quarta-feira, agosto 16, 2006

Crime de Burla e Emissão de Cheques sem Provisão

(texto da autoria de Francisco Pereira Pinto, datado de Fevereiro de 2006 - este texto não foi revisto pelo autor)


"O maior prazer de um homem inteligente é fazer de idiota diante de um idiota que faz de inteligente”

São, assim, elementos do crime de burla:
Burla – art.º 217 CP
Elementos típicos deste crime: a-) erro ou engano sobre os factos astuciosamente provocados
b-) para determinar a outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial
c-) intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo. ( Requisitos do conceito civilístico de enriquecimento sem causa: o enriquecimento de alguém; o consequente empobrecimento de outrém; o nexo causal entre ambos acontecimentos; a falta de causa justificativa do enriquecimento. (Acs. do STJ de 2745/01-5 e de 18.1.91, Acs. STJ IX, 1, 218, e Ac. 2362/01-5).
O crime de burla apresenta-se pois como a actuação de alguém que pretendendo obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente se tenham provocado, determina outrem à prática de actos que lhe causem ou causem a outra pessoa prejuízo patrimonial.
A burla é uma forma evoluída de captação do alheio servindo-se do erro e do engano para obter os mesmos resultados que outros conseguem com recurso a meios violentos ou a artifícios de rapina. O ataque ao património não se realiza através de meios materiais (apreensão da coisa violência ou intimidação, ocupação) mas através de meios intelectuais.
“O crime de burla apresenta-se como a forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar (Ac. de 19-12-1991, BMJ 412-234).”
«Com os seus variadíssimos processos, a fraude é bem o atestado do poder de inventiva e perspicácia do homo sapiens. Tem espécies e subespécies, padrões clássicos e expedientes de acaso. Há a fraude reconhecível a olho nu como infracção penal e a parva calliditas, que se abriga à sombra de uma proclamada naturalis licentia decipiendi. Há a fraude corriqueira dos clientes habituais da prisão e a fraude subtil daquela gente que sabe tangenciar a lei penal e constitui a legião dos "criminosos astutos e afortunados" de que nos conta FERRIANI» (Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal, VII, pág. 168).
Trata-se fundamentalmente do uso do engano, do abuso da confiança ou de procedimentos semelhantes que impliquem a elaboração de determinada maquinação do sujeito activo contra o património de outro (vd. Juan Bustos Ramírez - Manual de Derecho Penal, p. 189).
Os elementos que preenchem e informam a tipicidade do crime de burla são o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocados para determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial, com intenção de obter para o agente ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo (Ac. de 11-10-2001, proc. n.º 1295/01-5, Acs STJ IX, 3, 192).

O bem jurídico protegido pela norma incriminadora é o património na perspectiva de proteger a situação de disposição que o sujeito tem sobre uma coisa.
São elementos constitutivos deste crime o uso de erro ou engano sobre factos, astuciosamente provocado; a determinação de outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial e a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.

“DUPLO DOLO”
ERRO ou ENGANO?
Vejamos: o erro ou o engano.
Na 1.ª Comissão Revisora do C. Penal referiu «ao lado do erro coloca-se o engano. Mas também não basta qualquer erro; é necessário que ele tenha sido provocado ou aproveitado astuciosamente» (BMJ 287-41)
«A mera mentira verbal pode, pois, dada a redacção deste artigo, ser meio do induzimento em erro ou do engano, excepto se a mentira for tal que a mais elementar prudência aconselha a que não seja acreditada (salvo se se provar que a vítima, por completa ignorância, ou outro motivo relevante do agente - uma deficiência passageira do raciocínio ou da atenção, resultante, por exemplo, de abalo moral recente - não estava em condições de se precaver)» (Simas Santos e Leal-Henriques, C. Penal Anotado, II, págs 837-89)
No Comentário Conimbricense (A. Almeida Costa, II, 301) referem-se a propósito deste elemento três modalidades: «quando o agente provoca o erro de outrem, descrevendo-lhe, por palavras ou declarações expressas (sob a forma oral ou escrita), uma falsa representação da realidade. A segunda observa-se na hipótese de o erro ser ocasionado, não expressis verbis, mas através de actos concludentes, i.e., de condutas que não consubstanciam, em si mesmas, qualquer declaração, mas, a um critério objectivo - a saber, de acordo com as regras da experiência e os parâmetros ético-sociais vigentes no sector da actividade -, mostram-se adequados a criar uma falsa convicção sobre certo facto passado, presente ou futuro. Em terceiro lugar, refere-se a burla por omissão: ao contrário do que sucede nas situações anteriores, o agente não provoca, agora, o engano do sujeito passivo, limitando-se a aproveitar o estado de erro em que ele já se encontra»
Também sobre este elemento se tem pronunciado de forma pacífica este Supremo Tribunal de Justiça em diversos arestos, cuja doutrina se mantém inteiramente válida.
Ao lado do erro como meio de execução da burla coloca-se também o engano. É necessário que o erro ou engano tenham sido provocados astuciosamente pelo agente da infracção; isto é, usando de um meio engenhoso para se enganar ou induzir em erro. Trata-se de uma exigência que acresce a um dolo que já de per si é específico, pois que se exige a intenção de enriquecimento ilegítimo (Ac. do STJ de 02-07-1992, proc. n.º 42779).
(1) O burlado nas hipóteses de erro, como de engano, só age contra o seu património ou de terceiros por que tem um falso conhecimento da realidade. simplesmente esse seu falso convencimento nasce, no caso do mero engano, da mentira que lhe é dada a conhecer pelo burlão.
(2) A vítima, ao ser induzida em erro toma uma coisa pela outra, pertencendo ao agente a iniciativa de causar o erro. Na manutenção do erro a vítima desconhece a realidade, o agente perante o erro já existente, causa a sua persistência, prolongando-o, ao impedir, com a sua conduta astuciosa ou omissiva do dever de informar, que a vítima se liberte dele.
(3) O segundo momento do crime de burla é a prática de actos que causem prejuízos patrimoniais.
(4) Tem de existir uma relação entre os meios empregues e o erro e o engano, e entre estes e os actos que vão directamente defraudar o património de terceiros ou do burlado. Mas se o engano é mantido ou produzido e se lhe segue o enriquecimento ilegítimo no sentido civil em prejuízo da vítima, não há lugar a indagações sobre a idoneidade do meio empregue, considerado abstractamente. Da mesma forma não importa apurar se esse meio era suficiente para enganar ou fazer cair em erro o homem médio suposto pela ordem jurídica, uma vez que uma eventual culpa da vítima não pode constituir uma desculpa para o agente (Ac. de 19-12-1991, BMJ 412-234).
(2) A astúcia posta pelo burlão tanto pode consistir na invocação de um facto falso, como na falsa qualidade, como na falsificação da escrita, ou outra qualquer. Interessa, apenas, que os factos invocados dêem a uma falsidade a aparência de verdade, ou, como diz a lei alemã, o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros.
(3) O burlão, actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro. É indispensável, assim, que os actos além de astuciosos, sejam aptos a enganar, não se limitando o burlão a mentir, mentindo com engenho e habilidade, revelando uma maior intensidade no dolo e uma maior susceptibilidade dos outros serem convencidos.
(4) Longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, a sagacidade do agente comporta uma regra de "economia de esforço", limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima.
(5) A idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tomando em consideração as características do concreto burlado (Ac. de 18-10-2001, 2362/01-5, também subscrito por Simas Santos).
Finalmente, (4) por erro deve entender-se a falsa (ou a nenhuma) representação da realidade concreta, a funcionar como vício influenciador do consentimento ou da aquiescência da vítima. (5) O engano a que o art. 217.º, n.º 1, do CP, faz referência, continua a equivaler à mera mentira (a uma mentira pré-ordenada). (6) Para a comprovação do crime de burla ganha vulto a imprescindibilidade de uma factualização expressa e inequívoca das práticas integradoras da indução em erro ou da força do engano, pois que só a partir da concretização dessas práticas e dos seus cambiantes envolventes, é lícito e possível exprimir um juízo válido e seguro acerca da vulnerabilidade do sujeito passivo da infracção e, consequentemente, da eficácia frutuosa da relação entre os actos configuradores da astúcia delineada e do erro ou engano engendrados e a cedência do lesado na adopção de atitudes a ele ou a outrem prejudiciais. (7) - Por outras palavras, é necessário que facticialmente se objective a componente subjectiva de que unicamente a insídia do agente foi determinante do comportamento da vítima. (8) Assim, constando ainda da matéria de facto provada, que na posse do indicado vale de correio o arguido dirigiu-se a uma agência de um banco onde o entregou para depósito numa sua conta bancária, tendo-lhe sido creditada a correspondente quantia, esta factualidade não autoriza o enquadramento jurídico-criminal da correspondente actuação no âmbito previsivo do crime de burla. (9) Com efeito, se a indução em erro ou engano está naturalmente afastada quanto à beneficiária titular do vale do correio (e é ela a autêntica e directa lesada deste processo), também por inverificado se tem de ter aquele requisito no concernente à entidade bancária (ou melhor, ao funcionário desta), que aceitou o vale adulterado pelo arguido e o depositou na conta deste, ausente qualquer dado indicativo ou inculcador de que o procedimento houvesse sido determinado por qualquer actuação enganadora desenvolvida pelo dito arguido e conducente àquela aceitação e àquele depósito. (10) E uma eventual passividade ou falta de cuidado da entidade bancária (ou do funcionário seu), na confirmação da autenticidade da assinatura aposta no vale não é sinónimo de aquiescência motivada por acção daquele tipo. (Ac. de 11-10-2001, Acs STJ IX, 3, 192).
Integram o conceito de artifício fraudulento do tipo legal do crime de burla, além de outros, os chamados actos concludentes: condutas que não consubstanciam em si qualquer declaração mas que, em virtude de um critério objectivo, de acordo com as regras da experiência e os parâmetros sociais vigentes num sector de actividade, se mostram adequadas a criar uma falsa convicção sobre determinado facto passado, presente ou futuro. (3) Assim, pratica um crime de burla, a arguida que se apresenta como compradora de um veículo automóvel e, para pagamento do preço do mesmo, entrega dois cheques referentes a uma conta bancária que sabia estar cancelada, deste modo agindo por forma a convencer o vendedor que tal conta existia e que, nas datas respectivas, possuiria fundos suficientes para o pagamento em causa, assim o levando a entregar-lhe o referido veículo, com o que lhe veio a causar prejuízos e conseguiu um enriquecimento que sabia ser ilegítimo» (Ac. de 10-05-2000, proc. n.º 838)
Marques Borges continua a entender, de mau grado, que engano continua a equivaler à simples mentira, abrangendo as hipóteses anteriormente previstas ao artigo 456 do CP 1886. ( no seu comentário ao artigo 313 – Crimes contra ao Património – pag 22)
Almeida Costa (Comentário Conimbricense, II, pág. 300) refere que no plano criminal se exige que «a consumação do delito dependa, não de um qualquer domínio-do-erro (ainda que efectivo) mas de um domínio-do-erro jurídico-penalmente relevante», tendo em consideração uma restrição adicional do desvalor de acção subjacente à burla, cuja definição remete para o princípio da boa fé (em sentido objectivo): «uma exigência de consideração pelos interesses legítimos da outra parte, nele radica o decisivo critério da lealdade que deve acompanhar as relações das pessoas no comércio jurídico e, portanto, o limite da relevância do domínio-do-erro no quadro da burla».Traduzindo, a burla não existe pelo simples facto de o preço não ser pago mas sim quando é obtido pelo agente, para si ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo através de um dos processos que a lei refere, ou seja, por erro, engano ou astúcia por ele provocada.

Fraude Civil versus Fraude Penal:

A doutrina tem-se ocupado da questão da distinção entre a fraude civil e a fraude penal.T. S. Vives Anton (Compendio de Derecho Penal, Parte Especial, 497-8) sobre o título engano e dolo "in contrahendo", refere-se assim, à linha divisória entre a fraude, constitutiva da burla, e o simples ilícito civil.«Na doutrina civil o "dolo in contrahendo" determinante da nulidade do contrato (dolo grave ou causante) configura-se em termos praticamente idênticos ao engano constitutivo da burla (vid. Díez Picazo), inclusive quanto à eficácia causal para produzir e provocar o acto dispositivo.Em consequência, a linha divisória entre a burla e o ilícito civil, determinante da nulidade do contrato, radicará na existência ou inexistência de prejuízo obtido ou tentado - (vid. Sentença de 6.2.89, Ar. 1.479 - que afirma que o dolo "in contrahendo" é facilmente criminalizável desde que concorram os demais elementos estruturais do crime de burla).Deve destacar-se que, na prática, em geral a conduta será classificada como burla, ou tida por civilmente ilícita em função da via processual eleita pelo prejudicado, como chega a insinuar a sentença antes citada.» (na tradução do relator).Também Júlio Fabbrini Mirabete (Manual de Direito Penal II, 19.ª Edição, pá. 297-8) lembra que foram sugeridos vários critérios para se fazer a distinção entre a fraude civil e a fraude penal.«Afirma-se que existe esta (fraude penal) apenas quando: há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico; há um dano social e não puramente individual; há a violação do mínimo ético; há um perigo social, mediato ou indirecto; há uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, tem como única sanção adequada a pena; há fraude capaz de iludir o diligente pai de família; há evidente perversidade e impostura; há uma mise-en-scène para iludir; há uma impossibilidade de se reparar o dano; há o intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio etc. Afirma Hungria que, "tirante a hipótese de ardil grosseiro, a que a vítima se tenha rendido por indesculpável inadvertência ou omissão de sua habitual prudência, o inadimplemento preordenado ou preconcebido é talvez o menos incerto dos sinais. orientadores na fixação de uma linha divisória nesse terreno contestado da fraude". Na verdade; não há diferença de natureza, antológica, entre a fraude civil e a penal; Não há fraude penal e fraude civil, a fraude é uma só. Pretendida distinção sobre o assunto é supérflua, arbitrária e fonte de danosíssimas confusões (JTACrSP58/210; RT423/401). O que importa verificar, pois, é se, em determinado facto, se configuram todos os requisitos do estelionato, caso em que o fato é sempre punível, sejam quais forem as relações, a modalidade e a contingência do mesmo (RT 543/347-348).E acrescenta este Autor: «tem-se entendida que há fraude penal quando o escopo do agente é o lucro ilícito e não o do negócio (RT423/344) Isso, porque a fraude penal pode manifestar-se na simples operação civil, não passando esta, na realidade, de engodo fraudulento que envolve e espolia a vítima (RT329/121), Mas é comum nas transacções civis ou comerciais certa malícia entre as partes, que procuram, por meio da ocultação de defeitos ou inconveniências da coisa, ou de uma depreciação, justa ou não, efectuar operação mais vantajosa. Mesmo em tais hipóteses, o que, se tem é o dolo civil, que poderá dar lugar à anulação do negócio, por vício de consentimento,. com as consequentes perdas e danos (arts. 147, II, e 1.103 do CC), não, porém, do dolo configurador do estelionato (RT 547l34g) Não há crime na ausência de fraude, e o mero descumprimento do contrato, mesmo doloso, é mero ilícito civil (JTACrSP 49/173, 50/79, 51/405, RT 423/394, RTJ 93/978) (...).Configura-se o crime: (...) no obtenção de financiamento com garantia fiduciária inexistente; na compra a crédito com nome falso (JTACrSP 59/261, 62/171); na inadimplência contratual preconcebida (JTACRSP 44/166) etc.»

Burla Informática (Art. 221 C.P.):

Dispõe o artigo 221º, do CP:
“1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, interferindo no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorrecta de programa informático, utilização incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.---2 - A mesma pena é aplicável a quem, com intenção de obter para si ou para terceiro um benefício ilegítimo, causar a outrem prejuízo patrimonial, usando programas, dispositivos electrónicos ou outros meios que, separadamente ou em conjunto, se destinem a diminuir, alterar ou impedir, total ou parcialmente, o normal funcionamento ou exploração de serviços de telecomunicações.”---

Constituem elementos típicos do crime de burla informática:
- a interferência no resultado de tratamento de dados ou mediante incorrecta estruturação de programa informático; uso incorrecto ou incompleto de dados; aproveitamento de dados sem autorização; intervenção no processamento por meio não autorizado.
- com a intenção de obter ganho ilícito, para o próprio agente ou para terceiro.
- Causando prejuízo patrimonial.

Ver Acórdão 06-10-2005 cujo Relator Simas Santos

“– No crime de burla informática do art. 221.º, do C. Penal, o bem jurídico protegido é não só o património – mas concretamente, a integridade patrimonial – mas também os programas informáticos, o respectivo processamento e os dados, na sua fiabilidade e segurança.
3 – Se depois de roubarem uma carteira, os agentes descobrem nela um cartão multibanco e respectivo código e decidem então utilizá-lo até esgotarem o saldo, o que executam, sem estarem autorizados, cometem um crime de roubo e, em concurso real, um crime de burla informática.4 – No caso há igualmente uma autonomia e pluralidade de resoluções que sempre afastaria a consumpção da burla informática pelo roubo. Ac. STJ 06-10-2005 – relator – Simas Santos”

1.ª Questão – Crime de Burla por omissão:
- Na 1.ª Comissão revisora do texto de 1982, foi sugerido a expressão “ou aproveitou”, então usada no Anteprojecto (art.º 212), dava a ideia de punição por omissão, o que constituia um alargamento excessivo do tipo que podia conduzir, por exemplo, a que a maioria de compras de antiguidades se transformassem em crimes de burla. No anteprojecto, pôs-se em relevo que não se devia afastar o crime por omissão, pois o tipo não se alarga o demasiado pois fica sempre limitado, por um lado, pela exigência de o aproveitamento ter sido austicioso e, por outro lado de haver um dever de informar e de esclarecer. Isto é, no domínio da burla por omissão o “aproveitamento astucioso” só realiza quando havia um dever de informação que não foi cumprido. A expressão não passou para o artigo.
- MARQUES BORGES – Entende que a burla por omissão não deve ser punida. 3 motivos: 1.º a expressão “aproveitamento” de erro ou engano foi discutida; 2.º a redacção final eliminou expressamente tal termo. 3.º a remissão para a parte geral do CP não é de per si suficiente para repor a punibilidade do crime de burla por omissão.
- Tal, no entanto, não permite concluir que tenha sido afastada a possibilidade de cometimento de burla por omissão. A forma como está redigido não o faz e o art.º 10, nos termos do qual, quando um tipo legal de crime compreende um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se for outra a intenção da lei. Contudo, a comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recaia um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado. ( Simas Santos, Borges de Pinho e Maia Gonçalves) .
- “Há situações em que o silêncio doloso sobre um erro preexistente deve ser assimilado à indução em erro para efeitos criminais: assim acontece quando a vitima desconhece a realidade, o agente se apercebe desta circunstância e causa a persistência do erro, prolongando-o e potenciando-o, ao impedir, com a sua astuciosa conduta omissiva do dever de informar, que a vitíma se liberte dele. É a burla por omissão ou aproveitamento. Ac STJ de 29 de 96/02/29, BMJ 454-532
- O crime de burla apresenta-se como a forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar. O burlado, nas hipóteses de erro, como de engano, só age contra o seu património ou de terceiros por que tem um falso conhecimento da realidade. Simplesmente esse seu falso convencimento nasce, no caso do mero engano, da mentira que lhe é dada a conhecer pelo burlão. A vítima, ao ser induzida em erro toma uma coisa pela outra, pertencendo ao agente a iniciativa de causar o erro. Na manutenção do erro a vítima desconhece a realidade, o agente, perante o erro já existente, causa a sua persistência, prolongando-o, ao impedir, com a sua conduta astuciosa ou omissiva do dever de informar, que a vítima se liberte dele. O segundo momento do crime de burla é a prática de actos que causem prejuízos patrimoniais. Tem de existir uma relação entre os meios empregues e o erro e o engano, e entre estes e os actos que vão directamente defraudar o património de terceiros ou do burlado. Mas se o engano é mantido ou produzido e se lhe segue o enriquecimento ilegítimo—no sentido civil do termo, aquele que não corresponde objectiva ou subjectivamente a qualquer direito—em prejuízo da vítima, não há lugar a indagações sobre a idoneidade do meio empregue, considerado abstractamente. Da mesma forma não importa apurar se esse meio era suficiente para enganar ou fazer cair em erro o homem médio suposto pela ordem jurídica, uma vez que uma eventual culpa da vítima não pode constituir uma desculpa para o agente. O ofendido entregou ao arguido a quantia de 4.000.000$00, sabendo que este, na altura, aceitava depósitos em dinheiro, sobre os quais pagava o mesmo juro da Organização D. Branca — 10 % ao mês — e este aceitou esse depósito comprometendo-se a pagar os juros mensais de 10% sobre ele. Por sua vez, o réu comprometeu-se perante o ofendido a pagar-lhe juros mensais de 10% sobre a quantia depositada. Nesta parte do processo causal reside o engano em que o réu fez cair o ofendido que lhe entregou a aludida importância tão-só por estar convencido de que o réu detinha tal quantia e estava em condições de pagar juros mensais de 10 por cento. O engano utilizado pelo réu, para se apropriar de bens do ofendido, consistiu precisamente no facto de lhe prometer pagar juros de 10 por cento ao mês, sabendo de antemão que tal lhe era impossível, estando numa situação económica difícil e tendo vendido muitos dos seus bens de raiz. A inverosímil ingenuidade do ofendido não pode constituir desculpa para o agente. O certo é que o arguido pagou ao ofendido tão só 100 contos respeitante a juros, tendo-se ausentado para fora do país, sabendo o réu que estava a provocar uma diminuição patrimonial ao ofendido. Tem-se assim verificado: o engano do ofendido, a prática de actos causadores de prejuízo patrimonial com o consequente enriquecimento ilegítimo (acórdão do STJ de 19 de Dezembro de 1991/12/91, BMJ-412-234.


Qual o momento de consumação do crime de Burla?

“ Crime de Burla só se perfectibiliza com a existência de um prejuízo patrimonial: um crime que só pode ter como consumado com prejuízo patrimonial do burlado ou de terceira pessoa. Daí que o momento de consumação seja o da prática do acto de onde vem a resultar o prejuízo patrimonial – nas situações mais frequentes o da entrega jurídica ou material da coisa. – Ac. STJ de 7/10/99, proc.560/99, SASTJ, n.º 34,79)


2.º Questão: Pode o Estado ser vítima do Crime de Burla?
Cons. Pereira Madeira.
- Ac. STJ de 3/10/1996 – “Também tradicionalmente, nunca no nosso sistema juridico, se entedeu, que a realidade juridico-constitucional que tem a designação de Estado, embora seja uma entidade abstrata de direito público, mas não tem as caraterísticas de uma pesoa colectiva tal como ela é estruturada pelos direitos civil ou comercial, pudesse ser vítima de um crime de burla, já que o lesado por este crime treria que ser uma pessoa, das reguladas por estes dois ramos do direito.”
- Sentido Idêntico –
o Diogo e Monica Leite e Campos[1] que afirmam que o Estado não pode ser sujeito passivo de burla, já que o património público se protege com outros tipos, pois para certos crimes estão dispostas agravações em função da natureza da coisa subtraída. Parece, segundo estes autores, que está subtraída ao património público, podendo apenas ser cometida perante um património privado.
o Fernanda Palma e Rui Carlos Pereira afirma que poderemos indiciar com ovítima em sentido estrito – como objecto da acção típica – a pessoa induzida em erro ou engano. E essa vítima só poderá ser, por natureza, uma pessoa singular. Entes colectivos, públicos ou privados, são, em si mesmos, insusceptíveis de serem induzidos em erro ou engano. O erro ou engano não é requerido na burla em sentido figurado: ele deve possuir uma dimensão psicológica. Acrescentam, assim que é duvidoso que o património do Estado possa ser protegido pela incriminação da burla.
- Ac. STJ de 10-01-2002 – “O Estado é uma pessoa colectiva de direito público e, como tal, possível sujeito passivo do crime de burla e de outros de índole patrimonial.”
o Mário Ferreira Monte – o Estado é composto por toda uma estrutura organizatória, de onde se avultam os seus funcionários, os seus serviços, que enquanto trabalham para e em nome do Estado, são eles mesmos o rosto deste. Bem sabemso quando se diz que o Estado foi enganado, em rigor, o que queremos dizer é que foi enganado através das pessoas singulares que nele trabalham. Em suma, refere o mesmo autor, o que é relevante é a relação jurídica existente, estabelecida entre dois sujeitos ( Estado e cidadão), dentro da qual a infracção decorre, ainda que um deles ( Estado), por se tratar de ente colectivo, seja afectado através de actividade de um seu servidor, concluindo que o que é relevante em sede de aplicação de direito constituído, em direito penal, é saber se o bem jurídico é violado ou não, e não saber se a vítima é esta ou aquela.
o Primeiro aspecto a ter em conta: no crime de burla não é necessário que a pessoa enganada pelo agente seja a mesma que sofre o prejuízo patrimonial. O que é essencial é que haja um elemento enganado ( vítima de engano ou erro ) e um elemento que sofra um prejuízo patrimonial em resultado de actos praticados em função do erro ou engano causado pelo agente do crime de referência. Nada resulta da lei que tal elemento não possa ser um pessoa colectiva.
o Mas poderá a tutela do crime de burla abranger tb as situações em que o Estado intervém como pessoa colectiva de direito público, sob a veste de autoridade pública, ou seja com ius imperium?
§ Diogo e Monica Leite de Campos – afirma peremptóriamente que nas relações entre iguais tudo é devido à outra parte. Nas relações de imposição só é devido o devido procedimento. Compete a quem impõe definir o comportamento do sujeito e a este cumprir. Em matéria de impostos, o Estado não pode ser sujeito passivo de burla, já que o património público se protege com outros tipos. Inclusive para certos tipos ( furto e abuso de confiança – art 299 e 300 CP de 1982) estão dispostas agravações em função da natureza da coisa substraída e tal não acontece na burla. Não se entende facilmente que na burla não haja agravação, a não ser que admitams q a burla só cabe nos quadros do património privado.
§ Paula Dá Mesquita - A inexistência desta agravação deriva tão só de uma opção de politica criminal no sentido de que a natureza pública do património não justifica uma qualificativa especial tendo mesmo estas qualificações sido eliminadas na revisão de 95 mas que ninguém preconiza que se tenha operado uma despenalização das apropriações ilícitas das coisa pertencentes aos referidos sectores.
§ Alguns Autores – Afirmam que é de afastar a tutela do crime de burla no patrimonio público do Estado, pois o mesmo é objecto de tutela específica. ( art.º 375, 376 e 377, peculato, peculato de uso e participação económica em negócio)
Furto com utilização duma artimanha (Triekdiebstahl). Outros casos de subtracção.
CASO nº 15-D. O carro acabado de lavar. A desloca-se ao Porto e como tem aí que fazer durante umas horas deixa o carro numa estação de lavagens e recolhas, perto da Baixa. Depois voltará para pagar e levar o carro, lavadinho e a reluzir como nos primeiros dias em que andou com ele. A meio da tarde, B, que sempre se entusiasmou com aquela marca de automóveis, dirige-se à estação de recolhas, onde é atendido pelo empregado C. Fingindo ser o dono do carro, paga e recebe de C as chaves da viatura, ausentando-se nela, feliz por ter conseguido dar um golpe bem urdido e melhor executado.
Responsabilidade de B e C? A pessoa enganada viu o garagista ficar privado do carro contra sua vontade. Não obstante o engano utilizado para conseguir convencer que o agente era o proprietário do carro, o que houve foi uma subtracção. É de furto que se trata.


Na burla o objecto da intenção do agente pode bem ser uma coisa determinada, mas o que marca a diferença é a perda patrimonial sofrida. Na burla são decisivos critérios de valor, não já a determinação da propriedade

A burla pressupõe não só um enriquecimento ilegítimo como o respectivo prejuízo patrimonial do lesado, enquanto que o crime de furto pressupõe a violação da propriedade.
Este caso preenche todos os elementos típicos-criminais quer do do crime de furto quer do crime de burla! No entanto defenso, em primeira ratio, que é um crime de furto por se tratar de coisa móvel alheia....A ratio do crime de burla, salvo melhor opinão tem mais um relacionamento chegado com a falsificação de documentos, passagem de moeda falsa, fraude fiscal....
Parece-me relevante que para a caracterizacão da burla, ser necessário chamar à colação uma da suas características: trata-se de um crime de relação. Isto é um crime que depende da participação da vítima, pelo que ao nível da imputação objectiva tem que se analisar as características da acção do autor ( o engano ) e da participação da vítima ( o acto de disposição realizado em virtude do erro). ( sei que isto tb se aplica ao caso).
Last but not the least, defenso que o crime de burla como acima referi, protege o património em geral, tanto mais que está no capitulo dos Crimes contra ao Património (protege mais especificamente, o prejuízo patrimonial) enquanto que o crime de furto protege a propriedade dos bens jurídicos que fazem parte do patrimonio - "coisa móvel alheia". o Crime de Furto está situado no capitulo dos crimes contra a propriedade. Em primeira análise, parece que o bem juridíco violado foi a propriedade e não o património no seu todo!




3.ª Questão: Facturas Falsas: Crime de Fraude Fiscal ou Crime de Burla?

- O arguido.., na qualidade de gerente da sociedade XXX, simulou transacções comerciais com terceiros, utilizando facturas sem correspondente em efectivas trocas e recebimento de mercadorias.
- Essas facturas, utilizadas no período compreendido entre Setembro de 1990 e julho de 1993, pelo modo que foram utilizadas, permitiram a dedução de cerca de 61 mil contos correspondente ao IVA que a referida sociedade não suportou!
- Despacho que decretou a prisão preventiva- art 218, n.º 2 al. a) – Burla qualificada; falsificação de documentos art. 256 n.º 1 al. b e c; fraude fiscal – art. 23.º do DL n.º 20-A/90, na redação do DL 394/93 de 24 de Novembro.
A utilização de facturas falsas como meio de redução de impostos a liquidar ou como meio de obtenção de reembolsos constitui o crime de fraude fiscal ( pp pelo DL 20-A/90, art.º 23, n.º 1, 2 al. c, 4, após redacção de DL 394/93) ou crime de Burla (art. 217 ou 218 CP)??
- A-) A FAVOR da possibilidade de qualificação jurídico-penal como crime de burla.
o Tese do concurso efectivo entre o crime de burla e crime de fraude fiscal. (Ac.STJ 4 e 11/10 de 1995) – Duas considerações: 1ª - por um lado os bens tutelados pelos respectivos tipos legais de crimes seriam diferentes, pois que o cirme de de burla protegeria o património e o crime de fraude fiscal tutelaria o a verdade fiscal, isto é, a verdade e a fiabilidade nas declarações fiscais; 2ª - por outro lado teriamos o art. 13 do RJIFNA ( Regime Jurídico das Infracções Fiscais não-Aduaneiras) – “ se o mesmo facto jurídico constituir simultaneamente crime previsto neste Regime Jurídico e crime comum , as penas previstas para ambos são cumuláveis, desde que tenham sido violados interesses jurídicos distintos.”
§ Apreciação Critica: esta tese só será defensável para a hipótese em que a conduta fraudulenta em causa visasse directamente um duplo prejuízo patrimonial ( e um corresponde enriquecimento): um prejuízo de um terceiro e o prejuízo do Fisco. Se este duplo prejuízo não existir, não pode existir concurso real pois tal constituiria um violação do princípio ne bis in idem.
- B-) A FAVOR da possibilidade de qualificação jurídico-penal como crime de Fraude Fiscal
o Tese da impossibilidade de o Estado poder ser vítima do crime de burla e portanto da inevitável qualificação da conduta fraudulenta, em prejuízo do erário público, como fraude fiscal. – Sendo o elemento nuclear do crime de burla o engano ou a indução em erro do sujeito passivo, só a pessoa humana pode ser objecto de tal crime, pois só ela e apenas ela pode ser ardilosamente influenciada na sua liberdade de decisão e o Estado, enquanto construção jurídica, nunca pode ser enganado. (Ac STJ de 3/10/96 com votos de vencidos de Juizes conselheiros, embora concordando com a qualificação do crime de facturas falsas como fraude fiscal, discordaram da tese da impossibilidade do Estado ser sujeito passivo do crime de burla!).
§ Apreciação Critica – O Estado como qualquer pessoa colectiva, tem os seus representantes, os seus funcionários que são pessoas individuais, que, como tal, podem ser induzidas em erro. E as decisões tomadas por essas pessoas, enquanto representantes do Estado, são decisões do próprio Estado.
o Tese da relação de especialidade entre o direito Penal Fiscal e o Direito penal Comum - está em questão uma profunda autonomia e especificidade dos regimes jurídicos das infracções fiscais face aos crimes de delito comum. Isto é, os crimes fiscais têm uma matriz e uma identidade ético-social e juridico-penal própria, donde nunca seria punível como crime de burla nos termos do CP o ilícito que apenas atingisse o património do Fisco.


AUJ de 07/05/2003 – “De harmonia com o exposto, acordam os Juízes que compõem o Pleno das Secções Criminais deste Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 445º do Código de Processo Penal, em:
Fixar a seguinte jurisprudência: «Na vigência do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, com a redacção original e a que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, não se verifica concurso real entre o crime de fraude fiscal, previsto e punido pelo artigo 23.º daquele RJIFNA e os crimes de falsificação e de burla, previstos no Código Penal, sempre que estejam em causa apenas interesses fiscais do Estado, mas somente concurso aparente de normas, com prevalência das que prevêem o crime de natureza fiscal»;Voto de Vencido: “Vencido pois, de Acordo com o memorando que apresentei à conferência como relator, uniformizaria a jurisprudência nos termos seguintes:
«No domínio do DL nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras, na redacção que lhe foi dado pelo DL nº 394/93, de 24 de Novembro, o agente que inscreve na contabilidade de uma empresa uma factura emitida por outra empresa que não corresponda a qualquer transacção real, integrando assim o imposto que lhe foi supostamente facturado na declaração periódica de IVA, com o objectivo de obter da parte do Estado um reembolso a que não tinha direito, comete o crime de burla dos arts. 313º. e 314º., bem como o de falsificação do art.228.º, nº 1 do C.Penal, na versão originária, ou dos arts. 217.º,218.º e 256.º do C.Penal, na versão de 1995».
1. Não se dissente da solução dada ao concurso das normas do Código Penal e da legislação penal fiscal, mas entende-se que, antes de determinar que tipo de concurso se estabelece entre essas normas, se impõe determinar se se verifica sequer concurso entre elas.
2. Em obediência aos princípios da legalidade e da tipicidade, impõe-se começar por verificar qual(is) o(s) crime(s) que a conduta em causa corporiza, sabendo que a parte especial do Código Penal dá cumprimento ao princípio da legalidade, que tutela e protege os direitos fundamentais do cidadão, e ao seu corolário, o princípio da tipicidade: para a conduta humana assumir a dignidade de um crime, é indispensável que coincida formalmente com a descrição feita em norma incriminadora. Não basta, pois, que alguém tenha cometido um facto anti-social, merecedor da reprovação pública, se esse facto escapou à previsão do legislador.Cabe, assim, à lei e só a ela especificar quais os factos ou condutas que constituem crime e quais os pressupostos que justificam a aplicação de uma medida de segurança, optando o legislador por o fazer através de modelos ou tipos que têm como função aferir se determinados comportamentos humanos se amoldam ao desenho arquitectado pelo legislador, deve a acção tida como censurável ser típica, isto é, corresponder a um dos «esquemas» ou «delitos-tipo» objectivamente descritos na lei penal.Analisado o tipo do crime de burla tal como configurado, quer no texto original, quer na redacção actual do Código Penal, conclui-se que os elementos que preenchem e informam a respectiva tipicidade são o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocados para determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial, com intenção de obter para o agente ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.
No caso sujeito, trata-se de um agente que inscreve na contabilidade de uma empresa uma factura emitida por outra empresa que não corresponda a qualquer transacção real, integrando assim o imposto que lhe foi supostamente facturado na declaração periódica de IVA, com o objectivo de obter da parte do Estado um reembolso a que não tinha direito.
É, pois, patente a utilização por esse agente de meios adequados a provocar astuciosamente um estado de erro ou engano do Estado. E mercê do uso de tal artifício fraudulento e do erro em que, assim, a Administração Fiscal foi induzida, é esta levada a praticar um acto que lhe causa um prejuízo patrimonial. Património que, numa visão jurídico-económica, integra o conjunto de "utilidades económicas" detidas pelo sujeito, cuja fruição ou exercício a ordem jurídica não desaprova: a totalidade das "situações" e "posições" com valor ou utilidade económica, detidas por uma pessoa e protegidas pela ordem jurídica ou, pelo menos, cuja fruição não é desaprovada por essa mesma ordem jurídica. Noção que se revê também no uso feito no primeiro segmento da norma em análise da expressão "enriquecimento ilegítimo".Da forma descrita, o agente leva a Administração Fiscal a praticar um acto que causa uma diminuição injustificada do património público: um acto de disposição patrimonial, que se traduz ou em compensar indevidamente um direito de crédito do Estado ou em obter deste um reembolso indevido. O que sempre se traduz numa verdadeira deslocação patrimonial do Erário Público e um enriquecimento ilegítimo para o agente ou para terceiro, actuando aquele com o objectivo de obter da parte do Estado um reembolso a que não tinha direito, assim enriquecendo ilegitimamente ele ou terceiro.3. Importa, depois, verificar se, como sucede em situações muito comuns, o agente, com a sua conduta, não preenche apenas um único ou o mesmo tipo de ilícito, mas sim mais do que um tipo ou o mesmo tipo mais do que uma vez, podendo suceder que ocorra concurso de normas incriminados, ou seja e no caso, que a conduta em causa corporize também outros crimes, designadamente fraude fiscal.Tomando em consideração o RJIFNA (DL nº 20-A/90, de 15 de Janeiro e na redacção do DL nº. 394/93, de 24 de Novembro) no seu art. 23.º, podemos reter que constituem fraude fiscal as condutas ilegítimas aí tipificadas que visem:
- a não liquidação, entrega ou pagamento do imposto; ou
- a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias.
Relembremos que se trata de um agente que inscreve na contabilidade de uma empresa uma, integrando assim o imposto que lhe foi supostamente facturado na declaração periódica de IVA, com o objectivo de obter da parte do Estado um reembolso a que não tinha direito.
Se factura emitida não corresponde a qualquer transacção real, então as transacções comerciais, a que a mesma se refere, eram pura e simplesmente inexistentes, não passavam de ficção ou encenação fraudulenta destinada a enganar o Estado. E, sendo assim, é evidente que tais "operações" (ficções) não eram tributáveis.E, não sendo tributáveis, a conduta ilícita não tem em vista diminuir as receitas fiscais ou tributárias, pois aquelas não eram, no caso, devidas.
Ao obter indevidamente o reembolso, o agente, está tão só a apropriar-se de uma parte do património do Estado, utilizando, como se viu já, meios adequados a provocar astuciosamente um estado de erro ou engano do Estado, induzido através da Administração Fiscal, que é levada a praticar um acto que causa ao Estado (Erário Público) um prejuízo patrimonial.
Trata-se, pois, de um meio fraudulento estranho à actividade fiscal do Estado, equivalente portanto a qualquer outro artifício fraudulento produzido noutra esfera de actividade estatal. Os reembolsos obtidos foram-no de forma "absolutamente" indevida, já que nenhuma relação fiscal se estabeleceu entre o agente e o Estado. O artifício fraudulento constituído pelas facturas falsas é alheio à relação fiscal; o agente não actuou na veste de contribuinte, e não visou a diminuição das receitas tributárias, mas sim obter um enriquecimento ilegítimo, mediante a determinação do Estado, através da Administração Fiscal, a prática de actos que lhe causam prejuízo patrimonial.
Em síntese, o agente ficcionou uma relação fiscal para se apropriar de parte do património do Estado, ao criar um artifício fraudulento idóneo a enganar os serviços desse mesmo Estado, levando-os a fazerem-lhe uma entrega patrimonial que não lhe era devida. Não está, assim, presente o elemento subjectivo do crime de fraude fiscal (específico complexo): intenção do agente de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida, visando uma diminuição das receitas fiscais ou a obtenção de um benefício fiscal injustificado.Como não está presente a relação jurídica fiscal, pressuposta pela fraude fiscal, tendo como sujeito activo o Estado-Fisco e sujeito passivo o contribuinte, devedor do imposto ou responsável pelo cumprimento de alguma obrigação relacionada com a cobrança do imposto.
Essa relação jurídica fiscal, enquanto pressuposto necessário do crime de fraude fiscal, é sempre verdadeira e não simulada. Com efeito, o negócio jurídico simulado previsto na alínea b), do nº 1, do art.º 23 do RJIFNA, não se refere à relação jurídica fiscal, mas sim à simulação de actos tendentes a alterar os termos daquela relação. E, no entendimento deste Tribunal que se acompanha, «o legislador fiscal, ao referir-se no art. 23º da RJINF, na redacção do Dec-Lei 394/93 a simulação, teve em vista o conceito normativo do direito civil, nomeadamente da simulação relativa. Por isso, esse Diploma não tem aplicação, nos termos do art. 2º nº. 4 do C.Penal, quando os arguidos se limitaram a forjar facturas, que não titulavam qualquer negócio» (Ac. do STJ de 4-5-1994, Processo nº 45029.«(1) No art. 23º, nº 2, al. c) do DL nº. 20-A/90, de 15 de Janeiro apenas se encontra contemplada a simulação relativa e não também a simulação absoluta. (2) Não é possível falar de simulação quando o agente não celebrou qualquer negócio jurídico e se limitou a forjar factura que não titulava qualquer negócio sendo totalmente falsa.» (Ac. do STJ de 1-6-1998, Processo nº 975/98)Sem relação tributária verdadeira, não há fraude fiscal.E essa relação tributária verdadeira não se pode esgotar no mero plano formal, em que seria sempre "verdadeira" porque existente, mas no plano material, traduzida em actos tributáveis, susceptíveis de gerar receitas tributárias e correspondentes reembolsos.
4. Assumida esta posição no plano dos princípios da legalidade e da tipicidade, fica afastada a ocorrência de concurso de normas do Código Penal e do RJIFNA, o que não deve, no entanto, causar estranheza.A consideração de que o RJIFNA constitui um Código específico das matérias tratadas, pelo que «seria absurdo pensar e admitir que, tendo o poder legislativo estudado e analisado os vários comportamentos possíveis que se traduzem em violação de interesses da Fazenda Nacional, de modo directo ou indirecto, e escolhendo a penalidade que julgou adequada à prevenção e sanção, elaborando um código específico, se consentisse que o mecanismo dissuasor e punitivo desses comportamentos afinal saísse do direito penal comum se não sempre pelo menos na maior parte dos casos » (1.º e 2.º §s do relatório), só se justificando a intervenção do Direito Penal comum a título subsidiário «o que veda uma aplicação de princípios e normas alheias aos bens jurídicos que se desejaram proteger com a elaboração daquele diploma» (art. 4º do DL 20-A/90), elemento importante na tese do acórdão recorrido, impõe necessariamente uma tarefa fundamental: a clara e precisa delimitação do âmbito de aplicação de tal diploma.
Só bem definido esse limite, é que se pode afastar o direito penal comum. Ora, como vimos, essa delimitação só poderá ser material, nos termos expostos.
Por outro lado, a consideração de que o direito fiscal é votado à defesa de interesses particulares e que não se confundem, atenta a sua particularidade, com os tutelados no Código Penal, como fundamento da aludida especialização do direito penal fiscal, impõe que a sua aplicação não seja deslocada e acabe por ter lugar em relação a factos, a condutas alheias àqueles interesses particulares, como sucede com a conduta aqui em causa.Em relação a estes factos não se perfilam os interesses particulares que motivam um regime específico, e que conduziriam à injustificada aplicação de um regime que se iria mesmo mostrar muito mais favorável a criminalidade comum contra o património.
A consideração de que a fraude fiscal se consuma mesmo que nenhum dano/enriquecimento indevido venha a ter lugar, não permite afirmar que o património não seja também protegido pelo tipo. Significa somente que é antecipada essa protecção, o que não afasta a protecção de outros bens jurídicos.Com efeito, como refere Jescheck (Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4ª Edição, pág. 6), «o direito penal tem por missão proteger bens jurídicos. Em todas a normas jurídico-penais subjazem juízos de valor positivo sobre bens vitais que são indispensáveis para a convivência humana na comunidade e que consequentemente devem ser protegidos, pelo poder coactivo do estado através da pena pública. (...)Todos os preceitos penais podem reconduzir-se à protecção de um ou várias bens jurídicos. O desvalor do resultado radica na lesão ou o colocar em perigo de um objecto da acção (ou do ataque) (v.g. a vida de uma pessoa ou a segurança de quem participa no tráfico), que o preceito penal deseja assegurar do titular do bem jurídico protegido». O que significa que poderá um só tipo legal proteger, mais do que um bem jurídico, questão a dilucidar, perante cada tipo e cada acção dele violadora.Basta atentar, na relevância dada, no desenho do tipo de fraude fiscal e sua regulamentação, ao prejuízo patrimonial e sua reparação para concluir pela protecção que se quis dar ao património do Estado com o crime de fraude fiscal. Assim se afastaria, pois, o concurso puro de infracções, entre os crimes de burla e fraude fiscal defendido pelo acórdão fundamento.
5. Resolvida esta questão, aplicaria, no que diz respeito à questão do concurso do crime de burla com o crime de falsificação, a jurisprudência fixada por este Supremo Tribunal de Justiça (Ac. de 19.2.92, publicado em 9.4.92, e Acórdão nº. (8/2000, publicado em 23.5.2000.” No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 228 n. 1 alinea a) e do artigo 313 n. 1, respectivamente, do Codigo Penal, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes.).
Lisboa, 7 de Maio de 2003.
Simas Santos
Burla Informática (Art. 221 C.P.):

Dispõe o artigo 221º, do CP:
“1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, interferindo no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorrecta de programa informático, utilização incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.---2 - A mesma pena é aplicável a quem, com intenção de obter para si ou para terceiro um benefício ilegítimo, causar a outrem prejuízo patrimonial, usando programas, dispositivos electrónicos ou outros meios que, separadamente ou em conjunto, se destinem a diminuir, alterar ou impedir, total ou parcialmente, o normal funcionamento ou exploração de serviços de telecomunicações.”---

Constituem elementos típicos do crime de burla informática:
- a interferência no resultado de tratamento de dados ou mediante incorrecta estruturação de programa informático; uso incorrecto ou incompleto de dados; aproveitamento de dados sem autorização; intervenção no processamento por meio não autorizado.
- com a intenção de obter ganho ilícito, para o próprio agente ou para terceiro.
- Causando prejuízo patrimonial.

Ver Acórdão 06-10-2005 cujo Relator Simas Santos

“– No crime de burla informática do art. 221.º, do C. Penal, o bem jurídico protegido é não só o património – mas concretamente, a integridade patrimonial – mas também os programas informáticos, o respectivo processamento e os dados, na sua fiabilidade e segurança.
3 – Se depois de roubarem uma carteira, os agentes descobrem nela um cartão multibanco e respectivo código e decidem então utilizá-lo até esgotarem o saldo, o que executam, sem estarem autorizados, cometem um crime de roubo e, em concurso real, um crime de burla informática.4 – No caso há igualmente uma autonomia e pluralidade de resoluções que sempre afastaria a consumpção da burla informática pelo roubo. Ac. STJ 06-10-2005 – relator – Simas Santos”
Burla versus Abuso de Confiança
A burla distingue-se do abuso de confiança pelo facto de naquela a posse não preceder a conduta criminosa mas resultar desta. Por via de regra, na burla, o agente obtém a entrega da coisa, induzindo em erro ou enganando o seu detentor; já no abuso de confiança, o agente não tem a ideia pré-concebida de fazer sua a coisa alheia que lhe foi entregue validamente a título precário.
No Abuso de confiança o dolo é subsequente à entrega da coisa, na burla o dolo precede essa entrega.
No plano prático, a jurisprudência em matéria de burla constituiu desde sempre uma amostra completa e muitas vezes pitoresca da sociedade. Qualquer sociólogo tenderia a ver nas decisões mais recentes um reflexo das grandes particularidades da nossa época.

· Cometem o crime de burla dois indivíduos (A e B) que determinam terceiro (C) a entregar-lhes dinheiro, mediante persuasão de que um deles tinha o poder suposto de fabricar notas e lhe ia ensinar a fabricá-las (acórdão do STJ de 14 de Outubro de 1959, BMJ-90-413).
· No crime de burla é necessário que o elemento “agir astuciosamente” se junte limitativamente ao dolo específico, de tal forma que, mesmo havendo a intenção de enriquecimento ilegítimo, o modo pelo qual se realiza essa intenção se revele engenhoso, enganoso, criando a aparência de realidades que não existem, ou falseando directamente a realidade. O arguido, que obteve um empréstimo com a alegação de que o mesmo se destinava à compra de um armazém, que, depois, daria de hipoteca ao credor, livre de quaisquer ónus ou encargos, fazendo-se a prova de que o credor não lhe concederia tal empréstimo se soubesse que, afinal, ele já tinha, não apenas comprado o armazém, como até arrendado, comete um crime de burla. Este crime tem como requisitos que o agente: - tenha a intenção de obter para si, ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo; - com tal objectivo, astuciosamente, induza em erro ou engano o ofendido sobre factos; - e dessa forma determine o mesmo ofendido à prática de actos que causem a este, ou a outra pessoa, prejuízos patrimoniais. Quanto ao elemento “astuciosamente”, estão a doutrina e a jurisprudência de acordo em que se trata de uma exigência que se vem juntar limitativamente ao dolo específico (v. Actas da Comissão Revisora do Cód. Penal, 1979, pág. 138, e Cód. Penal Anotado, Maia Gonçalves, 3ª ed., 464), de tal forma que, “mesmo havendo a intenção de enriquecimento ilegítimo, o modo pelo qual se realiza essa intenção tem de se revelar engenhoso, enganoso, criando a aparência de realidades que não existem (dizendo ou fazendo crer que existe o que não existe) ou falseando directamente a realidade (manifestando expressamente uma mentira)” (acórdão da Relação de Coimbra, de 1 de Junho de 1983, Col. Jur., Ano VIII, t. 3, pág. 98).
· São elementos constitutivos do crime de burla: o intuito de obter enriquecimento ilegítimo, através de erro ou engano sobre factos, que astuciosamente determinem outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízos patrimoniais. Integra o elemento enganoso, o facto de os arguidos após prévio acordo se dirigirem ao ofendido, fazendo-lhe crer que eram pessoas sérias e de boa capacidade económica, prontificando-se a emitir cheques e letras, tendo com base nisso obtido a entrega do veículo por parte do ofendido (acórdão do STJ de 31 de Janeiro de 1996, processo nº 48746 - 3ª Secção, Internet).
· Toda a actuação demonstra um complexo estratagema destinado a enganar o sujeito passivo, iludindo a sua boa fé e levando-o a uma falsa representação da realidade de que resultou (e aqui está a chamada relação causa-efeito) agir ela contra o seu património. Nessa actuação está patente o urdimento com exteriorização enganatória, significante da astúcia. As manobras foram colimadas a criar junto do ministério a "aparência" de uma determinada realidade não existente e se o ministério pagou no convencimento dessa realidade (e, portanto, devido a esse convencimento em que foi induzido por tais manobras), é inegável que existe uma relação de adequação de meio para fim. Se (primeiro momento), com a intenção de enriquecimento ilegítimo (e é ilegítimo aquele que não corresponde a qualquer direito), o agente convence o sujeito passivo de uma falsa representação da realidade (e o erro ou engano nisso consistem), mediante manobras (e estas podem ser as mais variadas, desde a simples mentira que as circunstâncias envolventes são de molde a tornar credível perante o homem médio até aos mais elaborados artifícios) adrede realizadas, e com isso consegue (segundo momento) que esse sujeito pratique actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízos patrimoniais, está perfeito o crime de burla, sendo que o enriquecimento ilegítimo é em regra concomitante (como duas faces da mesma moeda) com o prejuízo patrimonial causado pelo acto e que deve existir uma relação de causa-efeito entre o primeiro e o segundo momentos (acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 1996, BMJ-454-531; também publicado e anotado na RPCC 6 (1996).
· Pratica o crime de burla o causídico que, tendo sido nomeado patrono oficioso do ofendido para propor uma acção de divórcio e tendo proposto uma acção de divórcio por mútuo consentimento no âmbito do patrocínio, obteve do ofendido uma procuração em que este lhe concedia "amplos poderes forenses", sem lhe dar qualquer explicação sobre a finalidade a que a destinava e, depois, veio a conseguir que ele lhe entregasse a importância de 10 contos (acórdão da Relação de Coimbra de 28 de Novembro de 1991, CJ, XVI (1991), t. 1, p. 91); * Pratica o crime de burla, e não de abuso de confiança, o advogado que, após receber da seguradora um cheque destinado ao seu cliente, o falsifica e obtém o seu pagamento junto do Banco (apôs no verso do cheque uma assinatura como se fosse a do ofendido e como se este lhe tivesse transmitido o título), causando prejuízos ao titular do cheque.
· Comete um crime de burla agravada dos artigos 313º e 314º, c), do CP de 82, o arguido que, convence a queixosa, sua tia, a transferir todo o seu dinheiro (4.509.050$00) que tinha depositado, em duas contas a prazo no banco F..., para o balcão do Banco Z..., em Mangualde, e a colocá-lo em nome dela, dele (arguido) e de sua esposa e dele se apodera depois, através da execução de um plano, contra a vontade da ofendida (acórdão do STJ de 23-01-1997, processo n.º 171/90, Internet).
· Praticam um crime de burla os arguidos que, na sequência de contrato-promessa de compra e venda de fracção de um imóvel realizado com a queixosa, continuamente lhe asseguram a celebração da escritura do contrato prometido para o mês seguinte, sabendo, no entanto, que a sociedade não tinha capacidade financeira para distratar a hipoteca e que, por conta de tal contrato, dela vão recebendo diversas quantias em dinheiro. Acórdão do STJ de 24 de Abril de 1997, BMJ-466-257
· Cometem um crime de burla um sargento e outros militares do exército, os quais, mediante promessas enganosas, de livrarem mancebos do serviço militar, conseguem que estes lhes entreguem quantias em dinheiro, que gastam em seu proveito. Oscilando entre os 20.000$00 e os 180.000$00 as quantias de que os arguidos, astuciosamente, se apropriaram, em prejuízo dos ofendidos, a esta última quantia (180.000$00) corresponde a "conduta mais grave" a ter em conta na punição do crime continuado art.º 30, n.º 2 e 79, ambos do CP, revisto em 1995. Não sendo a importância de 180.000$00, de valor "consideravelmente elevado", estamos perante em face de um crime de burla simples.
Sendo o erro e o engano elementos do tipo da burla têm que estar em relação, dum lado, com os meios empregues pelo burlão, do outro, com os actos que vão directamente defraudar o património do lesado. A conduta astuciosa do burlão motiva o erro ou engano; em consequência do erro ou engano, a vítima passa ao acto de que resulta o prejuízo patrimonial.


Crime de Emissão de Cheque sem Provisão: ( punido pelo art.º 11 do DL n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção do D.L. n.º 316/97 de 19 de Novembro.)

A protecção penal do cheque impõe no presente mundo devido ao seu uso genérico.

O cheque é um título cambiário, à ordem ou ao portador, literal ou formal, autonomo e abstracto, contendo uma ordem incondicionada, dirigida a um banqueiro no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis, ordem de pagar à vista a soma nele descrita., devendo ter a menções referidas no art.º 1 da Lei Uniforme sobre Cheques.
Ver prospecto da PJ – Simas Asntos, pag 841

São elementos constitutivos do crime:

- a-) Emissão de um cheque – que consiste no seu preenchimento e entrega a tomador;

- b-) Falta ou insuficiência de provisão - o que caracteriza o crime é a falta de provisão, quando apresentado o cheque a pagamento dentro de 8 dias. O Facto do portador saber, na altura que recebeu o cheque, que o mesmo não tinha provisão, não é elemento que exclua a criminalidade do Acto, uma vez que a incriminação não se destina apenas a proteger os interesses patrimoniais do portador, mas visa sobretudo a protecção do interesse social, a segurança das relações jurídico-económicas em relação ao perigo resultante de passagem irregular de títulos de crédito.

- c-) dolo genérico – basta que esteja presente a intenção do agente de praticar o facto, tendo consciência da falta de provisão e da ilicitude dessa conduta. (doutrina adoptado pelo Assento de 80-11-20.

Condições de punibilidade do crime:

- a-) apresentação a pagamento dentro de prazo legal – a contar do dia que figura no cheque como de emissão
- b-) verificação do não pagamento ou insuficiência de provisão – não basta que o cheque seja apresentado a pagamento no prazo legal, sendo ainda necessário que a verificação da falta de provisão tenha lugar no mesmo prazo. De acordo com o art.º 41 de LUC , a declaração deve ser feita antes de expirar o prazo para apresentação, podendo, no entanto, se o cheque for apresentado no último dia do prazo, ser a mesma declaração feita no primeiro dia útil seguinte. Exige-se que essa declaração manifeste inequivocamente que o cheque não tem cobertura.

Estas duas condições objectivas de punibilidade, de verificação simultânea, são insusceptíveis de suprimento por qualquer meio de prova, ou seja, só a prova decorrente da declaração de recusa de pagamento feita por qualquer dos modos previstos no art.º 40 da L.UC. vale como meio de prova.

Ver quadro de estruturação do crime – pag 842 Simas

Cheque de garantia – aquele que tem por objectivo garantir o pagamento de um crédito do tomador) é segundo a jurisprudência, susceptível de ser objecto de c rime se se verificarem os requisitos legais pela lei.

Crime de emissão de Cheque pré-datado sem provisão – em que é aposta uma data posterior à sua entrega. – A jurisprudência tem entendido que é punível

- tudo se conjuga para o entendimento de que essa foi a intenção do legislador, i.e., punir o cheque sem provisão mesmo que apresentado a pagamento antes da data nele aposta. Só assim se pode harmonizar as razões determinantes da punição com o caracter do ilícito, marcadamente de perigo assumido ou abstracto (isto é, não se torna necessário que o sacador emita o cheque para prejudicar beneficiários e assim a circulação do cheque como meio de pagamento e moeda boa para o realizar, sendo suficiente o perigo de lesão de interesse digno de tutela jurídica.
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Questão : Haverá crime mesmo naqueles casos em que o tomador do cheque, sabendo que o mesmo não tem cobertura, o aceita mediante compromisso escrito com o emitente no sentido de o apresentar a pagamento só depois de verificada certa condição suspensiva? – é que o consentimento do ofendido, nos termos do art.º 38 n.º 1 do CP , só exclui a ilicitude do facto quando se refira a interesses livremente disponíveis e o interesse que subjaz à incriminação do cheque sem fundos não é exclusivamente um interesse patrimonial dos tomadores ou beneficiários mas, de preferência, o interesse público da circulação do cheque como meio de pagamento com vista à realização dos objectivos de rarefacção da circulação fiduciária de moeda e saída de fundos do circuito bancário.


Para que o crime de burla se verifique é necessário que se configure e estabeleça uma relação causal adequada entre o erro e o engano criados e a prática de actos pelo ofendido que, a esta ou a outra pessoa, sejam patrimonialmente prejudiciais sem o que aqueles seriam irrelevantes para que estes actos fossem praticados e daí que «incorre no crime da alínea c) do n.º 1 do artigo 11 do Decreto-Lei 454/91 de 28 de Dezembro e não nos de falsificação de cheque (...) e de burla (...) o sacador de cheque que, depois de o emitir, vai ao banco sacado, onde tem provisão e, de má fé, diz que o título (ou o livro deles) se extraviou e dá ordem de não pagamento"- vd. Ac. STJ de 21-09-95, no proc. 047211, sendo relator o Sr. Conselheiro Sá Nogueira, in dgsi site.
Seria de todo difícil considerar que aquilo que começa por ser um negócio jurídico regular entre duas partes que se conhecem e negoceiam entre si há mais de dois anos, tendo o vendedor sobre o comprador um crédito resultante de vendas anteriores, se tornasse numa burla quando perante a exigência de emissão de um cheque para garantia do pagamento se viesse a apurar que tal cheque não teve boa cobrança.
Fosse a falta de provisão, fosse a ordem de pagamento para que tal cheque não fosse pago, ordem essa dada antes ou depois da sua emissão, cremos que em qualquer dos casos esse elemento não transforma um não pagamento em burla, por ausência de um meio ardiloso, através de ou engano, causal da entrega que o vendedor faz ao comprador da mercadoria.

2.ª Questão : paginas 743 e 744 Maia Gonçalves
[1] “Burla e Impostos”, in Separata da Revista da rodem dos Advogados