sexta-feira, abril 13, 2007

Legitimidade do Ministério Público

(texto de Manuel Ruaz Martins, para a sessão de 6 de Outubro de 2006)

LEGITIMIDADE ORIGINÁRIA E LEGITIMAÇÃO
O Ministério Público (MP) pode ser definido como órgão do Estado, a quem a Constituição (art. 219.º) confere competência para representar o Estado, defender os interesses que a lei determinar, participar na execução da política criminal, exercer a acção penal e defender a legalidade democrática.
Trata-se de um órgão de administração da justiça, juridico-constitucionalmente integrado nos Tribunais, com estatuto próprio, autónomo, constituído por um corpo de magistrados responsáveis, hierarquicamente subordinados, e adstritos, no exercício das suas funções, a critérios de legalidade e objectividade.
A legitimidade aparece – no sentido institucional – como atributo do poder que determinado órgão possui, e configura, em regra, a conformidade com uma escala de valores, traduzida por um sentimento geralmente difundido na comunidade. Este tipo de legitimidade funda-se no Direito e impõe-se por vontade do legislador. Estamos a falar do constitucionalismo normativo.
A actividade do MP, como órgão de justiça, constitui-se e legitima-se a partir das opções constitucionais tomadas. Uma comunidade que, por intermédio dos seus representantes eleitos, adoptou determinada Constituição, quis as soluções normativas e as instituições nela consagradas. A nossa Constituição, ao criar o MP e ao delimitar o seu campo de actuação, está a legitimar originariamente a sua existência como órgão.
Ao passo que a legitimidade institucional ou originária deriva directamente da Lei, a legitimação do MP só pode ser alcançada pelo exercício das competências que lhe são conferidas, de forma imparcial e objectiva, em obediência ao primado da lei e na defesa dos mais altos valores da comunidade.
A forma de selecção dos magistrados, com o rigor público das provas de acesso à profissão, e a exigência da formação e avaliação contribuem de forma decisiva para a legitimação do MP.
Por vezes, acena-se com a crítica fácil e falaciosa da inexistência de controlo e responsabilização desta magistratura. Não é bem assim. Por um lado, a acção do MP é controlada, desde logo, pelo juiz e pelos cidadãos; é controlada, igualmente, de forma indirecta, pelo poder político, que propõe e nomeia o Procurador-Geral da República (art. 133.º, m), da CRP). Por outro lado, a própria composição do Conselho Superior do MP – com cinco membros eleitos pela Assembleia da República e duas personalidades de reconhecido mérito designadas pelo Ministro da Justiça (art. 15.º, 2, f) e g), do EMP) – é uma estrutura importante de controlo e responsabilização.
Na verdade, considerando o nosso contexto e percurso histórico e a realidade socio-política existente, logo se concluirá que este sistema é o que melhor serve a nossa escala de valores e princípios constitucionais, quando confrontado, por exemplo, com outras soluções, designadamente, de eleição e nomeação – com cariz político – de magistrados.

LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO EXERCÍCIO DA ACÇÃO PENAL
Sem embargo de ser multifuncional, o MP, como magistratura de iniciativa e de promoção, tem na acção penal a sua área de intervenção primordial.
Na promoção penal, constatamos que o MP é norteado pelo princípio da legalidade. Este princípio impõe-lhe o dever de agir, determinando a abertura de um processo e o prosseguimento de uma investigação, sempre que, de modo próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal, mediante denúncia ou apresentação de queixa, ao seu conhecimento chegue a notícia de um crime (cfr. arts. 241.º, 262.º, 2, e 283.º do CPP).
A disciplina da lei ordinária dá plena aplicação ao princípio da legalidade quanto à opção de se iniciar ou não um procedimento. Já no que concerne ao desenvolvimento do inquérito e ao seu desfecho, o Código prevê um conjunto de opções que, como se verá, levam a falar de uma “legalidade aberta”.
De facto, as manifestações concretas dos “mecanismos de consenso” no actual processo penal: suspensão provisória do processo, o arquivamento em caso de dispensa de pena e o processo sumaríssimo, e, no futuro, a mediação penal, não retiram conteúdo ou validade ao princípio da legalidade. Pelo contrário, a legalidade e a oportunidade não são realidades absolutamente antagónicas. A abertura do processo existe, assim como a investigação que é conduzida com imparcialidade e objectividade. O que não existe sempre, nem deve existir, é o dever de acusação.
Neste sentido, é também seguro afirmar que o MP não pode prosseguir ou deixar prosseguir uma investigação se concluir pela não verificação de elementos ou factos que consubstanciem a prática de algum crime.
Depois de adquirir a notícia do crime, ao MP compete abrir e dirigir o inquérito, deduzir acusação, sustentá-la na instrução e julgamento, interpor recursos e promover a execução das penas e medidas de segurança (cfr. art. 53.º, 2, do CPP).
Para o efeito, quanto a crimes de natureza pública (art. 48.º do CPP), o MP dispõe de legitimidade para impulsionar e promover o processo, praticando todos os actos necessários e que melhor se ajustem às finalidades e especificidades de cada processo, dentro de um quadro legal definido.
Nem sempre é assim. Em face de certo tipo de criminalidade, o legislador entendeu, tendo em consideração razões de pura política criminal e de valoração dos bens jurídicos afectados, condicionar a existência do processo à apresentação de queixa e, nalguns casos, à apresentação de queixa seguida pela constituição de assistente e dedução de acusação particular (cfr. arts. 49.º e 50.º do CPP). Nestes casos, estamos perante crimes de natureza semipública ou particular, respectivamente.
A queixa é um instituto de natureza mista, substantivo e processual, e que se distingue da simples denúncia porque, para além da notícia do crime que, como aquela, transmite, implica, ao mesmo tempo, o desejo, que só o “queixoso” tem legitimidade para expressar, de instaurar procedimento criminal contra o agente.
No art. 113º, 6, da CP, prevê-se, porém, a possibilidade de, nos casos especialmente previstos na lei, o MP iniciar, oficiosamente, o procedimento dependente de queixa, quando o “interesse da vítima o impuser”.
Tomando como ponto de partida esta expressão, lanço a seguinte nota reflexiva, que tem como objectivo propiciar o debate na sessão de Penal II:
A oposição de um ofendido, maior de 16 anos, à continuação dum processo promovido nos termos do art. 178.º, 4, do CP, pela razão de os crimes previstos neste preceito (coacção sexual, violação, abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, fraude sexual, procriação artificial não consentida, actos exibicionistas, abuso sexual de crianças, abuso sexual de menores dependentes, actos sexuais com adolescentes e actos homossexuais com adolescentes) terem, segundo uma corrente de opinião, “natureza atípica”, deverá ser relevante e determinar o arquivamento do processo?

BIBLIOGRAFIA:

- António Cluny, “Pensar o Ministério Público Hoje”, Edições Cosmos, Lisboa, 1997;
- Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. I, 4.ª Ed., Editorial Verbo, Lisboa/São Paulo, 2000;
- José Souto de Moura, “Direito ao assunto”, Coimbra Editora, Coimbra, 2006;
- Jorge dos Reis Bravo, “Legitimidade, iniciativa e oportunidade da acção do Ministério Público”, Cadernos da Revista do Ministério Público – 5º Congresso do Ministério Público, página 103;
- Maria João Antunes, “Oposição de maior de 16 anos à continuação de processo promovido nos termos do art. 178.º, n.º 4, do Código Penal”, Revista do Ministério Público n.º 103, Ano 26, Julho/Setembro de 2005, pág. 21;- Orlando Viegas Martins Afonso, “Poder Judicial – Independência in Dependência”, Almedina, Coimbra, 2004