O Ministério Público e os orgãos de polícia criminal
(texto de Cláudia de Jesus, para a sessão de 20 de Outubro de 2006)
I - A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 219.º, estabelece que compete ao Ministério Público representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo principio da legalidade e defender a legalidade democrática.
O Estatuto do Ministério Público reproduz no art. 1.º aquele preceito constitucional e enumera, no art. 3.º, as funções do Ministério Público, entre as quais destacamos o exercício da acção penal (cfr. n.º 1 al. c)), orientado pelo princípio da legalidade. Como complemento desta função, cabe ao Ministério Público, dirigir a investigação criminal, promover e realizar acções de prevenção criminal e fiscalizar a actividade processual dos órgãos de polícia criminal (cfr. n.º 1 alíneas h), i) n)).
No âmbito das suas atribuições cabe ao Ministério Público, em regra, além do mais, receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a dar-lhes, dirigir o inquérito e deduzir ou não, com base nele, acusação em juízo (artigo 53.º, nº 2 alínea a) a c), e 262.º, nº 1, do C.P.P.).
A decisão de deduzir acusação, que pressupõe a formulação de um delicado juízo de valoração dos elementos probatórios previamente carreados na fase do inquérito, constitui a mais importante parcela da actividade processual penal do M.P.
A lei não define o conceito de “inquérito”, mas caracteriza-o em função do seu âmbito e finalidades.
Nos termos do art. 262º, nº 1, do C.P.P., o inquérito compreende as diligências que visam investigar a existência de infracções penais, determinar quem foram os seus autores e a responsabilidade destes e descobrir e recolher as provas respectivas.
Do exposto resulta que, o inquérito é no C.P.P., a fase geral e normal de preparar a decisão de acusação, que se inscreve na titularidade e direcção do M.P..
Mas, o facto da titularidade e direcção do inquérito competir ao M.P. não significa que a investigação criminal seja por ele directa e materialmente realizada, até porque esta actividade exige o domínio de técnicas, o conhecimento de variáveis estratégicas e a disponibilidade de recursos logísticos.
Com efeito, o Ministério Público é assistido, na sua actividade de direcção do inquérito, pelos órgãos de polícia criminal (O.P.C)[1], os quais actuam sob a orientação directa e na dependência funcional[2] daquela autoridade judiciária (cfr. arts. 56.º e 263.º do Código de Processo Penal). Isto significa que os órgãos de polícia criminal devem prestar toda a assistência requerida pelas autoridades judiciárias, sempre que o auxílio se fundamente na sua melhor preparação técnico-científica[3].
De harmonia com o art. 55º, nº 1, do C.P.P., compete em geral, aos órgãos de polícia criminal coadjuvar as autoridades judiciárias com vista à realização das finalidades do processo. E, em especial, mesmo por iniciativa própria colher notícia dos crimes e impedir quanto possível as suas consequências, descobrir os seus agentes e levar a cabo os actos necessários e urgentes destinados a assegurar os meios de prova (art. 55º, nº 2 ,do C.P.P.).
Daqui resulta que, no âmbito do nosso Código do Processo Penal existem ideias mais ou menos precisas quanto a uma clara concepção de um esquema de cooperação entre as autoridades judiciárias e órgãos de polícia criminal.
Os artigos 55.º, 56.º, 263.º e 270.º, do C.P.P. indicam-nos como se processa tal cooperação e relacionamento.
Numa primeira aproximação podemos dizer que, compete aos órgãos de polícia criminal, no exercício da sua competência coadjuvatória, praticar todos aqueles actos que sejam necessários à realização das finalidades processuais penais, ao lado dos órgãos principais, ou seja, as autoridades judiciárias.
No entanto, caso a actuação conjunta destes dois órgãos, não se encontrasse devidamente regulamentada, tal poderia levar a um choque entre o exercício de ambos, razão pela qual se tem reconhecer ao órgão coadjuvado (M.P.) a possibilidade de definir quais as tarefas que o coadjuvator (O.P.C.) potencialmente terá de cumprir, em termos de coadjuvação.
Sendo a coadjuvação a figura que vem regular as funções dos O.P.C., fica ainda por saber qual o nível de relacionamento e articulação entre estes e os respectivos titulares das funções tendentes à realização do processo penal. O par de conceitos “direcção “ e “dependência funcional” visam responder a esta questão.
O conceito de dependência funcional[4] «visa fundamentalmente pôr em relevo o esquema organizatório que preside ao relacionamento entre autoridades judiciárias e órgãos de polícia criminal[5]».
Tal significa que, naquela tarefa coadjuvatória atribuída aos O.P.C., a forma de cooperação referida só existe enquanto os O.P.C. exercem aquelas funções processuais penais e só ao nível das funções, pelo que a dependência não se refere a qualquer aspecto orgânico dos mesmos órgãos.
Se o exercício da actividade dos órgãos de polícia criminal é coadjuvatório e funcionalmente dependente das autoridades judiciárias (M.P.), é necessário que a estas tenham de ser concedidas formas que garantam a sua posição de órgão principal ou titular e ainda que garantam aquela dependência funcional do coadjuvador.
Esta forma de garantia é precisamente o conceito de direcção.
A direcção no sentido utilizado pelo C.P.P.. traduz, por um lado, uma relação de subordinação diferente da hierarquia, e, por outro, é também tradução dos poderes que cabem ao ente superior. Os poderes inerentes a esta figura de direcção são os de emitir directivas[6]-[7] e de controlo.
No âmbito das competências gerais que foram atribuídas ao M.P. para o exercício da função de exercício da acção penal (como atrás foi referenciado) resultam duas específicas competências referidas no art. 53º da alínea b) «dirigir o inquérito» e a alínea c) «deduzir a acusação».
Todo o inquérito (isto é, todo o conjunto de diligências e actos em que ele se decompõe) está dirigido, exactamente, àquela decisão final de dedução ou não de uma acusação.
Assim, o inquérito é um verdadeiro pressuposto da competência de dedução da acusação. Por isso, direcção do inquérito e acusação constituem, a nível funcional, uma inseparável unidade.
Ora, as alíneas b) e c) do art. 53º do C.P.P. não devem ser interpretadas como competências diferentes ou separadas.
Tendo em conta que o inquérito e a decisão final constituem uma unidade, o grau de titularidade das duas «competências» é diverso para o M.P., na medida em que o acto decisório final, de que a actividade de inquérito é pressuposto compete, única e exclusivamente, ao M.P. e, diferentemente, no âmbito da actividade de inquérito, o M.P. tem “apenas” a direcção.
Logo, a acusação, é um acto pessoal e inauxiliável para o M.P.. No inquérito, ao contrário, é possível a intervenção coadjuvatória dos órgãos de polícia criminal[8].
É nesta forma diferencial que se pode encontrar o espaço para a intervenção coadjuvatória dos órgãos de polícia criminal.
II - Tipos de intervenção coadjuvatória:
A referida coadjuvação traduz-se, no essencial, em dos tipos de intervenção[9]:
- a polícia criminal pode, por razões de facto, intervir independentemente de qualquer ordem ou encargo do Ministério Público. Age, assim, por sua iniciativa – trata-se das denominadas “medidas cautelares e de polícia”- sendo certo que esta iniciativa própria é excepcional e temporalmente limitada (cfr. art. 248.º ss C.P.P.).
- os órgãos de polícia criminal podem intervir por força de um encargo do Ministério Público.
Como escreve Paulo Dá Mesquita[10], os actos dos OPC estão em qualquer caso sujeitos à valoração processual do Ministério Público. Todavia, a diferença estrutural entre os actos praticados por iniciativa própria dos órgãos de policia criminal e os actos praticados por encargo do Ministério Público radica na legitimação ope legis dos primeiros, o que permite uma autonomia técnica da polícia na concretização do comando legislativo, ao invés do que sucede quando actua por encargo do Ministério Público, ficando aí vinculada aos termos e âmbito do necessário comando da autoridade judiciária.
Quanto ao primeiro tipo de intervenção, ninguém duvida da importância das medidas cautelares e de polícia no âmbito da investigação criminal. No entanto, a prática pelos órgãos de polícia criminal de medidas cautelares e de polícia não pode ser confundida com uma fase processual, uma vez que o inquérito apenas se inicia com a fase de inquérito[11].
Assim, a aquisição da notícia do crime determina o dever de comunicação no mais curto prazo[12] ao Ministério Público e para este órgão a obrigatoriedade de abertura do processo penal (cfr. arts. 245.º, 248.º, 253.º e 259.º, todos do C.P.P). O cumprimento deste dever de comunicação é muito importante uma vez que só assim poderá o Ministério Público orientar a actividade do O.P.C. ou até determinar a cessação imediata da intervenção policial[13].
Os actos praticados pelos O.P.C. por iniciativa própria no âmbito das medidas cautelares, embora possam vir a integrar o processo, não são, no momento da sua prática, actos processuais em sentido formal. A sua integração no processo depende de um acto decisório da autoridade judiciária que nesse momento assumirá a responsabilidade pelos mesmos.[14]
O art. 2.º n.º 3 da Lei de Organização da Investigação Criminal (Lei n.º 21/2001 de 10 de Agosto) dispõe que a notícia de um crime deve ser transmitida ao Ministério Público “no mais curto prazo, sem prejuízo de, no âmbito do despacho de natureza genérica, previsto no n.º 4 do art. 270.º do Código de Processo Penal, (os OPC) deverem iniciar de imediato a investigação”. Esta norma, como à primeira vista pode parecer, não tem carácter inovador, isto é, não afasta a obrigação de comunicação da notitia criminis ao Ministério Público em todos os casos (vide Directiva n.º 1/2002, da PGR, publicada no DR, II série, de 4 de Abril de 2002).[15]
Assim, os órgãos de polícia criminal, fora do quadro das medidas cautelares e de polícia, carecem de competência para intervir por iniciativa própria, estando proibida toda a actividade policial de investigação que se segue à notícia do crime mas não foi precedida de comunicação ao Ministério Público, ainda exista um despacho de natureza genérica, nos termos do art. 270.º n.º 4 CPP[16].
Relativamente à actividade processual dos órgãos de polícia criminal por via de encargo do Ministério Público[17] podemos afirmar que, na fase de inquérito, os OPC actuam sob a directa orientação do Ministério Público[18]. O que, na opinião de Faria Costa[19], significa duas coisas: por um lado, um poder de directo contacto com os agentes encarregues da investigação criminal e, por outro lado, um poder contínuo e permanente de emitir directivas que dirijam a actividade investigatória.
Com efeito, a direcção do inquérito implica que o Ministério Público acompanhe e oriente a investigação e que os OPC cumpram o seu dever de informação, pelo que será importante manter, entre os agentes policiais e o magistrado titular do inquérito, uma relação informal e desburocratizada[20].
O modelo de dependência funcional adoptado pelo legislador português opõe-se, quer ao modelo de dependência total, quer ao modelo de autonomia e pressupõe que o exercício do poder de orientação do Ministério Público tem de respeitar a estrutura administrativa e orgânica das entidades policiais. Segundo Souto Moura[21], “estrutura orgânica, a acção disciplinar, ou o funcionamento administrativo das policias, são campos estranhos à actuação do M. P. Este superintende no processo e só no processo. (…) Se conflito houver, só as hierarquias de ambos os lados, desbloquearão em última instância a situação, avaliando se a questão é orgânica ou funcional, e encontrando os mecanismos adequados de cooperação. Aliás, o interrelacionamento M.P. / polícias passará também pelo princípio da indivisibilidade do M. P., obviando-se através de circulares e orientações internas, à disparidade de actuações. A dependência funcional dos polícias (…) é apenas uma outra forma de abordar a "assistência", que segundo o Código deve ser prestada às autoridades judiciárias. As polícias "assistem" às autoridades judiciárias realizando as diligências de prova ou entabulando as investigações, que mais genericamente lhes forem solicitadas. Deverão seguir as orientações de procedimento processual dadas, certo que ficarão em princípio à margem daquelas directivas, as questões de pura táctica ou estratégia policial, não contendentes com a lei. A dependência funcional implica obviamente a apreciação dos resultados obtidos e requisição, ou não, de novas diligências. Implica finalmente a possibilidade de a todo o momento se fiscalizar o trabalho especificamente processual que tenha sido atribuído” (os sublinhados são nossos).
Este modo de relacionamento dos órgãos de polícia criminal com as autoridades judiciárias foi reafirmado através da Lei de Organização da Investigação Criminal (LOIC), a qual procurou ainda determinar os parâmetros de competência de substância e adjectiva quanto à investigação criminal.
O legislador entendeu que a eficácia do combate à criminalidade exigia uma racionalização dos meios e a clarificação das funções atribuídas aos diferentes órgãos de polícia criminal. A LOIC define, em razão do tipo de crime, a competência reservada/específica da Policia Judiciária[22] (art. 4.º) e prevê mecanismos de competência deferida em razão da especificidade de uma dada investigação em concreto (art. 5.º).
III – Em jeito de apreciação final, podemos dizer que o Código de Processo Penal atribui à magistratura do Ministério Público a competência para a direcção do inquérito, que envolve igualmente competências de investigação criminal e, sobretudo, “um papel estruturante da intervenção policial”[23].
No entanto, verifica-se que o Ministério Público não tem meios materiais e humanos, nem estruturas de apoio que lhe permitam assumir cabalmente a sua posição de dominus do inquérito[24] e, consequentemente, cumprir a sua atribuição constitucional de exercício da acção penal.
Se se pretende evitar a designada “policialização[25]” do processo penal, o Ministério Público não pode ser um mero gestor de papéis[26], pelo contrário, deve ser dotado de condições que lhe permitam intervir/acompanhar o trabalho das forças policiais, só assim podendo ser responsabilizado pelos resultados obtidos.
Os órgãos de polícia criminal ou as autoridades de polícia criminal (cfr. art. 1.º n.º 1 al. d) do C.P.P.) não podem substituir o papel das autoridades judiciárias, sob pena se colocar em causa o sentido do “princípio da investigação sob garantia judicial”[27].
A solução poderá ainda passar por uma melhoria ao nível da informação sobre a intervenção na investigação criminal, onde a consciencialização da especificidade das tarefas de cada um é fundamental.
Todavia, a investigação criminal, como ciência auxiliar do direito penal, não tem sido alvo de estudo e divulgação adequadas. Este facto dificulta uma definição clara das “fronteiras” da intervenção dos vários órgãos e autoridades, com reflexos na sua eficácia de actuação.
Nas palavras de Anabela Rodrigues[28], “a trindade ministério público, juiz e órgãos de polícia criminal, devia repartir entre os seus membros as responsabilidades da investigação e da decisão sobre o caso, com competências diferenciadas e delineadas com rigor”.
Finalmente, entendemos que é necessário, antes de mais, fomentar uma “cultura de proximidade” entre os agentes do sistema de justiça. Não podemos descurar a importância do estabelecimento de relações interpessoais e interprofissionais fortes. Só desta forma se poderá promover o relacionamento são entre magistrados e polícias, imprescindível na tarefa (que é de todos) de servir o interesse público.
1 Os órgãos de polícia criminal são entidades e agentes policiais coadjuvantes da autoridade judiciária. Além dessa função de coadjuvação, competem-lhes tarefas especialmente prescritas no CPP – cfr. art. 1.º al. c) do CPP. São órgãos de polícia criminal, de competência genérica – v. art. 3.º Lei n.º 21/2000, de 10.08:
PJ (DL 275-A/2000, de 9/11, sucessivamente alterado pela Lei 103/2001, de 25/08, pelo DL n.º 323/2001, de 17/02, pelo DL 304/2002, de 13/12 e pelo DL n.º 43/2003, de 13/03)
GNR (DL 231/93, de 26/06, alterado pelo DL 15/2002, de 29/01)
PSP (Lei 5/99, de 27/08, alterado pelo DL 137/2002, de 16/05)
Enquadrados pela Lei 21/2000, de 10/08, que organiza a investigação criminal, define as competências dos órgãos de polícia criminal e cria, a nível nacional, um conselho coordenador desses órgãos.
São órgãos de polícia criminal, de competência específica, “aqueles a quem a lei conferir esse estatuto” – cfr. art 3.º da Lei/2000, de 10.08, como por exemplo, o SEF (DL n.º 252/2000, de 16/10).
[2] O C.P.P. optou por um sistema intermédio de dependência funcional mitigada, isto é, a polícia criminal tem uma independência organizatória, administrativa e disciplinar e uma dependência funcional relativamente às autoridades judiciárias.
[3] É esta melhor preparação técnico-científica dos OPC que justifica a autonomia (técnica) na concretização dos comandos das autoridades judiciárias.
[4] A dependência funcional conduz a um tríplice grau de disponibilidade: grau mais ténue – verifica-se na audiência de julgamento, na qual a polícia criminal deve prestar toda a colaboração que seja julgada necessária, nomeadamente para a comprovação judicial, podendo ser ordenada a prática de actos concretos; grau intermédio – traduz-se na disponibilidade funcional para actos que pertencem o juiz de instrução, em matéria de instrução; grau máximo – decorre em relação o Ministério Público no decurso da fase de inquérito e implica a prática pela polícia criminal de todos os actos de inquérito, com excepção dos jurisdicionais e os da exclusiva competência do Ministério Público.
[5] Cfr. José Damião da Cunha, in O Ministério Público e os Órgãos de Polícia Criminal no Novo Código de Processo Penal - pág. 114.
[6] As directivas são “orientações genéricas, que definem imperativamente os objectivos a cumprir pelos seus destinatários, mas que lhes deixam liberdade de decisão quanto aos meios a utilizar e às formas a adoptar para atingir esses objectivos - cfr. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. I, 1986, pág. 711.
[7] Ao Ministério Público cabem os seguintes poderes: emitir directivas, ordens e instruções; acompanhar e fiscalizar os diversos actos; delegar ou solicitar a realização de diligências; presidir ou assistir a certos actos ou autorizar a sua realização; avocar, a todo o tempo, o inquérito – cfr. Circular n.º 08/87 da PGR.
[8] No entanto, como refere Damião da Cunha, ob. cit., o “juízo político (criminal) consistente na dedução da acusação (ou no arquivamento, ou ainda, no caso mais impressivo de decisão político-criminal, na suspensão provisória do processo) é de todo condicionado pelas operações técnicas de investigação criminal”.
[9] Seguimos aqui muito de perto Faria Costa, As Relações entre o Ministério Público e a Polícia: a experiência portuguesa, in Boletim da Faculdade de direito de Coimbra, n.º 70, 1994, págs. 229 ss..
[10] Vide, in Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, 2003, págs. 132.
[11] Os designados pré-inquéritos que se seguiriam à aquisição da notícia do crime não têm enquadramento jurídico-legal. O acórdão nº 334/94 do Tribunal Constitucional, de 20 de Abril de 1994, BMJ-436-96, ocupou-se da actividade preventiva das polícias, concluindo que não implica violação da Constituição o cometimento à Polícia Judiciária, em sede de combate à corrupção e criminalidade económica e financeira, de acções entendidas como tendo natureza exclusivamente preventiva, já que aquela Polícia, logo que no seu decurso tenha notícia de um crime, é obrigada a fazer a imediata comunicação e denúncia ao Ministério Público.
[12] Comunicação que pode ser feita por qualquer meio para o efeito disponível, devendo, porém, a comunicação oral ser sempre seguida de comunicação escrita.
[13] Concordamos inteiramente com Faria Costa – ob. cit. nota 8 - quando afirma que “pertence ao Ministério Público, em primeira linha – na lógica interna do ordenamento processual português -, o papel de preservação da legalidade e assim, simultaneamente, o de garante dos direitos fundamentais do cidadão”. Embora caiba também à polícia a salvaguarda dos direitos dos cidadãos, não devemos deixar, neste contexto, de sublinhar que a polícia é uma organização que depende do poder executivo, enquanto o Ministério Público é, ao contrário, uma entidade autónoma daquele mesmo poder.
[14] Neste sentido, vide, entre outros, Paulo Dá Mesquita, in Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, 2003, págs. 130 ss.
[15] Aliás, o Anteprojecto para a revisão do Código de Processo Penal prevê expressamente no art. 248.º que os “órgão de polícia criminal que tiverem tido notícia de um crime, (…), transmitem-na ao Ministério Público no mais curto prazo, que não pode exceder os 10 dias” (o sublinhado é nosso).
[16] Caso sejam praticados pelos OPC actos oficiosa e autonomamente, fora do quadro das medidas cautelares e de polícia, tais actos padecem de nulidade insanável, nos termos do artigo 119.º n.º 1 al. b), sendo inadmissível a sua validação ex post – neste sentido, v. Paulo Dá Mesquita, ob. cit. pág 153.
[17] O Código de Processo Penal estabelece a possibilidade de o M.P. poder conferir aos Órgãos de Polícia Criminal o encargo de procederem a quaisquer diligências e investigações relativas ao inquérito com a excepção de um número de actos que, pela sua qualidade, são insusceptíveis de serem conferidos aos O.P.C – cfr. art. 270.º C.P.P..De salientar, neste contexto, que o Anteprojecto do Código de Processo Penal, prevê no n.º 3 do art. 58.º que a “constituição de arguido feita por órgão de polícia criminal é comunicada à autoridade judiciária no prazo de 10 dias e por esta apreciada, em ordem à sua validação, no prazo de 10 dias”.
[18] Tal poder de direcção corresponde, como já foi supra mencionado, à garantia da titularidade do Ministério Público na fase do inquérito.
[19] Ob. cit. nota 7.
[20] Neste sentido, vide Rui do Carmo, A Autonomia do Ministério Público e o Exercício da Acção Penal, in Revista do CEJ, n.º 1, 2.º semestre de 2004, págs. 103 ss.
[21] In Inquérito e instrução p. 106.
[22] A Polícia Judiciária é a principal estrutura com funções de investigação criminal. No entanto, podemos continuar hoje a afirmar que “não existem parcelas de investigação-crime subtraídas da esfera do MP, não podendo qualquer outra entidade, policial ou não, deter “competências exclusivas” para a investigar determinados tipos de criminalidade”- cfr. Henrique Pereira Teotónio, Titularidade do Inquérito e Dependência Funcional das Polícias in “Cadernos da Revista do Ministério Público” nº 4, página 93.
[23] A expressão é de A. Leones Dantas, “Os custos da investigação criminal” in Os Custos da Justiça, Almedina, p. 93
[24] Dependendo dos meios e dos conhecimentos técnicos dos OPC.
[25] Quando falamos do risco de “policialização”do processo penal não devemos descurar a análise histórica, a tradição institucional e o quadro jurídico hoje existente – neste contexto, vide António Francisco Cluny, O relacionamento da Polícia Judiciária com o Ministério Público e o poder judicial em Portugal in Revista do Ministério Público n.º 70, p. 67 ss..
[26] A autonomia técnica e táctica (conceitos utilizados na LOIC) dos OPC não pode pôr em causa o objectivo de qualquer inquérito: a investigação de factos segundo uma perspectiva jurídica sobre os mesmos definidos quando do seu início pelo magistrado do Ministério Público titular, perspectiva essa que pode não coincidir com a perspectiva policial, tendencialmente vocacionada para o “esclarecimento do caso”.
[27] Vide Anabela M. Rodrigues, “A fase preparatória do Processo Penal – Tendências na Europa. O caso Português”, in STVUDIA IVRIDICA, n.º 61, Coimbra Editora, p. 956
[28] Ob cit. nota 26.
I - A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 219.º, estabelece que compete ao Ministério Público representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo principio da legalidade e defender a legalidade democrática.
O Estatuto do Ministério Público reproduz no art. 1.º aquele preceito constitucional e enumera, no art. 3.º, as funções do Ministério Público, entre as quais destacamos o exercício da acção penal (cfr. n.º 1 al. c)), orientado pelo princípio da legalidade. Como complemento desta função, cabe ao Ministério Público, dirigir a investigação criminal, promover e realizar acções de prevenção criminal e fiscalizar a actividade processual dos órgãos de polícia criminal (cfr. n.º 1 alíneas h), i) n)).
No âmbito das suas atribuições cabe ao Ministério Público, em regra, além do mais, receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a dar-lhes, dirigir o inquérito e deduzir ou não, com base nele, acusação em juízo (artigo 53.º, nº 2 alínea a) a c), e 262.º, nº 1, do C.P.P.).
A decisão de deduzir acusação, que pressupõe a formulação de um delicado juízo de valoração dos elementos probatórios previamente carreados na fase do inquérito, constitui a mais importante parcela da actividade processual penal do M.P.
A lei não define o conceito de “inquérito”, mas caracteriza-o em função do seu âmbito e finalidades.
Nos termos do art. 262º, nº 1, do C.P.P., o inquérito compreende as diligências que visam investigar a existência de infracções penais, determinar quem foram os seus autores e a responsabilidade destes e descobrir e recolher as provas respectivas.
Do exposto resulta que, o inquérito é no C.P.P., a fase geral e normal de preparar a decisão de acusação, que se inscreve na titularidade e direcção do M.P..
Mas, o facto da titularidade e direcção do inquérito competir ao M.P. não significa que a investigação criminal seja por ele directa e materialmente realizada, até porque esta actividade exige o domínio de técnicas, o conhecimento de variáveis estratégicas e a disponibilidade de recursos logísticos.
Com efeito, o Ministério Público é assistido, na sua actividade de direcção do inquérito, pelos órgãos de polícia criminal (O.P.C)[1], os quais actuam sob a orientação directa e na dependência funcional[2] daquela autoridade judiciária (cfr. arts. 56.º e 263.º do Código de Processo Penal). Isto significa que os órgãos de polícia criminal devem prestar toda a assistência requerida pelas autoridades judiciárias, sempre que o auxílio se fundamente na sua melhor preparação técnico-científica[3].
De harmonia com o art. 55º, nº 1, do C.P.P., compete em geral, aos órgãos de polícia criminal coadjuvar as autoridades judiciárias com vista à realização das finalidades do processo. E, em especial, mesmo por iniciativa própria colher notícia dos crimes e impedir quanto possível as suas consequências, descobrir os seus agentes e levar a cabo os actos necessários e urgentes destinados a assegurar os meios de prova (art. 55º, nº 2 ,do C.P.P.).
Daqui resulta que, no âmbito do nosso Código do Processo Penal existem ideias mais ou menos precisas quanto a uma clara concepção de um esquema de cooperação entre as autoridades judiciárias e órgãos de polícia criminal.
Os artigos 55.º, 56.º, 263.º e 270.º, do C.P.P. indicam-nos como se processa tal cooperação e relacionamento.
Numa primeira aproximação podemos dizer que, compete aos órgãos de polícia criminal, no exercício da sua competência coadjuvatória, praticar todos aqueles actos que sejam necessários à realização das finalidades processuais penais, ao lado dos órgãos principais, ou seja, as autoridades judiciárias.
No entanto, caso a actuação conjunta destes dois órgãos, não se encontrasse devidamente regulamentada, tal poderia levar a um choque entre o exercício de ambos, razão pela qual se tem reconhecer ao órgão coadjuvado (M.P.) a possibilidade de definir quais as tarefas que o coadjuvator (O.P.C.) potencialmente terá de cumprir, em termos de coadjuvação.
Sendo a coadjuvação a figura que vem regular as funções dos O.P.C., fica ainda por saber qual o nível de relacionamento e articulação entre estes e os respectivos titulares das funções tendentes à realização do processo penal. O par de conceitos “direcção “ e “dependência funcional” visam responder a esta questão.
O conceito de dependência funcional[4] «visa fundamentalmente pôr em relevo o esquema organizatório que preside ao relacionamento entre autoridades judiciárias e órgãos de polícia criminal[5]».
Tal significa que, naquela tarefa coadjuvatória atribuída aos O.P.C., a forma de cooperação referida só existe enquanto os O.P.C. exercem aquelas funções processuais penais e só ao nível das funções, pelo que a dependência não se refere a qualquer aspecto orgânico dos mesmos órgãos.
Se o exercício da actividade dos órgãos de polícia criminal é coadjuvatório e funcionalmente dependente das autoridades judiciárias (M.P.), é necessário que a estas tenham de ser concedidas formas que garantam a sua posição de órgão principal ou titular e ainda que garantam aquela dependência funcional do coadjuvador.
Esta forma de garantia é precisamente o conceito de direcção.
A direcção no sentido utilizado pelo C.P.P.. traduz, por um lado, uma relação de subordinação diferente da hierarquia, e, por outro, é também tradução dos poderes que cabem ao ente superior. Os poderes inerentes a esta figura de direcção são os de emitir directivas[6]-[7] e de controlo.
No âmbito das competências gerais que foram atribuídas ao M.P. para o exercício da função de exercício da acção penal (como atrás foi referenciado) resultam duas específicas competências referidas no art. 53º da alínea b) «dirigir o inquérito» e a alínea c) «deduzir a acusação».
Todo o inquérito (isto é, todo o conjunto de diligências e actos em que ele se decompõe) está dirigido, exactamente, àquela decisão final de dedução ou não de uma acusação.
Assim, o inquérito é um verdadeiro pressuposto da competência de dedução da acusação. Por isso, direcção do inquérito e acusação constituem, a nível funcional, uma inseparável unidade.
Ora, as alíneas b) e c) do art. 53º do C.P.P. não devem ser interpretadas como competências diferentes ou separadas.
Tendo em conta que o inquérito e a decisão final constituem uma unidade, o grau de titularidade das duas «competências» é diverso para o M.P., na medida em que o acto decisório final, de que a actividade de inquérito é pressuposto compete, única e exclusivamente, ao M.P. e, diferentemente, no âmbito da actividade de inquérito, o M.P. tem “apenas” a direcção.
Logo, a acusação, é um acto pessoal e inauxiliável para o M.P.. No inquérito, ao contrário, é possível a intervenção coadjuvatória dos órgãos de polícia criminal[8].
É nesta forma diferencial que se pode encontrar o espaço para a intervenção coadjuvatória dos órgãos de polícia criminal.
II - Tipos de intervenção coadjuvatória:
A referida coadjuvação traduz-se, no essencial, em dos tipos de intervenção[9]:
- a polícia criminal pode, por razões de facto, intervir independentemente de qualquer ordem ou encargo do Ministério Público. Age, assim, por sua iniciativa – trata-se das denominadas “medidas cautelares e de polícia”- sendo certo que esta iniciativa própria é excepcional e temporalmente limitada (cfr. art. 248.º ss C.P.P.).
- os órgãos de polícia criminal podem intervir por força de um encargo do Ministério Público.
Como escreve Paulo Dá Mesquita[10], os actos dos OPC estão em qualquer caso sujeitos à valoração processual do Ministério Público. Todavia, a diferença estrutural entre os actos praticados por iniciativa própria dos órgãos de policia criminal e os actos praticados por encargo do Ministério Público radica na legitimação ope legis dos primeiros, o que permite uma autonomia técnica da polícia na concretização do comando legislativo, ao invés do que sucede quando actua por encargo do Ministério Público, ficando aí vinculada aos termos e âmbito do necessário comando da autoridade judiciária.
Quanto ao primeiro tipo de intervenção, ninguém duvida da importância das medidas cautelares e de polícia no âmbito da investigação criminal. No entanto, a prática pelos órgãos de polícia criminal de medidas cautelares e de polícia não pode ser confundida com uma fase processual, uma vez que o inquérito apenas se inicia com a fase de inquérito[11].
Assim, a aquisição da notícia do crime determina o dever de comunicação no mais curto prazo[12] ao Ministério Público e para este órgão a obrigatoriedade de abertura do processo penal (cfr. arts. 245.º, 248.º, 253.º e 259.º, todos do C.P.P). O cumprimento deste dever de comunicação é muito importante uma vez que só assim poderá o Ministério Público orientar a actividade do O.P.C. ou até determinar a cessação imediata da intervenção policial[13].
Os actos praticados pelos O.P.C. por iniciativa própria no âmbito das medidas cautelares, embora possam vir a integrar o processo, não são, no momento da sua prática, actos processuais em sentido formal. A sua integração no processo depende de um acto decisório da autoridade judiciária que nesse momento assumirá a responsabilidade pelos mesmos.[14]
O art. 2.º n.º 3 da Lei de Organização da Investigação Criminal (Lei n.º 21/2001 de 10 de Agosto) dispõe que a notícia de um crime deve ser transmitida ao Ministério Público “no mais curto prazo, sem prejuízo de, no âmbito do despacho de natureza genérica, previsto no n.º 4 do art. 270.º do Código de Processo Penal, (os OPC) deverem iniciar de imediato a investigação”. Esta norma, como à primeira vista pode parecer, não tem carácter inovador, isto é, não afasta a obrigação de comunicação da notitia criminis ao Ministério Público em todos os casos (vide Directiva n.º 1/2002, da PGR, publicada no DR, II série, de 4 de Abril de 2002).[15]
Assim, os órgãos de polícia criminal, fora do quadro das medidas cautelares e de polícia, carecem de competência para intervir por iniciativa própria, estando proibida toda a actividade policial de investigação que se segue à notícia do crime mas não foi precedida de comunicação ao Ministério Público, ainda exista um despacho de natureza genérica, nos termos do art. 270.º n.º 4 CPP[16].
Relativamente à actividade processual dos órgãos de polícia criminal por via de encargo do Ministério Público[17] podemos afirmar que, na fase de inquérito, os OPC actuam sob a directa orientação do Ministério Público[18]. O que, na opinião de Faria Costa[19], significa duas coisas: por um lado, um poder de directo contacto com os agentes encarregues da investigação criminal e, por outro lado, um poder contínuo e permanente de emitir directivas que dirijam a actividade investigatória.
Com efeito, a direcção do inquérito implica que o Ministério Público acompanhe e oriente a investigação e que os OPC cumpram o seu dever de informação, pelo que será importante manter, entre os agentes policiais e o magistrado titular do inquérito, uma relação informal e desburocratizada[20].
O modelo de dependência funcional adoptado pelo legislador português opõe-se, quer ao modelo de dependência total, quer ao modelo de autonomia e pressupõe que o exercício do poder de orientação do Ministério Público tem de respeitar a estrutura administrativa e orgânica das entidades policiais. Segundo Souto Moura[21], “estrutura orgânica, a acção disciplinar, ou o funcionamento administrativo das policias, são campos estranhos à actuação do M. P. Este superintende no processo e só no processo. (…) Se conflito houver, só as hierarquias de ambos os lados, desbloquearão em última instância a situação, avaliando se a questão é orgânica ou funcional, e encontrando os mecanismos adequados de cooperação. Aliás, o interrelacionamento M.P. / polícias passará também pelo princípio da indivisibilidade do M. P., obviando-se através de circulares e orientações internas, à disparidade de actuações. A dependência funcional dos polícias (…) é apenas uma outra forma de abordar a "assistência", que segundo o Código deve ser prestada às autoridades judiciárias. As polícias "assistem" às autoridades judiciárias realizando as diligências de prova ou entabulando as investigações, que mais genericamente lhes forem solicitadas. Deverão seguir as orientações de procedimento processual dadas, certo que ficarão em princípio à margem daquelas directivas, as questões de pura táctica ou estratégia policial, não contendentes com a lei. A dependência funcional implica obviamente a apreciação dos resultados obtidos e requisição, ou não, de novas diligências. Implica finalmente a possibilidade de a todo o momento se fiscalizar o trabalho especificamente processual que tenha sido atribuído” (os sublinhados são nossos).
Este modo de relacionamento dos órgãos de polícia criminal com as autoridades judiciárias foi reafirmado através da Lei de Organização da Investigação Criminal (LOIC), a qual procurou ainda determinar os parâmetros de competência de substância e adjectiva quanto à investigação criminal.
O legislador entendeu que a eficácia do combate à criminalidade exigia uma racionalização dos meios e a clarificação das funções atribuídas aos diferentes órgãos de polícia criminal. A LOIC define, em razão do tipo de crime, a competência reservada/específica da Policia Judiciária[22] (art. 4.º) e prevê mecanismos de competência deferida em razão da especificidade de uma dada investigação em concreto (art. 5.º).
III – Em jeito de apreciação final, podemos dizer que o Código de Processo Penal atribui à magistratura do Ministério Público a competência para a direcção do inquérito, que envolve igualmente competências de investigação criminal e, sobretudo, “um papel estruturante da intervenção policial”[23].
No entanto, verifica-se que o Ministério Público não tem meios materiais e humanos, nem estruturas de apoio que lhe permitam assumir cabalmente a sua posição de dominus do inquérito[24] e, consequentemente, cumprir a sua atribuição constitucional de exercício da acção penal.
Se se pretende evitar a designada “policialização[25]” do processo penal, o Ministério Público não pode ser um mero gestor de papéis[26], pelo contrário, deve ser dotado de condições que lhe permitam intervir/acompanhar o trabalho das forças policiais, só assim podendo ser responsabilizado pelos resultados obtidos.
Os órgãos de polícia criminal ou as autoridades de polícia criminal (cfr. art. 1.º n.º 1 al. d) do C.P.P.) não podem substituir o papel das autoridades judiciárias, sob pena se colocar em causa o sentido do “princípio da investigação sob garantia judicial”[27].
A solução poderá ainda passar por uma melhoria ao nível da informação sobre a intervenção na investigação criminal, onde a consciencialização da especificidade das tarefas de cada um é fundamental.
Todavia, a investigação criminal, como ciência auxiliar do direito penal, não tem sido alvo de estudo e divulgação adequadas. Este facto dificulta uma definição clara das “fronteiras” da intervenção dos vários órgãos e autoridades, com reflexos na sua eficácia de actuação.
Nas palavras de Anabela Rodrigues[28], “a trindade ministério público, juiz e órgãos de polícia criminal, devia repartir entre os seus membros as responsabilidades da investigação e da decisão sobre o caso, com competências diferenciadas e delineadas com rigor”.
Finalmente, entendemos que é necessário, antes de mais, fomentar uma “cultura de proximidade” entre os agentes do sistema de justiça. Não podemos descurar a importância do estabelecimento de relações interpessoais e interprofissionais fortes. Só desta forma se poderá promover o relacionamento são entre magistrados e polícias, imprescindível na tarefa (que é de todos) de servir o interesse público.
1 Os órgãos de polícia criminal são entidades e agentes policiais coadjuvantes da autoridade judiciária. Além dessa função de coadjuvação, competem-lhes tarefas especialmente prescritas no CPP – cfr. art. 1.º al. c) do CPP. São órgãos de polícia criminal, de competência genérica – v. art. 3.º Lei n.º 21/2000, de 10.08:
PJ (DL 275-A/2000, de 9/11, sucessivamente alterado pela Lei 103/2001, de 25/08, pelo DL n.º 323/2001, de 17/02, pelo DL 304/2002, de 13/12 e pelo DL n.º 43/2003, de 13/03)
GNR (DL 231/93, de 26/06, alterado pelo DL 15/2002, de 29/01)
PSP (Lei 5/99, de 27/08, alterado pelo DL 137/2002, de 16/05)
Enquadrados pela Lei 21/2000, de 10/08, que organiza a investigação criminal, define as competências dos órgãos de polícia criminal e cria, a nível nacional, um conselho coordenador desses órgãos.
São órgãos de polícia criminal, de competência específica, “aqueles a quem a lei conferir esse estatuto” – cfr. art 3.º da Lei/2000, de 10.08, como por exemplo, o SEF (DL n.º 252/2000, de 16/10).
[2] O C.P.P. optou por um sistema intermédio de dependência funcional mitigada, isto é, a polícia criminal tem uma independência organizatória, administrativa e disciplinar e uma dependência funcional relativamente às autoridades judiciárias.
[3] É esta melhor preparação técnico-científica dos OPC que justifica a autonomia (técnica) na concretização dos comandos das autoridades judiciárias.
[4] A dependência funcional conduz a um tríplice grau de disponibilidade: grau mais ténue – verifica-se na audiência de julgamento, na qual a polícia criminal deve prestar toda a colaboração que seja julgada necessária, nomeadamente para a comprovação judicial, podendo ser ordenada a prática de actos concretos; grau intermédio – traduz-se na disponibilidade funcional para actos que pertencem o juiz de instrução, em matéria de instrução; grau máximo – decorre em relação o Ministério Público no decurso da fase de inquérito e implica a prática pela polícia criminal de todos os actos de inquérito, com excepção dos jurisdicionais e os da exclusiva competência do Ministério Público.
[5] Cfr. José Damião da Cunha, in O Ministério Público e os Órgãos de Polícia Criminal no Novo Código de Processo Penal - pág. 114.
[6] As directivas são “orientações genéricas, que definem imperativamente os objectivos a cumprir pelos seus destinatários, mas que lhes deixam liberdade de decisão quanto aos meios a utilizar e às formas a adoptar para atingir esses objectivos - cfr. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. I, 1986, pág. 711.
[7] Ao Ministério Público cabem os seguintes poderes: emitir directivas, ordens e instruções; acompanhar e fiscalizar os diversos actos; delegar ou solicitar a realização de diligências; presidir ou assistir a certos actos ou autorizar a sua realização; avocar, a todo o tempo, o inquérito – cfr. Circular n.º 08/87 da PGR.
[8] No entanto, como refere Damião da Cunha, ob. cit., o “juízo político (criminal) consistente na dedução da acusação (ou no arquivamento, ou ainda, no caso mais impressivo de decisão político-criminal, na suspensão provisória do processo) é de todo condicionado pelas operações técnicas de investigação criminal”.
[9] Seguimos aqui muito de perto Faria Costa, As Relações entre o Ministério Público e a Polícia: a experiência portuguesa, in Boletim da Faculdade de direito de Coimbra, n.º 70, 1994, págs. 229 ss..
[10] Vide, in Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, 2003, págs. 132.
[11] Os designados pré-inquéritos que se seguiriam à aquisição da notícia do crime não têm enquadramento jurídico-legal. O acórdão nº 334/94 do Tribunal Constitucional, de 20 de Abril de 1994, BMJ-436-96, ocupou-se da actividade preventiva das polícias, concluindo que não implica violação da Constituição o cometimento à Polícia Judiciária, em sede de combate à corrupção e criminalidade económica e financeira, de acções entendidas como tendo natureza exclusivamente preventiva, já que aquela Polícia, logo que no seu decurso tenha notícia de um crime, é obrigada a fazer a imediata comunicação e denúncia ao Ministério Público.
[12] Comunicação que pode ser feita por qualquer meio para o efeito disponível, devendo, porém, a comunicação oral ser sempre seguida de comunicação escrita.
[13] Concordamos inteiramente com Faria Costa – ob. cit. nota 8 - quando afirma que “pertence ao Ministério Público, em primeira linha – na lógica interna do ordenamento processual português -, o papel de preservação da legalidade e assim, simultaneamente, o de garante dos direitos fundamentais do cidadão”. Embora caiba também à polícia a salvaguarda dos direitos dos cidadãos, não devemos deixar, neste contexto, de sublinhar que a polícia é uma organização que depende do poder executivo, enquanto o Ministério Público é, ao contrário, uma entidade autónoma daquele mesmo poder.
[14] Neste sentido, vide, entre outros, Paulo Dá Mesquita, in Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, 2003, págs. 130 ss.
[15] Aliás, o Anteprojecto para a revisão do Código de Processo Penal prevê expressamente no art. 248.º que os “órgão de polícia criminal que tiverem tido notícia de um crime, (…), transmitem-na ao Ministério Público no mais curto prazo, que não pode exceder os 10 dias” (o sublinhado é nosso).
[16] Caso sejam praticados pelos OPC actos oficiosa e autonomamente, fora do quadro das medidas cautelares e de polícia, tais actos padecem de nulidade insanável, nos termos do artigo 119.º n.º 1 al. b), sendo inadmissível a sua validação ex post – neste sentido, v. Paulo Dá Mesquita, ob. cit. pág 153.
[17] O Código de Processo Penal estabelece a possibilidade de o M.P. poder conferir aos Órgãos de Polícia Criminal o encargo de procederem a quaisquer diligências e investigações relativas ao inquérito com a excepção de um número de actos que, pela sua qualidade, são insusceptíveis de serem conferidos aos O.P.C – cfr. art. 270.º C.P.P..De salientar, neste contexto, que o Anteprojecto do Código de Processo Penal, prevê no n.º 3 do art. 58.º que a “constituição de arguido feita por órgão de polícia criminal é comunicada à autoridade judiciária no prazo de 10 dias e por esta apreciada, em ordem à sua validação, no prazo de 10 dias”.
[18] Tal poder de direcção corresponde, como já foi supra mencionado, à garantia da titularidade do Ministério Público na fase do inquérito.
[19] Ob. cit. nota 7.
[20] Neste sentido, vide Rui do Carmo, A Autonomia do Ministério Público e o Exercício da Acção Penal, in Revista do CEJ, n.º 1, 2.º semestre de 2004, págs. 103 ss.
[21] In Inquérito e instrução p. 106.
[22] A Polícia Judiciária é a principal estrutura com funções de investigação criminal. No entanto, podemos continuar hoje a afirmar que “não existem parcelas de investigação-crime subtraídas da esfera do MP, não podendo qualquer outra entidade, policial ou não, deter “competências exclusivas” para a investigar determinados tipos de criminalidade”- cfr. Henrique Pereira Teotónio, Titularidade do Inquérito e Dependência Funcional das Polícias in “Cadernos da Revista do Ministério Público” nº 4, página 93.
[23] A expressão é de A. Leones Dantas, “Os custos da investigação criminal” in Os Custos da Justiça, Almedina, p. 93
[24] Dependendo dos meios e dos conhecimentos técnicos dos OPC.
[25] Quando falamos do risco de “policialização”do processo penal não devemos descurar a análise histórica, a tradição institucional e o quadro jurídico hoje existente – neste contexto, vide António Francisco Cluny, O relacionamento da Polícia Judiciária com o Ministério Público e o poder judicial em Portugal in Revista do Ministério Público n.º 70, p. 67 ss..
[26] A autonomia técnica e táctica (conceitos utilizados na LOIC) dos OPC não pode pôr em causa o objectivo de qualquer inquérito: a investigação de factos segundo uma perspectiva jurídica sobre os mesmos definidos quando do seu início pelo magistrado do Ministério Público titular, perspectiva essa que pode não coincidir com a perspectiva policial, tendencialmente vocacionada para o “esclarecimento do caso”.
[27] Vide Anabela M. Rodrigues, “A fase preparatória do Processo Penal – Tendências na Europa. O caso Português”, in STVUDIA IVRIDICA, n.º 61, Coimbra Editora, p. 956
[28] Ob cit. nota 26.
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