de prazo de duração (máximo três meses – art. 187º, nº6 CPP).

Importa ainda referir a divergência de entendimentos quanto ao âmbito de aplicação deste meio de obtenção de prova. Aplicar-se-á apenas à recolha de voz e de imagem ou também quando se pretenda a gravação somente da voz ou só da imagem?
Do elemento literal de interpretação da norma prevista no artigo 6º da Lei nº 5/2002 (registo de voz e de imagem), bem como do efeito útil das previsões contidas nos artigos 167º, nº1 CPP (“reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo electrónico”) e 189º, nº1 in fine CPP (“comunicações entre presentes”) resulta a distinção de meios de obtenção de prova consoante o objectivo pretendido.
Assim sendo, quando se pretenda o registo de voz e simultaneamente da imagem de determinados indivíduos, lançar-se-á mão da recolha de voz e imagem prevista no artigo 6º Lei nº5/2002; enquanto para a gravação de voz aplicar-se-á o regime previsto para as escutas telefónicas (artigo 189º, nº1 in fine CPP); já no que diz respeito apenas à gravação de imagem, rege o disposto quanto ás reproduções mecânicas (artigo 167º, nº1 CPP).

Para terminar, o registo de voz e de imagem não se confunde com a utilização de sistemas de vigilância por câmaras de vídeo pelos serviços de segurança em locais públicos de utilização comum para captação de voz e de imagem, regulamentada pela Lei nº 1/2005 de 10 de Janeiro.
Entre os fins do sistema encontra-se a protecção de pessoas e bens e a prevenção da prática de crimes em locais em que exista razoável risco da sua ocorrência (art. 2º, nº1 c).

A utilização das câmaras de vigilância depende de autorização governamental (art. 3º, nº1) e rege-se pelo princípio da proporcionalidade (art. 7º, nº 1 e 2), sendo sempre proibida a violação do direito à intimidade da vida privada (art.7º, nº6 e 7).
Quanto a este último aspecto é de salientar o facto de se entender que, quando autorizada pelo juiz ao abrigo do disposto no art. 6º da Lei nº 5/2002, poder ser violada a intimidade da vida privada enquanto que, havendo conhecimento do visado sobre a gravação, é sempre proibida a violação da vida privada.
Dispõe o art. 8º, nº1, que quando uma gravação registe a prática de factos com relevância criminal, a força ou o serviço de segurança que utilize o sistema elaborará auto de notícia que remeterá ao MP juntamente com a fita ou o original das imagens e sons, no mais curto prazo possível.
Como condição de validade dos registos, e para que possam valer como meio de prova, a lei exige que exista uma informação sobre a existência das câmaras e, neste contexto, não podemos falar em proibição de captação de imagem uma vez que a mesma é tacitamente consentida, e como em local público, não contende com a intimidade da vida privada.
“Não pode falar-se em proibição de captação de imagem pois a própria lei impõe que, nos locais do tipo daquele em que as cassetes foram gravadas, se adoptem sistemas de segurança privadas.”, Ac. Tribunal da Relação de Guimarães de 30.02.2002, CJ-IV-285.