sábado, dezembro 08, 2007

Palavras de Abertura

(texto para a Acção de Formação sobre Criminalidade Económico-Fianceira e Criminalidade Fiscal – 6 de Dezembro de 2007)
(Manuel José Aguiar Pereira, Juiz Desembargador, Director-Adjunto do CEJ)



Em nome do Centro de Estudos Judiciários, começo por apresentar a todos os presentes cumprimentos de boas vindas e desejar que possam retirar desta acção de formação proveito para a vossa actividade nos Tribunais.

Na verdade ela insere-se no âmbito da Formação Permanente de magistrados e profissionais do foro legalmente cometida ao Centro de Estudos Judiciários e a escolha do tema e a oportunidade da sua realização não poderiam ser mais felizes.
Em breves palavras procurarei explicar porquê.

No primeiro painel irão ser abordadas algumas das questões que a, aqui chamada, criminalidade moderna, coloca ao nível da investigação e julgamento.
Todos sabemos que os conceitos de tempo e de espaço de realização da Justiça e os princípios estruturais do combate ao crime estão em vertiginosa mudança.
Alguma criminalidade, cujas consequências são especialmente graves, desenvolve-se numa escala planetária potenciada pelas novas e cada vez mais sofisticadas tecnologias de informação e comunicação.
Acompanhando a evolução os sistemas de administração da justiça penal haverão que assumir as mudanças e equacionar os novos modelos de combate a essa criminalidade capazes de conciliar, com recurso a novas tecnologias e a todo um conjunto de adequados instrumentos jurídicos, a máxima eficácia com o integral respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos.

O combate à criminalidade implica uma utilização racional de meios disponíveis e uma resposta diferenciada em função do tipo de criminalidade (porventura mais flexível em relação à criminalidade de menor gravidade) sempre inserida num quadro rigoroso e sedimentado quanto ao modo de intervenção das várias instâncias formais de controlo e ao tipo de reacções penais.
Acentuam-se, quanto à criminalidade caracterizada por maior danosidade social ou violência, razões de prevenção geral e de segurança colectiva e de efectiva tutela dos bens jurídicos socialmente mais relevantes de uma comunidade nem sempre tolerante para com a ineficácia das entidades encarregues da investigação ou sequer sensível à existência de razões de natureza formal que conduzam à não punição dos comprovados autores dos crimes.
Mas mesmo quanto a ela devem ser também diferenciadas as respostas dos sistemas de justiça penal consoante se trate de condutas ocasionais, onde a dificuldade de identificação dos agentes e a reconstituição dos factos pode não assumir especial dificuldade e não justificar desvios, ao menos significativos, às regras gerais, ou se trate de condutas inseridas no âmbito da criminalidade organizada que no cometimento dos factos coloca novos e cada vez mais sofisticados meios técnicos e financeiros que lhe aumentam a eficácia e a perigosidade na exacta medida em que dificultam a sua investigação e efectiva punição.

O que, em todo o caso, importa realçar é que a resposta aos desafios que a criminalidade, em especial a criminalidade organizada, coloca aos sistemas de justiça penal, gera uma natural tensão dialéctica entre valores essenciais ao funcionamento da sociedade, demanda uma busca permanente de novos equilíbrios entre a tutela de direitos fundamentais dos cidadãos, garantidos pela generalidade das constituições nacionais e consagrados nas cartas de direitos internacionais e o direito inalienável das sociedades organizadas a sancionar a violação das suas leis, fundamento e a razão de ser do direito penal.
Para se obter esse desejável equilíbrio parece urgente, repensar a questão penal - a resposta dos sistemas de justiça penal – em face da evolução da questão criminal, da natureza da criminalidade organizada actual num contexto de ausência de barreiras e de expansão global das actividades e reequacionar a eficácia das técnicas da tutela e as garantias conferidas pela consagração dos direitos fundamentais.
Tudo se resume a saber até onde é possível restringir as liberdades e os direitos fundamentais de cada cidadão em nome da segurança colectiva.

O combate ao crime organizado já hoje se faz em várias frentes, se necessário fosse salientaria aqui, a título meramente exemplificativo e no âmbito processual, a alteração excepcional de regras de recolha, valoração e produção de prova no âmbito da investigação (agentes infiltrados, levantamento de segredos e protecção de testemunhas, etc.) e o estabelecimento de presunções cuja finalidade última é a de conseguir frustrar a obtenção de avultados lucros pelos agentes do crime.
Mas, urge perguntar: o que pode, de facto, significar a adopção de algumas destas medidas?
Diga-se claramente: a alteração de algumas regras básicas estruturantes da justiça criminal, sobretudo ao nível da recolha e obtenção de prova está a fazer com que o processo penal português, como aliás o de outros países, se afaste – e nalguns casos perigosamente – do modelo de “processo legal justo” para se aproximar do modelo já chamado de “modelo de controlo do crime” de justiça criminal.
Este último visa essencialmente obter a máxima eficácia no combate à criminalidade, caracteriza-se pela maior importância atribuída à investigação criminal e à prova produzida nessa fase e pela maior liberdade concedida às polícias e ao Ministério Público, dando mais relevo à comunidade e às vítimas do que ao indivíduo arguido.
Saber se esse é ou não um preço razoável no nosso ordenamento jurídico-constitucional, isto é, se entre a segurança colectiva e a punição da criminalidade e o respeito pelos direitos fundamentais deve sempre prevalecer a primeira eis a questão que deve começar a colocar-se.

Os novos desafios, é certo, demandam novas e arrojadas soluções.
Mas estas em caso algum poderão, a meu ver, exceder os limites impostos pelo criterioso respeito dos direitos fundamentais dos cidadãos: O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem afirmado que as razões da eficiência na perseguição à actividade criminosa não podem sacrificar as razões da Justiça; O Tribunal Constitucional Federal Alemão também já expressou o seu entendimento de que os interesses superiores da comunidade não podem justificar uma agressão á área nuclear da conformação privada da vida, que goza de protecção absoluta.
Não se trata de questionar os interesses inerentes à repressão da criminalidade, à segurança colectiva, quando estejam em causa direitos fundamentais dos cidadãos.
Diremos, com a Professora Dr.ª Anabela Miranda Rodrigues, que a solução está em não permitir que os direitos que o cidadão arguido pode usar para sua protecção sejam instrumentalizados de forma a paralisar a própria acção da justiça.
Do que se trata, afinal, é de ponderar e de decidir fundadamente, em cada caso, qual dos interesses contrapostos deve ceder para que o outro obtenha a sua máxima realização.
A busca da justa medida do sacrifício dos direitos fundamentais parece passar pela definição de novos equilíbrios que tenham como meta a salvaguarda de um núcleo essencial de direitos de defesa do arguido harmonizando o seu conteúdo e alcance com a eficácia que se pede ao sistema de administração da justiça penal, de acordo com o princípio da concordância prática.
Porque afinal ao direito penal e processual penal não cabe só proteger as vítimas e os seus direitos enquanto parte mais fraca no momento da consumação do crime: em obediência ao mesmo princípio também lhes cabe proteger o acusado e os seus direitos no decurso do processo e salvaguardar os direitos do condenado no momento de aplicação e execução da pena.
Por isso, a ponderação dos interesses contrapostos do arguido e da vítima ou dos interesses antagónicos do arguido e da sociedade, que na sua essência, constitui um problema de aplicação prática do direito, será sempre tarefa inerente à actividade judicial, ou seja, é uma missão que nos cabe a nós desempenhar.
Daí a sua inclusão nos temas colocados à vossa reflexão.

No segundo painel desta acção de formação permanente o tema de reflexão é o crime de corrupção e a dificuldade da sua investigação e julgamento.

O médico e escritor austríaco Arthur Schnitzler escreveu numa das suas obras “Relações e Solidão” que “a faculdade de se deixar corromper no sentido mais amplo do termo é uma particularidade da espécie humana em geral; mais ainda, as relações entre os homens só são possíveis porque somos todos corruptíveis em maior ou menor grau”.
Adiantou, porém, que “é apenas quando utilizamos conscientemente a corruptibilidade dos outros para nossa vantagem pessoal ou em detrimento de um terceiro, que ela é um mal, mas a falta é então mais nossa do que daquele cuja corruptibilidade nos beneficia.”
Esta ideia, muitas vezes difundida, de que a corruptibilidade é uma característica do ser humano e que o fenómeno da corrupção é sobretudo uma questão cultural, banal e inevitável, não corresponde inteiramente à realidade. E no entanto esta é uma das ideias que mais tem contribuído para a tolerância do fenómeno e para a ineficácia do combate à corrupção.
Se existem – e existem – diferenças culturais na forma como a corrupção é realizada por esse mundo fora, na génese do fenómeno da corrupção intervêm factores políticos, factores ligados ao funcionamento do sistema de administração da Justiça, factores históricos, sociais e culturais e factores económicos.
A corrupção é, na verdade, uma realidade complexa e tentacular, que não está apenas presente no sector público, que não se restringe a um país ou região e que tem custos sociais e económicos quase incalculáveis.
Segundo alguns autores a corrupção resultaria, em regra, de situações de monopólio e seria potenciada pelo poder arbitrário ou pela discricionariedade da decisão e diminuída pela transparência ou pela obrigação de prestar contas.
Ou seja, a corrupção encontraria terreno fértil no exercício de um poder que não é posto em causa por nenhum tipo de concorrência (a inexistência de alternativas facilita o aparecimento de situações de corrupção e a concentração de poderes potencia-as) e o seu crescimento favorecido pela ausência de vinculação e/ou de fundamentação das decisões.
È fora de dúvida que a existência de qualquer forma de controlo eficaz das decisões, seja de ordem política pelos cidadãos eleitores, seja de ordem técnica através de auditorias, seja pelos sistemas de administração da justiça ou mesmo através dos meios de comunicação social, tende a fazer diminuir os fenómeno de corrupção.
Mas na prática nem tudo é, porém, assim tão simples, desde logo porque os agentes da corrupção possuem uma notável capacidade de adaptação e de invenção de formas de contornar as regras estabelecidas e são variadas as motivações para a prática dos actos ilícitos que a integram.
Tudo isto é tanto mais preocupante quanto é certo que são de tomo as dificuldades reconhecidas na luta contra a corrupção.
Estamos em presença de um crime sem vítima imediata – vítimas somos todos nós – o que torna o conhecimento do crime aleatório, senão mesmo impossível, face ao conluio (pacto de silêncio) entre corruptor e corrompido e ao refinamento da cumplicidade através da divulgação pública de casos semelhantes, sendo certo que nem um nem outro têm qualquer interesse na punição dos factos.
Depois porque os poucos recursos legais e materiais de que a administração da Justiça dispõe nem sempre são os mais adequados a um combate tão desigual.
Finalmente porque nem sempre a vontade política dos governantes, porventura presos aos seus próprios compromissos, se manifesta de forma inequívoca no sentido de lhe pôr cobro.

Em Portugal, dizem alguns analistas e reafirmam algumas instâncias internacionais, não há nem nunca houve nos trinta e três anos que leva o regime democrático, uma verdadeira política global anti-corrupção, envolvendo, como é necessário que envolva, a dinamização da sociedade para nela participar e a promoção da ética dos serviços públicos.
“Tudo se passa como se a corrupção pudesse ser combatida como uma sucessão de casos de polícia avulsos”, como lapidarmente disse o deputado Dr. João Cravinho.
O que vem de ser dito poderá justificar a decepção mais ou menos generalizada perante os resultados obtidos no combate à corrupção.
Mas sobretudo deve alertar para a necessidade de adopção de novas abordagens na luta contra a corrupção.
E esse é um dos objectivos desta acção de formação.

Várias tem sido as entidades internacionais que se têm vindo a preocupar com o fenómeno da corrupção e vários são os instrumentos internacionais firmados por Portugal.
Lembro aqui, pela proximidade das datas em relação ao dia de hoje, duas ocorrências.
1. No âmbito da luta contra a corrupção a Assembleia Geral das Nações Unidas instituiu, em 2003, o dia 9 de Dezembro como Dia Internacional Contra a Corrupção, data que, aparentemente, não terá entre nós qualquer significado útil.
Através do seu escritório contra a Droga e o Crime (UNODC) as Nações Unidas têm vindo a desempenhar um papel notável e a salientar desde há vários anos que nalguns países a corrupção consome cerca de 30% do PIB, que facilita o terrorismo e possibilita muitas formas de crime organizado, incluindo o tráfico de seres humanos e que os custos anuais da corrupção no mundo inteiro rondam cerca de um trilião de dólares.
Estima-se que nalguns países e nalguns sectores os custos de funcionamento de determinados sectores públicos poderão atingir metade do seu valor global. Ou seja, pondo-lhe fim obter-se-iam os mesmos bens, por metade do custo actual!
Ante o que fica dito facilmente se compreende que algumas convenções internacionais mais recentes visem não só a punição criminal da corrupção mas se ocupem também – e a par da prevenção – com a recuperação dos capitais perdidos, forma privilegiada do seu efectivo sancionamento.

2. A segunda ocorrência que pretendo recordar-vos está relacionada com a actividade do GRECO.
Como sabem, em 1999 entrou em vigor o acordo alargado que criou o GRECO (Grupo de Estados contra a Corrupção) no seio do Conselho da Europa.
O GRECO tem por objectivo melhorar a capacidade dos Estados membros na luta contra a corrupção analisando as medidas que cada um deles tomou nesse domínio, contribuindo também para identificar as lacunas das leis nacionais no combate à corrupção e despoletar as reformas legislativas, institucionais e práticas que se mostrarem necessárias a prevenir a corrupção e a combatê-la.
Portugal foi objecto de duas avaliações pelo GRECO.
No âmbito da segunda ronda de avaliação aos países membros, o GRECO tornou público em Maio de 2006 o relatório relativo a Portugal.
Este segundo relatório contém dez recomendações e seis observações negativas que deveriam ser satisfeitas até ao passado dia 30 de Novembro de 2007.
Em síntese o GRECO considerou que:
• Deve ser feito um uso mais sistemático de investigações sobre as falências das empresas e todos os recursos devem ser usados no sentido de tornar as investigações financeiras mais efectivas; Além disso que deve ser criado um organismo especificamente encarregado do registo das falências decretadas.
• Devem ser revistas as medidas de identificação, de apreensão e confisco relacionadas com a corrupção e o comércio, elaborados guias e prestada formação adicional com vista à sua aplicação;
• Devem ser transmitidas às instituições e aos profissionais que possam estar envolvidos em transacções comerciais susceptíveis de encobrir operações de branqueamento de capitais, instruções sobre a declaração de operações suspeitas e ministrado treino sobre a identificação e comunicação de actos de corrupção;
• Devem ser efectuadas análises regulares do risco de corrupção e adoptadas medidas de prevenção no sector público, incluindo as autarquias locais, bem como ser adoptada uma abordagem mais integrada aos aspectos éticos da sua actividade;
• Devem ser adoptadas regras, aplicáveis a todos os funcionários públicos, sobre conflitos de interesses e sobre a migração de funcionários públicos para o sector privado e previstos mecanismos de controlo da sua aplicação;
• Devem ser aperfeiçoados os códigos de conduta existentes de forma a conter referência explícita às questões éticas e aos riscos de corrupção a todos os funcionários públicos e prescritas sanções para o seu não cumprimento. Deve ser dada formação específica nesta matéria.
• Devem ser estabelecidas regras precisas sobre recrutamento, incluindo ao nível das autarquias locais, e garantido o seu cumprimento.
• Deve ser estabelecido o princípio da rotatividade dos funcionários públicos, pelo menos em sectores administrativos que sejam julgados mais vulneráveis à corrupção.
• Deve ser dada protecção adequada aos denunciantes de casos de corrupção e revisto o tratamento dado às queixas apresentadas para que sejam seguidos os procedimentos adequados tão rapidamente quanto possível.
• Devem ser tornadas públicas de forma mais efectiva as penas de desqualificação profissional (demissão e proibição de exercício de actividade) aplicadas pelos tribunais; deve ser previsto um controlo mais apertado das sociedades – durante a sua constituição e depois do seu registo – e dos seus gerentes, em particular no que se refere à existência de antecedentes judiciais e revisto o registo comercial.
• Deve ser introduzido um sistema eficaz de responsabilidade das pessoas colectivas implicadas em actos de corrupção, tráfico de influências ou branqueamento de capitais, alargado o âmbito da sua responsabilidade penal e previstas sanções efectivas e dissuasoras em conformidade com a Convenção Penal sobre a Corrupção do Conselho da Europa, ministrada formação adequada e criado um sistema de registo criminal de pessoas colectivas a quem tenha sido aplicadas penas pela prática de crimes.
• Deve ser ministrado treino específico aos funcionários da administração tributária sobre a detecção e investigação de crimes de corrupção.

Relendo o elenco das recomendações do GRECO consolida-se a convicção de que poucas terão merecido a atenção dos responsáveis, havendo mesmo casos em que parecem ter sido adoptadas regras que contrariam os objectivos da prevenção e combate à corrupção.

E, no entanto, um dos factores mais importantes nesta luta contra a corrupção é, na verdade, a vontade política de melhorar o combate a este tipo de criminalidade, aliada, em todo o caso, a idêntica vontade dos cidadãos, isto é a uma consciência social mais aguda sobre o fenómeno da corrupção.
Mas o sucesso no combate à corrupção passará, sempre, pelo sancionamento efectivo da corrupção e dependerá também, por isso, do grau de conhecimento que os magistrados tenham sobre a complexa realidade que lhe está subjacente, o que, pelo menos ao nível dos Tribunais de primeira instância, só a formação e práticas especializadas permitem.

O propósito desta acção é contribuir para esse fim.

Esperando ter conseguido justificar a discussão dos temas propostos e a sua inclusão no âmbito das preocupações do Centro de Estudos Judiciários enquanto responsável pela formação permanente de magistrados e outros profissionais do foro, resta-me desejar-vos um
BOM TRABALHO