sexta-feira, abril 13, 2007

O regime da prova proibida

(texto de Manuel Ruaz Martins, para a sessão de 6 de Março de 2007)

Num Estado de Direito, a descoberta da verdade não é um valor absoluto e as proibições de prova, ao interditarem temas, meios, métodos ou simples possibilidades de valoração, apresentam-se como compreensíveis e claras limitações ao total esclarecimento daquela. Neste sentido, só interessa a verdade material obtida de forma processualmente válida[1].
A Constituição da República Portuguesa (CRP), após consagrar um amplo catálogo de direitos fundamentais concretizadores da ideia de dignidade humana, consagra no artigo 32º, nº 8, que “são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações.”.
Não obstante, a Constituição autoriza, em determinadas circunstâncias, excepcionais, a intromissão por parte das autoridades públicas na vida privada, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações dos cidadãos.
Atente-se, a este propósito, o disposto no artigo 34º da CRP:
Nº 2: “A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos na lei.”;
Nº 3: “Ninguém pode entrar durante a noite no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento.”;
Nº 4: “É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.”
A Constituição circunscreve, assim, o âmbito de protecção daqueles direitos e remete para o legislador ordinário a tarefa de definir as áreas de intervenção não abusivas, pretendendo alcançar na prática um estatuto de equilíbrio entre aqueles direitos individuais e o interesse punitivo do Estado.
Neste sentido, concretizando e dando expressão à disposição constitucional, o artigo 126º do CPC prescreve:
Nº 1: “São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa à integridade física ou moral das pessoas.”;
Nº 2: “São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com o consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos por lei;
d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, denegação ou condicionamento na obtenção de benefício legalmente previsto;
e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível.”

Nº 3: “Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.”

Nos termos do nº 1 do artigo 126º, as provas obtidas através destes métodos – exemplificativamente caracterizados no nº 2 – não poderão, em caso algum, ser utilizadas. Estamos perante uma proibição absoluta; no nº 3, sem prejuízo das situações previstas na lei, as provas obtidas nas referidas circunstâncias serão igualmente nulas e não poderão ser utilizadas sem o consentimento do titular do direito em causa. Trata-se, neste caso, de uma proibição relativa.
Esta é a distinção feita pela generalidade da doutrina portuguesa[2], apenas contrariada por MAIA GONÇALVES que, a propósito do artigo 126º do CPP, separa a nulidade do nº 1, que considera absoluta, insanável e de conhecimento oficioso, da nulidade do n.º 3, que seria sanável e dependente de arguição.
A Proposta de Lei n.º 109/X, de alteração ao Código de Processo Penal, vem esclarecer a controvérsia doutrinal, consagrando a solução já maioritariamente defendida, poderá acrescentar ao n.º 3 do artigo 126º que “…são igualmente nulas, e não podem ser utilizadas, as provas…”.
Por sua vez, o artigo 118º do CPP, que consagra o princípio da taxatividade em matéria de nulidades processuais, separa-as, claramente, dos mecanismos da irregularidade (n.º 2), e estabelece, no seu n.º 3, a importante fronteira entre nulidades do acto processual penal e proibições de prova.
O CPP traça, assim, uma fronteira nítida entre nulidades do acto processual e proibições de prova, reconhecendo a estas últimas um regime autónomo, que há-de buscar-se na dialéctica com o artigo 126º e com a própria Constituição.
De fora fica apenas a problemática da inexistência, omitida pelo legislador, mas reconhecida pela generalidade da doutrina[3] e jurisprudência[4].
O primeiro aspecto a evidenciar quanto ao regime autónomo das proibições de prova é o consentimento do ofendido, do titular dos direitos fundamentais afectados, que, a existir, exclui a respectiva violação, quando esteja em causa a intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
É a própria Constituição que considera o acordo como condição de possibilidade de entrada no domicílio dos cidadãos, além dos casos expressamente previstos na lei e facultados pelo competente mandado judicial[5].
Com efeito, o consentimento é, nalgumas situações, limitado. Desde logo, porque os direitos fundamentais, para além da sua dimensão subjectiva, encerram uma dimensão objectiva que implica que a sua validade jurídica seja parcialmente determinada pelo seu reconhecimento comunitário e não apenas pela vontade dos titulares, e que se traduz na diminuição da autonomia individual e na indisponibilidade de certos direitos fundamentais. Por outro lado, porque a manifestação do consentimento podia não ser totalmente livre, dado que o cidadão se encontra aqui num estatuto de supra/infra ordenação ou de “inferioridade”, colocado perante o “ius puniendi” do Estado.
O segundo aspecto a considerar no regime das proibições de prova prende-se com a rigorosa delimitação do âmbito de protecção das normas constitucionais, recorrendo à ideia de limites imanentes aos direitos fundamentais, na medida em que a Constituição não tutela formas de fruição abusiva desses direitos. Não se pode utilizar a inviolabilidade do domicílio para cometer um homicídio ou um atentado terrorista![6]
O disposto no artigo 177º nº 1 do C.P.P., configura a materialização processual deste ideia, quando se confere ao Ministério Público a faculdade de ordenar buscas domiciliárias, e aos órgãos do polícia criminal a possibilidade de as realizar sem mandado judicial, nos casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática eminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade física de qualquer pessoa.
O terceiro aspecto a sublinhar é o de que toda e qualquer restrição aos direitos fundamentais terá de limitar-se à medida do necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, obedecendo a critérios de proporcionalidade, adequação e necessidade (artigo 18º nº 2 da CRP).
Estamos, pois, em condições de fazer uma primeira aproximação à definição de proibições de prova como obstáculos colocados à determinação dos factos que constituem o objecto do processo, funcionando como verdadeiros limites à descoberta da verdade. Neste sentido, configuram restrições aos princípios da livre convicção probatória e da livre admissibilidade dos meios de prova. O meio probatório obtido por meio de prova proibida nunca poderá ser valorado em juízo.
Por sua vez, as nulidades processuais visam disciplinar o procedimento exterior da realização da prova, na diversidade dos seus meios e métodos. Os artigos 118º a 123º do C.P.P. reportam-se apenas aos vícios formais, à inobservância das prescrições legais estabelecidas para a prática dos actos processuais, à violação das formalidades previstas para a obtenção de provas admissíveis. Trata-se de um vício relativo ao modus procedendi, por contraposição à proibição de prova, que contende com o se da prova.

CASOS CONCRETOS
- O caso dos “diários apreendidos” – Acórdão do Tribunal Constitucional nº 607/2003, de 5 de Dezembro.
Circunscrevendo a questão suscitada neste Acórdão à constitucionalidade da norma constante do artigo 126º nºs 1 e 3, do C.P.P., na medida em que violaria o disposto nos artigos 1º, 13º nº 1, 25º e 32º nº 8, da CRP, quando interpretada no sentido de não consagrar a ilicitude de valoração, como meio de prova da existência de indícios de factos integrantes dos crimes de abuso sexual de crianças imputados ao arguido (previstos e puníveis pelo artigo 172º nºs 1 e 2, do CP), e dos pressupostos estabelecidos nos artigos 202º e 204º alínea c), do CPP, para a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, dos diários apreendidos ao recorrente, em busca domiciliária judicialmente decretada, e cuja legalidade formal ou procedimental não é posta em causa.
Trata-se da obtenção de material probatório através de um meio lícito, mas susceptível de conflituar com direitos fundamentais do arguido, essencialmente o direito à reserva da intimidade da vida privada.
Começando por chamar a atenção para os limites da procura da verdade material em processo penal, consagrados constitucional e legalmente através da tipificação de proibições de prova, o Acórdão parte para a confrontação das várias posições defensáveis a respeito da temática específica da valoração dos diários pessoais.
O Tribunal Constitucional, no Acórdão em análise, acaba por seguir o entendimento adoptado pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão no Acórdão de 14 de Setembro de 1989 (no “segundo caso do diário”), distinguido, quanto ao conteúdo dos diários pessoais, a parte em que este exprima um cunho vivencial puramente pessoal, tais como pensamentos, impressões, angústias, reflexões, emoções, sem ligação directa com os factos imputados ao arguido, da parte em que, exprimindo embora os sentimentos e emoções do autor, contenha descrições que toquem a esfera dos outros ou da comunidade e contenham indicações sobre os actos que lhe são imputados.
É permitida a valoração probatória do material recolhido, desde que, através de um critério de ponderação, balanceando a tutela da intimidade com o contrapeso do premente interesse público na realização da justiça, seja de considerar que o interesse do Estado na perseguição e punição do agente do crime se sobreponha ao interesse do indivíduo à reserva da sua vida.
Neste juízo de ponderação haverá que entrar em linha de conta com os princípios da proporcionalidade e da necessidade, sopesando devidamente a gravidade da natureza do crime, a relação das descrições do diário com os bens jurídicos em causa, o interesse na protecção das vítimas. Em suma, importa verificar se a restrição a este concreto direito fundamental está de acordo com o critério constitucional previsto no artigo 18º da CRP, se passa pelo crivo apertado dos parâmetros constitucionais da restrição de direitos fundamentais.

- O “Efeito à Distância” – Acórdão do Tribunal Constitucional nº 198/2004, de 24 de Março
A autonomização do regime processual das proibições de prova reflecte-se ainda na problemática do efeito à distância.
O artigo 122º nº 1, do CPP, dispõe que “as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que nele dependerem e aquelas puderem afectar”.
Será que esse valor negativo afecta irremediavelmente o que cronologicamente aparece depois?
A doutrina tem-se pronunciado pela consagração do efeito à distância na norma do artigo 122º nº 1, do CPP, muito embora este se refira ao regime das nulidades processuais, que o artigo 118º, nº 3 autonomiza do regime das proibições de prova. No entanto, não faria sentido que o legislador autonomizasse as proibições de prova na busca de uma melhor protecção dos direitos individuais, para depois lhe atribuir um regime processual mais fraco. Daí que seja de concluir que o disposto no artigo 122º vale em matéria de prova proibida[7].
Também o Tribunal Constitucional, afirmou que “o sentido de uma norma prescrevendo que a invalidade do acto nulo se estende aos que desta dependerem ou que ele possa afectar (artigo 122º nº 1 do CPP) é desde logo o de abrir caminho à ponderação que subjaz à chamada doutrina dos “frutos proibidos”. Isto, cotejado com a apontada amplitude das garantias de defesa contidas no artigo 32º da CRP leva a que este Tribunal considere que, efectivamente, certas situações de efeito á distância não deixam de constituir uma das dimensões garantísticas do processo criminal, permitindo verificar se o nexo naturalístico que, caso a caso, se considere existir entre a prova inválida e a prova posterior é, também ele, um nexo de antijuridicidade que fundamente o “efeito à distância”, ou se, pelo contrário, existe na prova subsequente um tal grau de autonomia relativamente à primeira que a destaque substancialmente daquela”.
Note-se que o Tribunal Constitucional não só admite expressamente o efeito à distância como o faz depender de uma ponderação do caso concreto para determinar a existência ou não do tal nexo de antijuridicidade entre a prova proibida e a prova subsequente, confinando a respectiva previsão aos casos em que o aproveitamento da prova consequencial ponha em causa a dimensão garantística do processo criminal – interpretação conforme à Constituição do artigo 122º nº 1, do CPP.
Como aferidores deste prejuízo para as garantias de defesa do arguido, propõe o Tribunal Constitucional o recurso a critérios como os do “nexo causal atenuado”, o da “fonte independente” e o da “descoberta inevitável” (amplamente explicadas no Acórdão, aderindo expressamente às teorias intermédias que foram sendo consagradas pelo Supreme Court norte americano).
Deste modo, sempre que for possível afirmar que mesmo sem a violação da proibição, a prova secundária ou imediata teria sido obtida, admitir-se-á a sua valoração, assim se atribuindo relevância aos processos hipotéticos de valoração.
Foi precisamente neste sentido que decidiu o Tribunal Constitucional. Estava em causa no Acórdão o aproveitamento da prova traduzida em confissão de arguido em sede de julgamento, quando não foram consideradas as escutas telefónicas por as mesmas enfermarem de nulidade, que inviabilizou a sua utilização como meio de prova. Contrariamente ao entendimento do arguido, no sentido da contaminação das declarações obtidas por via da confissão pelo efeito da invalidade que atingiu as escutas telefónicas, veio o Tribunal sustentar que a confissão funciona como verdadeiro paradigma de uma prova subsequente autónoma, concretamente por decorrer de um acto de vontade de quem é advertido do sentido das declarações que eventualmente venha a prestar, bem como do direito de não as prestar, encontrando-se assistido por defensor. Esta autonomia possibilita um acesso aos factos totalmente destacável de qualquer outra forma de acesso anteriormente surgida e afectada por um valor negativo.

CONCLUSÕES:
- 1ª À nulidade a que se reporta o artigo 126º NÃO É APLICÁVEL o regime geral sobre as nulidades dos actos, previstos nos artigos 118º e seguintes, pois estamos perante uma NULIDADE “SUIS GENERIS”. A proibição de prova importa uma proibição de produção da prova mediante o recurso a tais meios proibidos. Ocorrendo violação de uma proibição de prova, o legislador estabeleceu como consequência a proibição de valoração. É o que decorre do n.º 1 do artigo 126º: “são nulas, não podendo ser utilizadas…”. Ao contrário do regime geral das nulidades, cuja consequência é a destruição dos efeitos produzidos pelo acto inválido (art. 122º CPP), o legislador proibiu a própria produção dessas provas mas, caso tenham sido produzidas, proibiu a sua utilização e valoração;
- 2ª As proibições de prova podem e devem ser conhecidas oficiosamente pelo juiz e declaradas em qualquer fase do processo, implicando o não aproveitamento dos actos processuais que as violem;
- 3ª As proibições de prova são insanáveis, sem qualquer possibilidade de convalidação, nem mesmo por efeito do caso julgado. Deve entender-se como possível o recurso extraordinário de revisão, com fundamento na utilização de prova obtida mediante métodos proibidos – cf. artigo 449º nº 1 alínea d), do CPP, aplicado de forma analógica[8]. A própria Constituição, no seu artigo 29º nº 6, prescreve que os cidadãos injustamente condenados têm direito à revisão da sentença e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem impõe aos Estados a introdução de mecanismos internos destinados à correcção de decisões já transitadas em julgado, tidas como violadoras da Convenção pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (artigo 46º de CEDH).
Neste aspecto particular, Costa Andrade[9], embora autonomize as proibições de prova das nulidades, insanáveis e dependentes de arguição, sustenta a submissão daquelas ao regime processual das nulidades insanáveis. Assim sendo, a nulidade resultante da produção de prova proibida, entende o Autor, será de conhecimento oficioso até à decisão final, só se convalidando com o trânsito em julgado da decisão.
- 4ª A consagração do efeito à distância (art. 122º, nº1, do CPP).
[1].JOÃO CONDE CORREIA, “A Distinção entre Prova Proibida por Violação dos Direitos Fundamentais e Prova Nula numa Perspectiva Essencialmente Jurisprudencial”, in “Revista do CEJ”, nº 4, página 175 e ss.
[2].Cf., entre outros, MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal”, Coimbra Editora, 1992, página 209 e ss.
[3]. Souto Moura, Inexistências e Nulidades Absolutas em Processo Penal, CEJ – Textos 1, 1990-91; João Conde Correia, Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais, 1999, Coimbra Editora, págs. 112 e ss e 116 e ss.
[4]. Cf., entre outros, os Acórdão da Relação de Coimbra, de 17 de Março de 1999, CJ, 1999, III, pág. 45, e da Relação do Porto, de 12 de Maio de 1999, CJ, 1999, III, pág. 228.
[5]. A este propósito, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 507/94, de 14 de Julho de 1994, julgou inconstitucional a interpretação segundo a qual a busca domiciliária em casa habitada pode ser efectuada com o consentimento de quem, não sendo visado por tais diligências, tiver a disponibilidade da habitação em que a busca seja efectuada.
[6]. João Conde Correia, Ob. Cit.
[7]. MANUEL DA COSTA ANDRADE e JOÃO CONDE CORREIA, ob. cit.
[8]. Neste sentido, entre outros, DAMIÃO DA CUNHA, O Caso Julgado Parcial, Publicações Universidade Católica, 2002, pág. 771.
[9]. MANUEL DA COSTA ANDRADE, Ob. Cit.